Toda a noite Maurícia passou em claro, vendo sombras gigantescas atravessar a escuridão do quarto, onde se refugiara. Por extremo excitada, pareceu-lhe mais de uma vez ouvir na sala rumor de passos, e na alcova, que abandonara, ruído de vozes abafadas. De uma vez, levantou-se da cama, abriu devagarinho a porta, e deu alguns passos em direitura da alcova. Foi de encontra ao piano, que com o estremeção teve uma harmonia surda - voz confusa de todas as cordas abaladas. No mesmo instante, afigurou-se-lhe que um vulto se afastara da porta da alcova em procura do corredor. Pelas formas, esse vulto parecia-se com Faustino. O medo de encontrar-se com o moleque fê-la voltar e trancar novamente.
Muito cedo ainda Bezerra deixou o aposento. Maurícia ouviu-o dizer algumas palavras a Faustino, que lhe dera não sei que recado; ouviu o rumor das pisadas do lado de fora. Então, levantou-se cautelosamente. A sala estava deserta. Do lado da cozinha, o moleque conversava animadamente com Brígida. Entrou no quarto. A cama indicava, pelo desarranjo, que Bezerra se servira dela. Sentou-se do lado da cabeceira.
— Não pode vencer-me - disse; nem me vencerá jamais. Dissuadido de realizar o seu intento, repousou só.
E repetiu logo este monossílabo:
— Só!
Depois acudiu:
— Mas terei eu o direito de separar-me dele assim?
Havia nesta interrogação a ponta de uma dúvida.
Irresistivelmente, Maurícia entrou a pensar. A cabeça pesava-lhe, mas seu espírito buscava solução para aquele terrível problema. Não era possível que continuassem a viver assim unidos de direito e divorciados de fato, Maurícia julgou esta primeira prova cruel.
— Ele é meu marido - disse. Quando me sujeitei a viver de novo com ele, não me obriguei acaso a padecer todos os tormentos, sem o direito de lhe resistir? Uma das primeiras virtudes da mulher casada não será porventura, ocultar, ainda com o sacrifício da sua tranqüilidade, as fraquezas e as misérias do marido? Que devia eu esperar de Bezerra? Não fui testemunha do que ele praticou com a filha de Januária, antes da minha última declaração de vivermos juntos? Que me obrigou a sujeitar-me a esta provação? Ninguém me obrigou a isto; fui eu mesma que aceitei a situação que ora me traz vexame e dor. Qual é, porém, o meu dever? Estar por tudo. Pois bem: estarei de ora em diante. Que hei de fazer, meu Deus? Nem haveria merecimento no passo que dei, se eu não curtisse com silenciosa resignação as cruas dores do martírio.
Maurícia estava arrependida do que praticara na véspera.
— Uma mulher casada não pode ter destas opiniões. Ela não se pertence; pertence ao marido, ou antes à fatalidade do dever, sempre mais cruel para a mulher do que para o homem.
Assim falando, Maurícia tomou as última roupas, deliberada a estudar o meio mais natural eficaz de reconciliar-se, sem evidente humilhação, com Bezerra. Chegou-se ao espelho para arranjar o cabelo que se lhe espalhava pelas espáduas nuas. Tinha o rosto demudado. As cores começavam a fugir-lhe das faces. A cútis, outrora tão limpa, emurchecia agora, e mostrava-se sem a frescura de três meses atrás. Aos primeiros raios de sol, ela com espanto viu no fim da testa um cabelo que embranquecia. Era o primeiro indício do seu outono, a primeira folha, que ameaçava cair da árvore da sua mocidade. Ao cabo de mais um ano de padecimentos, não restaria dessa árvore senão o arcabouço. Duas lágrimas deslizaram-se-lhe pelas faces ameaçadas de terem para sempre perdido o lustre que lhe dava o sossego.
— Estou ficando velha - disse com amargura. O sofrimento encurta a minha viagem, e, dentro em breve, terei diante dos olhos a sepultura; eu não poderei resistir por muito tempo a semelhantes tormentos. Também o meu papel no teatro do mundo parece tocar o seu termo. Virgínia está casada e amparada, e o meu coração está morto.
Estas últimas palavras trouxeram-lhe à lembrança Ângelo, e não foi preciso mais para que em seu interior se derramasse a impressão de bálsamo suavíssimo.
— Não! O meu coração não está morto! - disse ela de si para si. Por desgraça minha, não posso esquecer-me desse homem, ainda quando a descrença invade a minha alma, como agora, e vejo diante dos olhos o espectro da morte. Ao lado dele, a mocidade me voltaria, e com ela todos os meus sorrisos que se mudaram em lágrimas em companhia do meu cruel marido. Meu Deus, meu Deus, não há maior tormento do que este - sofrer assim, amar assim, sofrer sem tréguas e amar sem tréguas ao mesmo tempo, sofrer daquele a que se aborrece, e amar aquele de quem não se possui senão a efígie querida no seio da fantasia, e cujo nome nem ao menos é lícito proferir de modo que os ouvidos o ouçam!
Maurícia sentou-se a modo de desalentada ao pé do espelho. Após as primeiras, vieram novas lágrimas porventura mais abrasadoras. Dava pena daquela silenciosa aflição.
Uma discórdia entre Faustino e Brígida, cujas vozes, alteando-se gradativamente, vieram ressoar, no ambiente da alcova, arrancou Maurícia da prostração mental em que a tinham deixado os encontrados pensamentos do seu último solilóquio.
Levantando-se, disse:
— Deus há de ajudar-me a levar sem covardia ao Calvário a minha cruz. Façamos de conta uma vez por todas que está para sempre acabado tudo que se passou entre mim e esse homem. Sejamos de ora em diante exclusivamente a mulher casada, escrava de seu dever.
Aproximando-se de uma cadeira para apanhar um lenço que aí deixara, suas vistas caíram casualmente na parte da cama, que ficava do lado da parede. Sobre o alvo lençol, neste ponto não revolvido, viam-se marcas de pés grosseiros, que indicavam pelos traços negros, terem andado em chão imundo.
Maurícia mal pode descobrir esta indigna visão, sem cair ferida de vergonha e dor. Compreendeu toda a infâmia de Bezerra. Diante de tal testemunho de insólita baixeza, nenhuma mulher se conservaria dentro dos limites da discrição. Abriu a porta arrebatadamente e correu para a cozinha. Que ia fazer? Ela mesma não podia saber. A verdade, porém, é que ela estava desvairada.
Chegando ali encontrou Faustino.
— Vosmecê vem ralhar comigo, sinhá Dona Maurícia, por eu estar brigando com Brígida? - perguntou o moleque tanto que reconheceu pelo semblante de Maurícia a cólera que lhe ia na alma.
Maurícia nada disse. Não podia falar. Tinha a voz presa por oculta garra.
— Vosmecê me perdoe - continuou o moleque em tom de humildade despeitosa. Eu queria muito bem a essa negra, mas ele me fez ontem uma só me deu a vontade de a matar. Vosmecê sabe que minha senhora prometeu que Brígida havia de casar comigo. Mas de que serviu esta promessa? A negra botou as mangas de fora, e tem andado solta como as bestas do engenho, Ontem de noite, quando eu cheguei do Recife, onde tinha ido de tarde, por mandado de meu senhor, não achei Brígida aqui. A porta do corredor, que vosmecê costuma fechar todas as noites, estava aberta, Há muitos dias que eu andava suspeitando uma coisa muito feira. Por isso, deixei-me ficar na sala. De uma vez, ouvi abrir a porta do gabinete e apontar um vulto branco; fugi para o corredor para esperar por ele, supondo que era Brígida; mas assim que fugi, o vulto foi outra vez meter-se no gabinete. Não pude ter-me e corri até lá a ver se dava com a negra; mas achei a porta trancada. Não pude sair da sala. Estive aí até amanhecer. Quando seu Bezerra abriu a porta da rua e saiu, eu, que estava detrás da porta do corredor, via negra tomar da sala para a cozinha. É por isso que eu estava ralhando com Brígida.
— E onde está ela? - perguntou Maurícia
— Fugiu com medo de mim para a casa-grande.
Não havia que duvidar. Os indícios acabavam de ter a mais cabal confirmação. O torpe segredo estava já nos domínios da cozinha. Se houvesse encontrado a negra, Maurícia teria talvez praticado um desatino que não se compadecia com a sua índole e educação; mas, na ausência do objeto do seu ódio, do seu desprezo e da sua vingança, ela não pode suster o pranto. Nunca se vira tão aviltada aos seus olhos.
— Vosmecê não chore, que aquela negra não há de voltar mais aqui - disse o moleque.
— E que tem que ela volte ou não, se já aqui deixou a sua infâmia? - respondeu Maurícia. Não te entristeças, Faustino. Vou contar tudo a D. Carolina, a fim de ver se ela põe cobro à ousadia de Brígida.
— Vosmecê pode contar à minha senhora o que se passou, mas eu nada tenho com isso, porque eu não quero mais saber de Brígida. Ela para mim está cortada.
— Que está dizendo?
— É o que digo a vosmecê. Deus me livre de casar com uma negra tão ruim. Não faltam negras boas no engenho de meu senhor. Eu para mim não a quero nem de graça.
Maurícia encaminhou-se imediatamente para a casa-grande. Antecipando-se, Brígida inutilizara toda a obra que a infeliz senhora devera levantar, sobre verdadeiros fundamentos, no espírito da senhora do engenho. Não acreditou esta nas palavras de Maurícia. Atribuiu tudo a ciúme, desculpando a negra, que, em seu conceito, segundo disse, era incapaz de tal procedimento; Sucedeu, então, o que não é raro em tal caso, Maurícia, que antes do casamento de Paulo com Virgínia, era objeto de particulares atenções, tanto que por tal casamento entrou nos laços da família, já não merecia a mesma urbanidade. Descontente, procurou Albuquerque para desaforar no seio dele as novas aflições e pedir-lhe providências e conselhos. Que outros passos poderia dar, sentindo-se quase fora de si pela dor que lhe deixara o golpe inesperado e nefando?
Albuquerque, depois de ouvir a sua narrativa sem lhe fazer a menor observação, disse simplesmente em resposta.
— Não direi que a senhora não tem razão, D. Maurícia, mas devo observar-lhe que as minhas crias de casa são muito moralizadas; e que até agora nada me constou ainda de seu marido, que o fizesse descer do conceito que formo dele. A senhora pede-me providências, mas que providências posso dar, a não ser a de não consentir mais na continuação de minha escrava em sua casa? Essa providência tenha por certa, ainda que me pese privá-la de quem lhe preste serviços domésticos, que a senhora não está acostumada a praticar. Pelo que respeita aos conselhos, só tenho uma judiciosa sentença que lhe lembrar; é a seguinte: a mulher, que dá o devido valor à sua honra, longe de por em praça pública as fraquezas da sua casa, é a primeira que as encobre, ainda que daí resultem danos e desgraças.
Maurícia não pode dizer uma palavra diante desse procedimento tão cru, e voltou decidida a não por mais os seus pés na casa-grande. Reconheceu, então, que estava só em frente do seu infortúnio; só como não se vira jamais! Muito cara lhe ia saindo a felicidade de sua filha. Teve por instantes o pensamento de acabar com os seus dias, mas faltou-lhe o ânimo que requer este passo extremo. Quando o funesto pensamento passou de todo, outro veio ocupar o seu lugar na imaginação escaldada na infeliz vítima - o de fugir para a companhia de Ângelo; mas duas razões se opuseram a que tão grava idéia chegasse a realizar-se; em primeiro lugar, Ângelo havia de votar-lhe agora, em vez do amor de outrora, ódio e desprezo, únicos sentimentos, que o procedimento dela, resolvendo-se a voltar à vida conjugal, devera inspirar-lhe; em segundo lugar, repugnava ao seu caráter e ao seu imenso amor procurar o bacharel como quem fugia covardemente de um grave passo na vida. A ocasião de levar a efeito a fugida tinha passado, Se esta se houvesse realizado no tempo próprio, ela teria chegado à casa de Ângelo, como a primavera chega aos campos desolados, por entre flores e graças; seria objeto de adoração espontânea e grata; pequena, se fosse aferida pelo dever, mostrar-se-ia de grandeza descomunal na medida da paixão de que ela era ídolo sobrenatural, a quem o jovem bacharel queimaria, então, o melhor incenso do seu afeto. Agora, porém, era tudo muito diferente. Ela própria já não tinha no rosto as graças que tanto havia imposto a Ângelo o culto da beleza. Os olhos estavam amortecidos, as faces estavam crestadas do continuado pranto. Não eram já os mesmos encantos que davam a sua conservação particular valor. A sua voz desaprendera grande parte dos delicados segredos que traziam o bacharel rendido aos seus pés; havia quase dois meses que ela não vivia para o mundo da arte, que, aliás, tanto a cativara nos tempos da sua maior liberdade. O piano mudo; as músicas debaixo de uma crosta de pó sobre uma mesa ao canto da sala; os livros trancados na pequena estante, e nenhum ao seu lado, ou ao alcance da sua mão, testemunhavam que lhe entrara na vida outro sistema, outro regime inteiramente oposto ao que dera conveniente educação aos seus dotes naturais, e criara nela o gosto pelas coisas do espírito, que a suas inclinações tornaram de fácil aquisição.
Maurícia sentou-se numa poltrona no gabinete, onde passara a noite. Combalida de tantas impressões, o cansaço e a luta interior puderam vence-la, quando ela mais se preparava para refletir sobre a gravidade da conjuntura atual. Adormeceu ali mesmo.
Uma cena curiosa representava-se nesse momento à beira do rio, que banha a povoação de Caxangá, e Paulo era dela espectador mudo e abalado.
Deixando os negros no serviço, fora ele tomar banho à sombra de umas árvores copadas, juntos das quais passava o rio. O ponto era inteiramente ermo. À direita, morriam os canaviais e à esquerda estendia-se um capinzal vasto. Corriam pelo meio as águas, deixando do lado do engenho, entre elas e as últimas touceiras de cana, uma pano de área descoberto; lambiam as raízes salientes do arvoredo; e desapareciam obra de cem passos adiante por baixo de uma vegetação aquática muito cruzada e basta, que se confundia no capinzal.
Antes de descobrir a natural banheira formada pelo rio, Paulo ouviu o ruído de vozes e o ressoar de risos esganiçados, que não lhe pareceram de todo estranhos. A natural curiosidade o fez cauteloso. Abaixou-se algum tanto, e por entre as folhas das canas descobriu o ponto donde vinham tais rumores. Eis o que viu. Estavam dentro da água um homem e uma mulher. Brincavam, riam-se, mergulhavam e davam cambapés estrepitosos. Quando a mulher gritava com mais força, ou fazia nas águas mais barulhos, o homem recomendava-lhe moderação e silêncio; mas não tinham essas recomendações a menor importância para ela, que prosseguia com os seus movimentos agitados e aumentava o diapasão das suas vozes.
Do lugar onde estava, não pode Paulo saber quem eram os desconhecidos. As árvores cobriam com sombras todo o âmbito das águas onde eles procediam àqueles violentos exercícios, e a distância não era pequena. Paulo, entretanto, começou a sentir maior curiosidade em reconhecê-los. Por ali perto, não se apontavam moradores, e até lhe pareceu digno de nota que tais pessoas, não sendo da redondeza, soubessem que havia essa banheira só conhecida da gente do engenho ou de quem tinha a liberdade de atravessar os canaviais e as lavouras. Mas ao mesmo tempo que desejava conhecer os folgazões, o seu natural pudor vedava-lhe empregar os meios mais prontos para chegar a este conhecimento. Pensava já em voltar, quando um ruído mais forte e uma gargalhada mais vibrante chamaram novamente a sua atenção para a banheira. Fora o caso que a mulher correra de destro das águas para fora em busca do pano de areia, que vinha morrer poucos passos diante do ponto onde ele estava oculto. A mulher, correndo, parando, tornando a correr e olhando para trás, atravessou todo o espaço que havia descoberto. Paulo viu-a, em toda a nudez natural, de frente para ele; e logo que, saindo da sombra, a luz do sol pode cair em cheio em cima dela, reconheceu a Janoca. O espanto, a que esta visão deu lugar em seu espírito, subiu de ponto, quando ele ouviu a homem chamar por ela em voz mais elevada. Era a voz de Bezerra.
— Sai daí; volta - disse Bezerra. Olha que pode vir gente.
— Que é que tem? - retorquiu a mestiça com disfarce impudente.
— Não quero; não quero que alguém te veja.
— Quero eu.
— Volta, Janoca.
— Venha você buscar-me. Tenho já frio e o sol está muito bom.
E a mestiça estendeu-se a fio comprido na areia.
Paulo teve, então, ocasião de observar as formas que ele nem sequer imaginara nunca. A sua primeira impressão, vendo a rapariga correr para a banda dele, fora fugir, desaparecer; mas a novidade e o escândalo puderam mais que o escrúpulo do rapaz, posto que educado nas lições de sã moralidade.
— Se não vier buscar-me, não voltarei tão cedo - prosseguiu a mestiça.
— Deixa-te disso; vem. Se eu for lá, hei de trazer-te arrastada pelos cabelos.
— Não vê! Os meus cabelos são as suas prisões. Sua mulher há de ter inveja deles. Não tem?
— Vem, diabo! - tornou Bezerra contrariado.
— Que é isto? Está com raiva porque falei na sua mulher? Bonito que você é! A sua mulher sou eu.
— Pois sim, és tu mesma; mas o que eu quero é que saias daí.
— Eu não. Está com ciúmes? Cuidarás que alguém, vendo-me nua, vai tirar-me do seu poder?
— Deixa-te de asneiras, e não me metas raiva.
Dizendo estas palavras, Bezerra correu da água para a margem, onde a rapariga se espojava, ora encolhendo, ora estirando as pernas. Vinha resoluto a levá-la por força, mas quando entre ele e ela não se interpunham mais de dez passos, Janoca, por diabrura, encheu a mão de areia e atirou-lhe sobre a cara, acompanhando este movimento de cínica e estrepitosa risada. Bezerra deu um grito, sobresteve um momento com as mãos no rosto, e depois voltou ao rio. A areia caíra-lhe nos olhos.
Então, Janoca levantou-se rapidamente e correu após ele.
— Caiu-lhe nos olhos a areia, meu benzinho? - perguntou com voz sentida. Coitado do meu marido!
E foi ela que arrastou Bezerra para dentro da água, onde, abraçando-o e dando-lhe beijos, começou a banhar-lhe o rosto e a pedir-lhe perdões ao mesmo tempo.
Paulo aproveitou-se deste acidente para retirar-se do lugar, onde o acaso acabava de dar-lhe tão nojento e infame espetáculo. Estava maravilhado. A impudência e a nudez haviam deixado em seu espírito estranha impressão de assombro. Pensou logo em Maurícia, que ele tinha em conta de sua segunda mãe. "Quanto não deve ter ela padecido? - disse ele consigo. Agora acredito em todas as suas palavras; quem pratica o que acaba de praticar esse homem é capaz de todas as vilezas". Paulo sentiu tamanha pena que, dados alguns passos, parou de novo e pôs-se a pensar no que testemunhara. A estranha visão apresentou-se-lhe outra vez diante dos olhos escandalizados, em tintas tão vivas como a realidade. "Oh, nunca supus que ele tivesse coragem para semelhante procedimento!"
Voltou esse dia mais cedo do serviço. Tinha pressa de ver Maurícia. Quanto mais reconhecia a sua desgraça, mais se sentia na obrigação de ir em socorro da infeliz senhora. Nada lhe revelaria do que vira, mas trataria de cortar as relações criminosas que Bezerra e a mestiça mantinham. "Ela se sacrificou por mim; eu tenho o dever de lhe tornar o mais suave que puder o sacrifício. Essa infame rapariga não pode continuar nesse lugar. Há de sair daqui dentro do mais breve tempo que for possível.! E formou logo sua resolução.
Chegando ao engenho, antes da hora costumada, Virgínia fez-lhe mil indagações para saber a causa desta alteração; Paulo respondeu-lhe que se sentira indisposto. Deixando a mulher em seu aposento, dirigiu-se à sala onde D. Carolina se demorava a maior parte do dia. Queria contar o que vira à sua mãe e pedir-lhe que o aconselhasse; mas antes de fazer qualquer revelação, D. Carolina começou a relatar-lhe o que se passara naquela manhã entre ela e Maurícia. Em sua opinião, Maurícia criava fantasmas para desacreditar o marido, que não era tão mau como dizia. Então, Paulo referiu tudo: Maurícia tinha carradas de razão. Ele próprio fora testemunha da cena mais aviltante que se pode imaginar para um homem casado. D. Carolina ouvindo estas atrozes revelações, mostrou-se ao princípio incrédula; mas, depois, forçoso foi ter por certas as palavras do filho. Paulo estava triste e indignado e os seus sentimentos eram comunicativos. Sabendo que Maurícia voltara desgostosa, convidou sua mãe para ir com ele e Virgínia aquela tarde buscá-la para tomar chá no engenho. Conhecia quanto Maurícia era melindrosa. "Se minha mãe não for lá, D. Maurícia nunca mais tornará a esta casa".
Ficou assentado que haviam de ir depois do jantar.