Eugênio, com o pé alçado sobre a cabeça da serpente fascinadora achava-se em vésperas de cantar triunfo.
Ainda a paixão não se havia extinguido de todo; o cancro pecaminoso ainda lhe atracava ao coração seus enredados filamentos; mas o moço, premunido de ascético heroísmo, com mão firme e resoluta havia empunhado buído escalpelo para extirpá-lo de uma vez, embora lhe custasse gritos de agonia e lágrimas de sangue.
Dispunha-se Eugênio a ir dar conta ao seu diretor das grandes vitórias que ia alcançando sobre si mesmo, e manifestar-lhe a firme e inabalável resolução em que se achava de tomar ordens sacras e até de entrar para as fileiras dos filhos de S. Vicente de Paula, quando recebeu um recado do mesmo diretor chamando-o ao seu cubículo.
— Senhor Eugênio, - disse o padre, apenas o seminarista compareceu - acabo de receber uma carta do senhor seu pai, em que me comunica uma importante notícia. Se fosse em outros tempos, eu hesitaria em dar-lhe semelhante nova, mas hoje creio posso dar-lha sem receio de consterná-lo, certo de que a receberá com toda a sobranceria e serenidade de ânimo de um homem superior às paixões do século.
A esta linguagem Eugênio sobressaltou-se.
— Diz respeito a meus pais? - perguntou com ansiosa inquietação.
— Não, não; a esse respeito esteja tranqüilo. Estão vivos e com saúde, louvado seja Deus... É outra coisa...
— Margarida?... exclamou o moço, mas logo atalhou-se envergonhado.
— Sim, sim; essa menina, que foi criada em casa de seus pais, e sua companheira de infância, essa menina, conforme me escreve seu pai...
O padre fez uma breve reticência, como hesitando sobre o modo por que havia de exprimir-se.
— Morreu?... perguntou Eugênio tornando-se pálido como um cadáver.
— Não, senhor; casou-se.
A esta revelação Eugênio estava lívido, convulso, atordoado; como se um raio houvesse estalado junto dele, apenas pôde murmurar com lábios trêmulos:
— Casou-se!... ah!... muito bem!
Como quem arranca subitamente as ataduras a uma ferida profunda, que apenas começa a cicatrizar e a faz de novo abrir-se entre dores cruéis, golfando o sangue aos borbotões, assim o padre com aquela fatal e inesperada nova veio despertar em um momento todo o ardor e frenesi da paixão que começava a adormecer no coração do moço. Turvou-lhe os olhos a sombra trêmula de uma vertigem, as pernas lhe esmoreceram, e foi-lhe mister encostar-se a uma mesa para não cair redondamente em terra.
Em vão esforçou-se por afetar tranqüilidade e resignação; forçoso lhe foi retirar-se para ocultar aos olhos do diretor a agitação de seu espírito.
Este porém, a quem não podia escapar aquela tão visível e extraordinária perturbação, não se inquietou muito com isso. Proveto conhecedor das paixões e fraquezas do coração humano, bem previa que outro não podia ser o resultado imediato daquela revelação; mas estava também certo que ela seria o golpe de morte desfechado sobre a paixão do mancebo. Passada aquela primeira irritação, um salutar desengano convencendo-o da inconstância e fragilidade das afeições mundanas, lhe serviria de escarmento eterno contra todas as seduções do espírito das trevas.
— Margarida infiel!... Margarida casada!... - exclamava Eugênio ao entrar no seu quarto, delirante, a arquejar e apertando a cabeça entre as mãos convulsas. - Quem o diria .... pôde tão facilmente esquecer-se de mim para entregar-se a outro.... e eu tantos anos luto em vão para arrancar daqui a imagem dela e entregar-me nos braços de meu Deus!... que vergonha!... que miséria!... À força de jejuns, de penitências, de mortificações tenho quebrantado meu corpo, acabrunhado meu espírito e flagelado meu coração rebelde, e nem assim consegui apagar este fogo que me devora... sim, não consegui nada; era engano meu... agora o vejo... e ela tranqüila e risonha, sem escrúpulo e sem constrangimento algum voa aos braços de outro, e dá-lhe a gozar estas delícias, que eu... louco que eu fui!... estava trocando por um inferno de amarguras e martírios!... Oh, Margarida! Margarida! que fizeste!... ah!... tu eras mesmo a serpente; teus lábios destilavam veneno de morte... era o fogo do inferno que te incendiava os olhos... Com teu amor mostravas-me o paraíso, que era a porta do inferno!... com tua traição e falsidade me abres também o inferno nesta e na outra vida!
Por toda parte tu és o anjo mau destinado a precipitar-me no abismo das torturas!... mas... que importa!... ah!... se continuasse a querer-me... quem sabe?... que valem sem ti o paraíso e todas as suas delicias?... eu te acompanharia de bom grado pelos ásperos e tenebrosos caminhos do desterro, como Adão acompanhou a sua Eva; suportaria alegre todos os trabalhos e tribulações da vida, se sentisse tua mão enlaçada com a minha, e o teu coração palpitando junto ao meu!... - Mas ah!... meu Deus! eis em que deram tantos anos de luta e sacrifício!... Desprezei um tesouro que possuía, para correr após um bem quimérico, uma sombra vã... e agora aperto os braços, e não encontro nem um nem outro... e acho-me abraçado... com quê? com as chamas do inferno!... Ai de mim!... meu Deus! como eu blasfemo! eu sou um réprobo!... um precito!...
Eugênio debatia-se em acessos febris entre as garras do ciúme, que lhe atassalhava o coração, e o cauterizava com o fogo de sua letal peçonha. Era o último trago amargo e corrosivo da taça das paixões. Seu amor, que até então envolto no casto véu dos devaneios sentimentais se havia mantido em uma esfera ideal e pura, tornou-se material e libidinoso. Os gozos de outrem lhe chamaram a atenção para os sedutores atrativos físicos da sua amante, e lhe atearam nas veias a febre da volúpia. O demônio do ciúme, empunhando o facho infernal, abrasava o sangue do infeliz mancebo no fogo da concupiscência. Volvia e revolvia na lembrança com amarga complacência todos os encantos do corpo de Margarida - a boca úmida e vermelha, ninho voluptuoso de beijos e sorrisos - os seios túrgidos ofegando alterosos em ânsias amorosas - os olhos quebrados nadando em eflúvios de ternura - o bafejo suave e perfumado como as emanações de um rosal - e todos estes misteriosos tesouros, que o pudor recata, e ante os quais a própria fantasia do mancebo se detinha tímida e respeitosa, receando profaná-los, tudo isso se lhe apresentava à imaginação com as mais vivas cores e o abrasava em sede de sensualismo, infligindo-lhe o suplício de Tântalo. Tudo isso, que havia perdido, era agora pasto franco aos desejos libidinosos, à concupiscência brutal desse Luciano, que o havia ultrajado, ou de algum ente talvez mais desprezível.
Com estas idéias a escaldarem-lhe o cérebro, a torturarem-lhe o coração, o pobre moço pensava morrer de despeito, de vergonha e desesperação.
Blasfemava, estorcia-se e entrava em acessos de furor.
Estranho e deplorável egoísmo do amor! Eugênio teria sofrido menos, se soubesse que Margarida, fiel ao seu amor, houvera sucumbido vítima da mágoa e da saudade. Mais depressa se teria resignado, e daria por bem empregados todos os peníveis esforços, todos os sacrifícios a que se devotou durante anos para desterrar do coração a imagem dela. Quando considerava em sua infidelidade, envergonhava-se de ter mirrado a flor de sua mocidade em uma luta improfícua contra um inimigo indigno dele, contra uma mulher, que o fascinara com as aparências de um anjo, e que não era mais que larva imunda, que há mais tempo devera ter esmagado debaixo dos pés!
Estranha alucinação! Julgava-se com o direito, e até com o restrito dever de bani-la para sempre da lembrança, e quisera que ela o amasse a todo o transe, que se deixasse finar por ele de amor e de saudade!
Morta de amor por ele, seria um anjo, que chamava para o céu. Viva nos braços de outro, é a serpente que o arrasta para o inferno.
Pura e fiel, era uma vítima imaculada digna de ser imolada ao seu espírito ascético nas aras da religião. Perjura e desleal é um monstro, que o fascina, e o precipita no abismo das eternas chamas!
Alguns dias cruéis e noites de agonia passou Eugênio nesta tempestuosa agitação, que quase tocava ao delírio. Às vezes lhe fervia o coração em desejos de vingança e idéias de sangue e suicídio lhe pairavam lôbregas pelo espírito. Outras vezes, inculpando-se a si mesmo da deslealdade de Margarida, e tendo-a como um merecido castigo de sua atroz ingratidão, corria após ela, e ia cair-lhe aos pés suplicante e debulhado em lágrimas, pedindo-lhe perdão do seu monstruoso perjúrio, e maldizia a loucura e covardia que lhe havia feito desprezar um tesouro real, que o destino lhe havia colocado entre os braços, para correr após a sombra de um bem, que o céu lhe recusava.
Esta extrema e violenta superexcitação não podia durar muito tempo sem produzir a morte ou a loucura. Sucedeu-lhe porém felizmente a prostração profunda, o desalento glacial do desengano.
A alma do mancebo, que era até então como um foco de chamas açoitadas por ventos tempestuosos, converteu-se em um limbo silencioso, gélido e sombrio, onde não havia um eco, nem para a dor, nem para o prazer, onde não se exalava o perfume de uma saudade, nem luzia o reflexo de uma esperança.
Seu espírito parecia adormecido em pesado torpor, sobre as ruínas de todas as suas afeições mundanas, de todas as suas aspirações de ideal e celeste misticismo.
— É mais uma provação, que Deus vos reservava, filho - dizia-lhe o padre diretor, procurando consolá-lo; - mais um cálix de amargura, para vos acrisolar nas atribulações da vida, e vos servir de escarmento eterno contra as ilusões do mundo. Era necessária ainda esta última gota de fel, para tornar o sacrifício mais perfeito e agradável aos olhos de Deus. Bem-aventurados os que choram.