Banidas da fazenda do capitão Antunes, Umbelina e Margarida, tristes, como outrora Agar e Ismael despedidos da tenda de Abraão, e internando-se pelo deserto, tomaram o caminho da vila de Tamanduá, onde Umbelina possuía ainda uma pequena casa habitada por uma velha parenta, ainda mais pobre do que ela. Sem expelir a pobre mulher, que não tinha outro abrigo, aí se estabeleceram com ela.

Umbelina já bastante entrada em anos, e cheia de achaques, quase nada mais podia fazer. Sua velha companheira, essa coitada!... vivia quase às esmolas. Aquela pequena e desvalida família teria caído na mais extrema miséria, se não fosse Margarida que, cheia de mocidade, robustez e boa-vontade, se entregava a um contínuo trabalho, cosendo, lavando, engomando, e assim provia à parca subsistência de todos, e lhes proporcionava mesmo um pouco de abastança.

Mesmo naquela humilde condição, a formosura de Margarida, que havia atingido a todo o opulento viço, a todo o esplendor da juventude atraía a atenção geral, e fascinava todos os olhos.

Lavando roupa, com os lindos braços nus, como as asas de uma ânfora de alabastro, os cabelos entornados pelos ombros, como a ramagem do salgueiro, com os pés embebidos na água, e as roupas arregaçadas deixando ver as extremidades de duas colunas do mais perfeito lavor era a náiade da fonte.

No templo, vestida pobremente mas com esmerado asseio e elegante singeleza, com os tímidos e pudibundos olhos velados pelos longos cílios, em sua cândida e modesta atitude tomá-la-íeis por uma estátua da Virgem, produção genial de inspirado cinzel.

Em casa, fiando ou entregue aos trabalhos de agulha, vendo aquele busto angélico pendido sobre a almofada, vos lembraríeis da casta Lucrécia, ou da pudica Susana.

Desprotegida como se via, sua pureza navegava entre mil riscos em um mar semeado de cachopos e sirtes traiçoeiras, e como lâmpada exposta a todos os ventos, mantinha-se como por um milagre. Não faltaram libertinos e sedutores, que dispondo dos favores da fortuna, da posição e da mocidade, empregassem inúteis esforços para arrastá-la ao lodo da prostituição; nem também amantes, que possuídos de sincero e verdadeiro amor, cobiçassem com ardor a posse do coração e da mão de Margarida.

Não era porém somente o inimigo externo, que ela tinha a temer. De temperamento ardente, de compleição sangüínea vigorosa, Margarida não era muito própria para manter por largo tempo a sua afeição na esfera de uma aspiração ideal de um celeste devaneio. Feita para os prazeres do amor e para as expansões ternas do coração, os instintos sensuais achavam em sua natureza estímulos de indomável energia; sua pudicícia teria infalivelmente naufragado no meio dos perigos que a rodeavam, se uma paixão casta e santa, que desde a infância lhe enchia o coração, lhe não servisse de broquel contra todas as seduções do mundo.

O anjo do amor puro velava desde o berço sobre a encantadora menina, e com suas asas cândidas afugentava para longe dela as larvas do gênio da devassidão.

Graças a este celeste talismã, Margarida, como um lírio de alvura deslumbrante, balanceava incólume e orgulhosa o cálix imaculado no meio da torrente turva e impetuosa, que lhe rugia em derredor.

Já perto de sete anos eram volvidos, desde que se partira o querido companheiro de sua infância. Entregue à melancolia e ao desalento, Margarida, ainda que aparentemente robusta e sadia, sofria, um mal de coração, que lhe contaminava as fontes da existência. Uma organização de vigorosa têmpera, e sobretudo uma alma paciente e resignada, davam-lhe força apenas para não sucumbir e resistir tranqüila e quase risonha ao peso esmagador do seu infortúnio.

Ao seu aspecto, ninguém à primeira vista adivinharia que um germe de morte lhe ia solapando a existência. Era como um desses pomos, que ostentam na superfície a mais fresca e viçosa cor, e que entretanto trazem no âmago já bem adiantado o germe da destruição.

Uma esperança e um dever lhe alentavam o ânimo, lhe vigoravam o corpo, e davam-lhe força e vontade para viver. Era a esperança de ver ainda um dia o seu querido Eugênio, e o dever de viver para sua pobre e desamparada mãe.

A sorte despiedosa em breve a livrou de um desses cuidados, tornando ainda mais triste e precária a sua situação. Umbelina afrontada de desgosto, velhice e enfermidades faleceu deixando a pobre órfã mais desvalida e angustiada que nunca. Um feroz destino como que se comprazia em recalcá-la cada vez mais na voragem do infortúnio.

Ela porém resistia ainda alentada por uma última esperança, - a mais doce de toda a sua vida, - a volta de Eugênio, - de Eugênio, que solto de seu ergástulo monástico e livre do jugo da autoridade paterna lhe vinha ofertar o braço, e conduzi-la ao altar para receberem a santificação daquele amor, que com eles havia nascido, e com eles devia morrer.

Esta última esperança, tímida e vacilante como luz de estrela moribunda, prestes a afogar-se no seio de um vulcão, era o único e débil fio que ainda a prendia à existência.

Desditosa Margarida! ainda não havia esgotado todo o fel do cálix da amargura que a fatalidade lhe havia destinado. Faltava-lhe ainda a última gota, a mais amarga de todas.

Poucos meses depois da morte de Umbelina, chegou aos ouvidos de Margarida a notícia, de que Eugênio havia tomado ordens. Daí em diante a desgraçada moça não contou mais com a vida.

O mal que a afligia tomou subitamente proporções assustadoras.

O sangue rico, juvenil e ardente da moça, agitado pelas violentas inquietações e padecimentos da alma, precipitava-se tempestuoso pelas artérias, e solapando os vasos centrais da circulação, ameaçava rompê-los. O histerismo também de quando em quando lhe enrijava os músculos, e lhe excitava no cérebro abrasado terríveis e deploráveis alucinações.

Era sol posto. Margarida debruçada à janelinha do seu quarto de dormir, olhava para os campos, que se estendiam por detrás de sua casa, entregue a uma tristeza mortal.

O sino da matriz badalou Ave-Marias.

Margarida levantou-se e começou a rezar o ângelus. Uma súbita ansiedade afrontando-lhe o coração sufocou-a e quase a lançou por terra sem sentidos. Margarida teve um triste pressentimento.

— Minha tia - disse ela à sua velha parenta, que nesse momento ia entrando no quarto -, estou muito doente; de um momento para outro posso expirar; parece-me que tenho gangrena no coração. Mande-me chamar o vigário; quero-me confessar.

— Não fales assim, menina!... chamar o vigário para quê?... o que é que estás sofrendo então, minha filha?

— Tenho umas ânsias que me apertam o coração, e quase me sufocam. Ainda agora escapei por pouco de cair em terra.

— Isso são vertigens, menina, não é caso para já pedir confissão; bem mostras que nunca tiveste moléstia nenhuma; por isso te assustas com tão pouco... ah! que diria se sofresses os meus achaques!... eu vou fazer um chá de melindre, que para aflições de coração é um porrete; verás como hás de te dar bem com ele... sossega; que isso não há de ser nada.

— Não é nada!... eu cá é que sinto, minha tia. Deus a livre de sofrer o que eu sofro... eu não posso durar muitos dias...

— Ora valha-te a Virgem Maria!... que cisma é essa que te entrou pela cabeça, minha filha!... ora vejam, quem fala aqui em morrer! ainda se fosse eu, que já estou com um pé na sepultura... mas tu, menina, criança do outro dia, tão fresquinha e corada como uma maçã madura...

— Que engano!... quer minha tia creia, quer não creia, eu não ando nada boa... mande chamar o padre...

— Nesse caso é melhor chamar o cirurgião primeiro, não achas?...

— Para quê?... remédio para isso só a terra, minha tia. Mande, mande chamar o padre...

— Hoje?

— Agora mesmo, se for possível. Quem sabe se amanhecerei?...

— Arre lá, menina!... não tirarás da cabeça semelhante idéia?...

— Seja cisma embora, minha tia, eu quero me confessar.

— Que mania, meu Deus!... mas enfim vá feito; - como isto afinal de contas nenhum mal te pode fazer, vou fazer-te a vontade. Estou vendo que o padre vai ter mais trabalho em desencasquetar-te da cabeça esta mania de morrer, do que mesmo em ouvir-te os pecados... estás tão nervosa... Valha-me S. Francisco das Chagas...

— Nervosa não, minha tia, estou mesmo muito mal...

— Está bom!... não teimo mais contigo; vou pedir ao vizinho para chamar o pobre vigário... mas, meu Deus!... se ele não estiver em casa!... não há outro padre na terra.