Na tarde desse mesmo dia, na sala de visita de uma casa de sobrado das melhores da antiga Vila de Tamanduá, achava-se uma reunião de várias pessoas gradas e notáveis do lugar. Eram visitas que vinham cumprimentar a um jovem sacerdote, recentemente ordenado, que nesse dia havia chegado ao seu país natal depois de uma larga ausência.

Era um padre alto, de tez clara, de fisionomia a um tempo grave e serena, de um tipo nobre e regular. Todavia na fronte larga e pálida via-se como a sombra de um sofrimento intimo, e uma ligeira nuvem melancólica toldava um pouco a limpidez de seus grandes olhos azuis. Estes indícios reunidos a duas rugas prematuras, uma vertical e outra horizontal, que se cortavam formando uma cruz bem no meio da testa, pareciam revelar, que dentro daquele crânio se haviam agitado lutas e tormentas apenas serenadas.

Estava em hábitos talvez de sua profissão, apertados com um cinto à maneira dos missionários de S. Vicente de Paula; tinha também como eles no alto da cabeça uma tonsura maior do que a dos outros padres, e trazia pendente sobre o peito um grande crucifixo de metal. Faltavam-lhe apenas mais alguns meses de noviciado para ser definitivamente admitido no seio da Congregação.

Era o padre Eugênio, filho do capitão Antunes, que acabava de chegar a Tamanduá investido de todas as ordens sacras e precedido de uma grande reputação de sabedoria e santidade. Era isto um acontecimento, que punha em grande expectação e alvoroço a vila inteira.

— É chegado o padre Eugênio - ecoava de boca em boca, e cada um se apressava em ir ver e saudar o novo padre, que instalado na casa que seu pai possuía na vila, levou o resto do dia a receber as visitas e cumprimentos dos numerosos amigos da família e de quase toda a população do lugar.

Apesar de toda a cortesia e afabilidade com que acolhia os visitantes, via-se que o padre estava entregue a uma penível preocupação, que mal podia dissimular. Havia ele chegado na véspera à fazenda de seu pai, onde pernoitara. Apesar de sete anos de ausência, e de uma vida passada entre místicas contemplações e práticas de austero ascetismo, a vista daqueles sítios acordou-lhe na alma todas as lembranças de sua infância, frescas e vivazes, como se foram da véspera, à semelhança de um bando de pintassilgos, que desperta chilrando debaixo do folhado laranjal aos primeiros raios da manhã.

Oh! essas emoções suaves da primeira quadra da vida têm um filtro sutil, um aroma inextinguível, que se entranha no coração para nunca mais desapegar-se dele. Volvem-se anos e anos, e quando já na meta extrema da existência a fronte encanecida nos pende para a sepultura, por entre os gelos da velhice a flor virginal do primeiro amor exala um doce perfume, e perto do túmulo nos embala ainda com as lembranças do berço.

Eugênio, pois, que via ainda na última ourela do horizonte uns restos do clarão róseo da aurora da existência, devia então sentir em toda a sua força e suavidade a magia dessas recordações.

Cuidava que a flor delicada do amor, cujo perfume aspirava desde o berço, tinha morrido de uma vez para sempre abafada debaixo do manto gélido do ascetismo claustral. Mas ela era como a "sempre-viva" que, exposta ao orvalho frio da noite, esconde o seio fechando sobre ele as pétalas de ouro, para expandi-las de novo, nítidas e formosas, aos beijos do primeiro raio do sol. Ela havia apenas cerrado o seu cálix na sombria e silenciosa solidão da cela do cenobita, e agora ao contato do ar, à vista do solo onde nascera, procurava abrir-se ao novo exalando mais ativo o aroma há tanto tempo enclausurado, e rodeava o coração do moço como de um tépido e delicioso eflúvio de recordações.

Sentindo esse inesperado despertar de emoções, que julgava para sempre extintas, o padre estremeceu de sustos, e se esforçou por conjurá-las do melhor modo possível por meio de orações e penitências. Viera ao seu país natal, somente para visitar seus pais, que há tantos anos não via, e dar-lhes o gosto, por que tão ardentemente suspiravam, de vê-lo ordenado e ouvir-lhe uma missa; e no fim de uns quinze dias ao mais tardar pretendia voltar ao seminário a continuar a sua vida austera de cenobita e entrar para a Congregação da Missão de S. Vicente de Paula. Mas tomado de susto e de sinistros pressentimentos, já se arrependia do passo que havia dado. A noite que passou na fazenda paterna foi para ele uma noite de horríveis inquietações e tribulações de espírito. Se não fosse a estranheza, que tal fato iria produzir em sua família e mesmo em toda a povoação, nessa mesma madrugada teria desaparecido sem dar parte a ninguém, e a toda a pressa voltado ao seminário a fim de pôr-se ao abrigo do espírito tentador, que de novo buscava atravessar-se em seu caminho, e preparar-lhe novas lutas e dissabores.

No outro dia o padre Eugênio levantou-se com o espírito cheio de terrores e de vagas apreensões. Em companhia de seus pais, pôs-se a caminho para a vila triste e inquieto, como quem ia para um Getsêmani de provações, ou como quem marcha por um caminho estreito e escabroso flanqueado de abismos vertiginosos.

Avistando em distância a casinha de Umbelina, já tombando em ruínas e abafada entre o matagal, que lhe crescia em roda, sentiu uma nuvem de tristeza afogar-lhe o coração, e procurando afetar indiferença, não pôde deixar de perguntar pelos antigos habitantes daquela casinha.

— Eu sei! - respondeu friamente o pai. - A Umbelina, essa morreu... a filha, como talvez já saibas, casou-se, e creio que anda por aí mesmo.

Antes nada perguntasse!... bem quisera que Margarida se achasse a milhares de léguas. Esta informação veio ainda mais alarmar a consciência já tão aterrada do jovem sacerdote. Cheio de terrores e apreensões sinistras, estremecia só com a idéia de encontrar-se com Margarida, e implorava a Deus do fundo da alma, que lhe poupasse aquela dura provação, que lhe arredasse dos lábios aquele cálix de amargura.

Mas por fim envergonhou-se de seus próprios terrores, e procurou revestir-se de coragem.

— De que estou eu a tremer? - perguntava a si mesmo. - Margarida é casada... está morta para mim, e não pode senão recordar-me um passado, que foi de paixão e fogo na verdade, mas que há muito se acha sepultado debaixo de uma lápide de gelo... E mesmo que assim não fosse, serei eu tão fraco, tão indigno e vil, que ainda consinta aninhar-se debaixo destas vestes sagradas um sentimento ímpio e profano! Não é fugindo do inimigo, mas travando com ele, que o soldado se torna digno de cingir os louros da vitória. Se por fraco e pusilânime sou incapaz de combater, deveria nunca ter deixado a sombra do lar paterno, deveria nunca ter tomado estas sagradas insígnias de soldado da Cruz! Ânimo pois... - a coragem te dará força!... estas palavras de um grande santo, que muito mais do que eu sofreu e combateu por amor de Cristo sejam o meu talismã através dos perigos e tentações do século.

Era já noite cerrada, o concurso das visitas ia se diminuindo, e na sala do padre apenas se contaria meia dúzia de pessoas. Bateram à porta; alguém procurava o Sr. padre Eugênio.

— Pode subir - disse ele cuidando ser mais alguma visita.

— É um rapazinho, que quer falar a V.Rma. - lhe disseram.

O padre levantou-se e dirigiu-se para o topo da escada.

— Que me queres, filho?

— Eu venho da parte de uma pobre mulher - respondeu o rapaz - pedir ao senhor padre pelo amor de Deus, para ir confessar uma pessoa que se acha à morte.

O padre estremeceu; um confuso e sinistro pressentimento lhe atravessou o espírito.

— Pois não há aí o senhor vigário, ou outro qualquer sacerdote, filho? eu acabo de chegar de viagem, e acho-me bastante fatigado...

— Já fui à casa do senhor vigário, e disseram-me que foi fazer um batizado fora daqui a cinco léguas, e que não volta senão depois de amanhã.

— E a pessoa para quem me chamam está em grande risco de vida?...

— Está, sim senhor, se não fosse isso, eu não viria incomodar o senhor padre...

— Nesse caso... não há remédio senão acudir-lhe... Mora muito longe a pessoa, a quem tenho de confessar?...

— Não senhor; é mesmo na povoação; o senhor padre pode ir a pé; é lá no fim da vila, mas não é muito longe.

— Visto isso, filho, espera aí um momento para ires comigo, e me guiares até lá.

O padre depois de desculpar-se para com suas visitas, informando-as do motivo urgente e indeclinável, que o obrigava a retirar-se, tomou o seu bastão e o seu chapéu triangular, desceu a escada, e saiu em companhia do rapazinho que o viera chamar.

Este o foi conduzindo silenciosamente através das ruas quase desertas até uma viela quase sem habitações na extremidade da vila. Ali parou à porta de uma pobre casinha isolada. A porta estava abertaç o rapazinho retirou-seç o padre entrou, e bateu com a sua bengala no soalho do corredor.

Uma pobre velhinha, tendo na mão uma candeia de ferro de luz frouxa e vacilante, o veio receber, e depois de o cumprimentar com religioso respeito, o introduziu sicenciosamente no quarto da enferma, que era nos fundos da casa.