Três dias tinham decorrido depois da partida de Agrela para a Barbalha.
Águeda insinuara-se por tal modo na afeição de D. Flor, que esta não a deixava, nem fartava-se de sua conversação agradável e sedutora. Alina tinha ciúmes dessa preferência e afastava-se queixosa e arrufada. Assim passavam as duas a maior parte do dia a sós.
De seu lado também Arnaldo observava com inquietação e desgôsto essa intimidade de D. Flor com a viúva.
A beleza de Águeda continuava a produzir no mancebo a mesma acre sensação: êle não podia perdoar a esta mulher o encanto e sedução com que à primeira vista ofuscava a lindeza de D. Flor.
Quando as contemplava juntas, êle reconhecia que a formosura da donzela era uma flor do céu, pura e imaculada, respirando a fragância de sua alma angélica. O brilho dos grandes olhos pardos tinha a limpidez do rútilo das estrêlas; o sorriso dos lábios de nácar abria-se como um doce arrebol da manhã; e as faces assetinavam-se como as nuvens brancas ao de leve rosadas pelo crepúsculo da tarde.
Mas no semblante, e no talhe da viúva, ressumbrava um fulgor vivo e intenso, que deslumbrava. Essa mulher não tinha a suprema correção e delizadeza de traços que distinguia o perfil de D. Flor; não possuia a elegância casta, graciosa e senhoril que vestia a donzela de uma gentileza de rainha; porém sua beleza exercia sôbre os sentidos uma poderosa fascinação.
Essa influência, que êle sofria a seu pesar, o irritava contra aquela mulher; e às vezes admirando-a, vinham-lhe ímpetos de aniquilar os encantos, que, se não a tornavam mais formosa do que D. Flor, davam-lhe provocações que esta não tinha.
Não era esta, porém, a preocupação única de Arnaldo acêrca de Águeda.
O repentino aparecimento dessa mulher no mesmo dia da emboscada; a história por ela contada, e que dera em resultado a partida de Agrela com boa parte da bandeira do capitão-mór; a súbita retirada de Marcos Fragoso, quando êste voltasse; e assim, enquanto o capitão-mór permanecia na habitual tranquilidade, Arnaldo velava na segurança dessa família, a que havia dedicado toda a sua existência.
A convite e instâncias de Águeda, D. Flor saía com ela a passeio pelos arredores da casa, quando quebrava de toda a fôrça do sol. Depois de algumas voltas iam sentar-se à sombra de uma gameleira, que ficava no princípio da mata. Havia alí um tronco derrubado, que servia-lhes de banco.
Aí passavam o tempo em conversa. Águeda tinha sempre uma larga provisão de contos e novidades para atrair a atenção de D. Flor, que educada no retiro da fazenda, sentia a natural curiosidade de conhecer o mundo.
Arnaldo desde o primeiro dia acompanhou êsses passeios, oculto no mato e atento às práticas das duas moças. Nada colheu que justificasse seus receios; mas notou que a viúva também de seu lado estava alerta, pois a cada instante volvia de súbito e disfarçadamente olhos ávidos em tôrno, como para surpreender alguém que porventura a estivesse espreitando por entre a folhagem.
E não ficou nisso. Por mais de uma vez, queando D. Flor, que ia na frente, adiantava-se, a viúva demorando o passo voltava-se e, com a voz submissa e velada, chamava-o por seu nome.
— Arnaldo!... Arnaldo!...
Esta circunstância deixou atônito o sertanejo. De onde o conhecia esta mulher? Que lhe queria para chamá-lo? Como pudera ela descobrir a sua presença, que passaria despercebida para olhos vaqueanos?
Se Arnaldo não se perturbasse com a vista dessa mulher e a surpresa que lhe acabava de causar, de-certo que não lhe escaparia uma circunstância importante. Quando Águeda proferia seu nome, nem sempre volvia o rosto para o lado onde êle efetivamente se achava, sinal de que não o via, e apenas pressentia a sua proximidade.
Um dia quis o sertanejo esclarecer êsse mistério; e quando Águeda o chamou como de costume, êle saíu do mato e apresentou-se. Ao rumor de seus passos, D. Flor que ia adiante voltava-se, e avistando-o afastou-se, com a mesma esquiva indiferença, que não deixara de mostrar-lhe desde o dia da vaquejada.
Ficando só em presença de Águeda, o sertanejo perguntou-lhe:
— Que me quer?
— Agora não. Esta noite, depois de recolher. Estarei à janela.
Proferidas estas palavras em voz rápida, Águeda lançou ao sertanejo um olhar provocador e correu a reunir-se com D. Flor.
Arnaldo cada vez mais surpreendido com o procedimento da desconhecida, ficou algum tempo a cogitar sôbre o estranho emprazamento que recebera. A idéia de uma entrevista amarosa nem de longe passou pela mente do sertanejo; sua conjetura foi que a moça carecia de seus serviços, e talvez de seu auxílio para algum fim oculto.
Desde então resolveu acudir ao emprazamento, na esperança de penetrar o mistério da vinda dessa mulher à Oiticica.
Tudo estava tranquilo na fazenda, não havia o menor indício de perigo, e não obstante, o sertanejo não podia eximir-se a uma vaga inquietação, que o trazia em constante desassossêgo. À semelhança de certas plantas que ressentem-se logo de qualquer alteração ainda remota da temperatura, da mesma forma êle como que respirava uma ameaça na atmosfera.
Um pressentimento lhe advertia que o mal, se êle existia, estava oculto no formoso semblante daquela moça, que de repente aparecera na Oiticica e aí se introduzira de um modo singular.
Não enganava a Arnaldo o seu fiel coração. Nesse momento, com efeito, a felicidade do capitão-mór Campelo e de sua família, estava dependendo do bom êxito de uma cilada, urdida com uma astúcia rara.
É preciso remontar ao dia da emboscada para conhecer os pormenores da trama.
Deixámos o Marcos Fragoso de rota batida para sua fazenda das Araras, em Inhamuns, acompanhado de seus hóspedes e parentes, assim como do Onofre com a sua bandeira e mais gente da comitiva. O José Bernardo breve se reunira ao amo com a bagagem que fôra buscar ao Bargado.
Ao escurecer pararam para dar algum repouso a si e aos animais. Armaram-se as barracas e as redes; e o cozinheiro preparou a ceia, que todos acolheram com a maior satisfação, pois se o almôço fôra abundante, em compensação tinha havido nesse dia uma sinalefa completa do jantar.
À mesa, posta sôbre forquilhas, praticaram os quatro mancebos acêrca do estado das coisas e do modo de as deslindar.
Marcos Fragoso, picado ao vivo em seus brios, era pela desforra pronta:
— Por mim, se não fossem os avisos que eu reconheço prudentes, teria seguido direito para a Oiticica; e hoje mesmo o Campelo conheceria com quem se meteu.
— Também eu entendo, que estas coisas apuram-se logo, observou João Correia; mas não se deve desprezar a estratégia, sobretudo em um assalto. Convém reconhecer a posição do inimigo.
— A estratégia pode servir de muito lá para guerras de soldados, observou Daniel Ferro. Cá no sertão o que decide é a gente e a valentia. O capitão-mór tem uma escolta de cem homens, além dos agregados e escravos da fazenda. Para atacá-lo é preciso aumentar a nossa bandeira.
— Os senhores são todos homens de guerra, acudiu Ourém, e pois não estranharão em mim, que sou homem de lei, um voto de paz. Antes de um rompimento formal, que ainda não se deu, penso que muito acertado seria tentarmos uma acomodação honrosa; e para a ajustar ofereço-me eu. Posso partir agora mesmo para a Oiticica, e lá me apresentarei como parlamentário.
— É tempo perdido, replicou Fragoso.
O voto que prevaleceu afinal, foi o do Daniel Ferro. Decidiu-se que a comititva ficaria alí nas vizinhanças de Quixeramobim, enquanto o alferes ia a Inhamuns recrutar uma bandeira numerosa e destemida, com a qual tomassem de assalto a Oiticica, para quebrar a proa do capitão-mór e obrigá-lo a dar ao Fragoso todas as satisfações, sendo a primeira delas a mão de D. Flor.
Quando Marcos Fragoso dirigia-se à sua rede, saíu-lhe ao encontro Onofre, que o espreitava:
— Ainda me apareces? perguntou o mancebo, em quem a presença de seu cabo de bandeira veio de novo atear a ira.
— Quem é que se livra de ser logrado uma vez, ainda mais daquela maneira? retorquiu o coriboca submisso. Mas o caso está em saber tirar a desforra.
— Já não creio nas tuas bazófias, tornou o mancebo desdenhosamente.
— Nestes oito dias, se não for antes, asseguro ao senhor capitão que temos o passarinho na gaiola.
— Ou o sendeiro na peia, retrucou Fragoso, aludindo ao recente de desastre do Onofre.
— O sr. capitão há de ver, se desta feita o engano.
Sempre conseguiu Onofre do patrão que o ouvisse; e então expôs miudamente o ardil que havia tramado, e que já estava àquela hora em via de execução. Para o coriboca era mão de empenho essa, que devia rehabiliatá-lo no conceito do Fragoso, e desafrontar a sua fama de cabra fino e manhoso, abalada pelo último revés.
Logo que a comitiva deixara o sítio da emboscada, Onofre tivera uma conversa com a Rosinha e o resultado foi tornarem furtivamente ao Bargado, com o José, irmão da rapariga. Chegados à fazenda, onde tinham deixado as macas, operou-se nos dois ciganos uma transformação completa.
Rosinha tornou-se Águeda, a viúva perseguida, que vinha da Barbalha implorar a proteção do capitão-mór; e José disfarçou-se no velho que devia acompanhá-la até a Oiticica.
O Onofre sabia do caso acontecido com o Vareja; e Rosinha já conhecia bastante a gente da Oiticica pelas conversas do Moirão, que estava sempre a falar do Arnaldo, e a contar as mandingas do sertanejo.
A recomendação que levava a rapariga era insinuar-se na confiança de D. Flor e a pretêsto de passeio atraí-la a uma cilada, em que o Onofre de antemão prevenido se apoderasse da donzela e a conduzisse ao Marcos Fragoso.
Se falhasse êste plano, devia então Rosinha dispor as coisas para um assalto noturno, avisando ao Onofre da ocasião propícia, e abrindo-lhe a porta da casa para que no meio da confusão fosse raptada a filha do capitão-mór.
Para qualquer dos casos, a fábula do Proença seria de proveito, pis além de explicar o aparecimento da suposta viúva na Oiticica e de granjear-lhe a compaixão das senhoras, contava o Onofre que desse em resultado a partida do capitão-mór com uma forte escolta.
Não partira o fazendeiro, mas enviara o ajudante com cêrca de metade de sua gente, de modo que já não era muito de temer a perseguição que naturalmente o Campelo havia de fazer aos roubadores da filha.
Águeda ganhou facilmente as boas graças de D. Flor; para isso não lhe foi preciso empregar a menor arte, bastou a sua formosura, e o luto que a tornava ainda mais interessante. A donzela tomou-se de afeição sincera pela bela viúva.
Todavia desde logo percebeu a astuta cigana que tinha de lutar com um obstáculo sério, e êsse era Arnaldo. Já estava ela prevenida de algum modo acêrca do sertanejo, pelas proezas que dele contava o Moirão, nos serões da fazenda do Bargado. Mas na manhã seguinte observou uma circunstância que a sobressaltou.
Vira o olhar que Arnaldo fitava em Flor, e concebeu no brilho que acendia aquela pupila negra os lampejos de uma paixão intensa. O sertanejo amava a filha do capitão-mór; e êsse amor, não partilhado, e portanto inquieto e sôfrego, devia envolver a donzela em uma solicitude constante.
Águeda adivinhava a vigilância infatigável dêsses afetos, que vivem de uma doração mística e se enlevam na contemplação do ídolo, investigando todos os gestos e perscrutando no mínimo acidente o pensamento recôndito. Contava, pois, que perto de D. Flor seria a cada instante o alvo da observação de Arnaldo.
Quando saía com a donzela a passeio, notou a cigana que por dentro do mato a seguia um leve farfalhar da ramagem. Em outra ocasião o atribuiria à brisa ou a algum pássaro, e não faria o menor reparo. Nauqela situação, porém, essa circunstância viera avivar a sua desconfiança.
Disfarçadamente relanceava os olhos à espessura insinuando a vista pelo crivo das fôlhas, e embora não descobrisse o menor vulto, ela pressentia a proximidade do sertanejo e fôra para certificar-se que usara da astúcia de pronunciar o nome de Arnaldo, chamando-o.
O ardil surtira efeito.
Mostrando-se, o sertanejo viera confirmar a suspeita de Águeda, e dera aso a uma nova intriga, que alí prontamente armou a arteira cigana, para escapar à sua vigilância e iludir-lhe a perspicácia.