Tornando à fazenda depois de oito dias de ausência, Arnaldo andava arisco e sem ânimo de aproximar-se de Flor.
Receava-se do ressentimento que a menina devia conservar contra êle por causa do desbarato a que reduzira a festa e o altar do casamento. Assim andava por longe, espiando às ocultas a formosura de sua santa, e matando as saudades que tinha curtido naqueles últimos dias.
A primeira vez que ousou chegar-se para os companheiros, Flor atirou-lhe desdenhosamente estas palavras:
— Bicho do mato!
— Onde andou você todo êste tempo, Arnaldo? perguntou Alina queixosa.
— Ainda você pergunta? Esteve com os seus companheiros, dele, os caitetú. Isto não sabe viver entre gente.
Arnaldo não respondeu. O que Flor dizia era a verdade; êle nascera para habitar no seio das florestas; era sertanejo da gema.
Jaime pouco mais demorou-se na fazenda. O capitão-mór aproveitou a partida de um parente seu do Aracatí para enviá-lo a Lisboa, onde o esperava o avô.
De novo espalhou-se o terror pelos campos de Quixeramobim. Anhamum, o feroz chefe dos Jucás, voltara à frente de quinhentos arcos, e desta vez para assaltar a Oiticica e tirar a desforra.
Logo divulgou-se a notícia, o capitão-mór preparou-se para receber os selvagens, os quais não se fizeram esperar. Uma noite chegaram êles à margem do Sitiá e anunciaram-se pela sua formidável podema de guerra. No dia seguinte as casas da fazenda estavam cercadas.
Por muitos dias não fizeram os selvagens a menor demonstração hostil; sentia-se que êles estavam perto, mas não se mostravam a descoberto. Esperavam ocasião azada para investir, ou queriam obrigar os sitiados a uma sortida.
Nisto deu-se por falta de duas pessoas na fazenda: Arnaldo e Aleixo Vargas. A crença geral foi que tinham ambos caído nas mãos dos Jucás e já todos lamentavam a sua perda. Flor derramou lágrimas sentidas e copiosas por seu colaço e a pedido dela o capitão-mór ordenou uma sortida com o fim de livrar os dois prisioneiros, se ainda o fossem, e já não estivessem mortos.
Eis o que havia acontecido.
Arnaldo espiava o acampamento selvagem, à espreita de uma ocasião para encontrar-se com Anhamum. O rapaz tinha seu plano. Nisto Moirão levado pela curiosidade, afastou-se da casa mais do que devia, e foi empolgado pelos índios, que o levaram à ocara.
Viu Arnaldo que o Moirão estava perdido, e arrastado por um impulso de seu coração generoso, cuidou em salvá-lo. Os Jucás entretidos com o prisioneiro, não sentiram que eram seguidos às ocultas. Assim conseguiu chegar o vaqueirinho à ocara, onde logo acudiu Anhamum, avisado pelos brados de seus guerreiros.
Saltou-lhe Arnaldo em face, e apontando para o peito esquerdo do chefe, repetiu a palavra que êste pronunciara seis meses antes, na noite de sua evasão.
— Coapara!
Anhamum dirigiu ao rapaz um floreio de seu arco, saudação devida a um guerreiro ilustre; e depois uniu-se a êle, costa com costa, para significar-lhe a união em que estavam, o que era o mais estreito abraço da amizade.
Seguiu-se depois o diálogo da hospitalidade.
— Tu vieste?
— Vim.
— Sê benvindo ao campo de Anhamum, a quem salvaste.
A êsse tempo já os índios tinham despido o Moirão e distribuído as várias peças do seu vestuário que foram imediatamente reduzidas a tiras para servirem de faixas e cintas guerreiras.
Arnaldo exigiu de Anhamum duas coisas: primeiro, que êle não levantaria seu arco nunca mais contra os donos da Oiticica; segundo, a entrega do Aleixo Vargas. Anhamum preferia que o seu camarada lhe pedisse uma orelha, um ôlho, ou metade de seu sangue; mas não podia recusar nada ao seu salvador.
Nesse mesmo dia o chefe dos Jucás levantou a taba e Arnaldo voltou à Oiticica conduzindo o vargas. O que êle não levou foi a roupa dêste, e o nosso amigo Moirão para fazer uma entrada decente teve de embrulhar-se em fôlhas de banana, o que deu-lhe ares de uma enorme moqueca.
Depois dêstes acontecimentos, Arnaldo por mais de uma vez foi à taba dos Jucás, levantada à margem do rio a que êles deram o nome; e sua amizade com Anhamum estreitara-se ainda mais, com os mimos de armas que lhe fizera.
O chefe dos Jucás dera-lhe um aseta de seu arco, em penhor de aliança.
— Quando careceres do braço de Anhamum, envia-lhe esta seta, que êle correrá a defender-te.
De dia em dia as relações entre os dois colaços foram afrouxando, à medida que Flor tornava-se moça. A juventude que prendia mais a donzela à sala, por outro lado arrojava mais o sertanejo para o deserto.
Flor só o via de longe em longe; tratava-o, porém, com um modo afetuoso e muitas vezes, quando a ausência prolongava-se, ela o recebia com alguma demonstração mais expansiva, como sucedeu na sua volta do Recife.
Eram estas as recordações que a donzela ainda repassava na memória, recostada à janela, no momento em que arnaldo a avistou. Depois vieram as reminiscências dos últimos tempos até aquela tarde, em que o sertanejo excedera-se a ponto de forçá-la quase a um ato violento.
Tornando a si desta longa interrogação do passado, a donzela aterrou-se ante uma idéia que surgiu-lhe de chofre. Essa afeição que tinha a Arnaldo seria mais do que a simples amizade de uma irmã de criação por seu companheiro de infância?
Não. Ela, a filha do capitão-mór Cmapelo, não podiaa ver em um vaqueiro outra coisa senão um agregado da fazenda, ao qual dispensava um quinhão da estima protetora, que repartia com seus bons servidores, como a Justa, a Filipa e outros.
Daí em diante cumpria-lhe manter a distância que a separava do seu colaço, para que êste não a esquecesse outra vez, e de um modo tão grosseiro. Sentiu que havia de custar-lhe bastante envolver Arnaldo, a quem sempre distinguira com sua afabilidade, no mesmo trato frio e imperativo que usava com a gente da fazenda. Mas assim era preciso, e assim havia de ser.
Nunca a sua proteção faltaria a Arnaldo. Todos os sacrifícios ela os faria, sendo necessário, para poupar-lhe um desgôsto, e auxiliá-lo nos trabalhos da vida. O que vedava-lhe o seu decôro, era a confiança e familiaridade, em que até alí havia consentido com tamanha imprudência.
A resolução da donzela e o esfôrço que lhe tinha custado, refletiam-se em sua fisionomia severa e altiva, quando ao toque de ave-maria, ela saíu ao terreiro e foi beijar a mão dos pais.
Arnaldo a seguira com os olhos cheios dalma. A donzela ao voltar-se o avistara; mas desviou dele a vista, sem a menor perturbação ou sobressalto, com uma indiferença plácida e fria, que traspassou o coração do sertanejo.
Adivinhou que Flor acabava de separar-se dele para sempre.
Depois de Trindades, D. Genoveva chamou a filha e levou-a à presença do capitão-mór, que esperava sentado no canapé.
— D. Flor, minha filha, a senhora chegou à idade de tomar estado; e nossa obrigação, era procurar-lhe um marido, digno por suas prendas de merecer aquela a quem mais prezamos no mundo. Lembrámo-nos de seu primo Leandro Barbalho, do Ouricurí, filho do falecido Cosme Barbalho, homem de prol, a quem o filho não desmentiu nas obras:
— Aceito; meu pai; basta ser de sua escolha, para que eu o tenha no melhor conceito.
Campelo comunicou à filha que nesse mesmo dia despachara um portador com carta ao Leandro Barbalho, o qual breve estaria na Oiticica, e agradando a D. Flor, como era de esperar, se trataria logo das bodas.
O que não disse o capitão-mór fo o motivo de tamanha pressa. Não lhe saía da lembrança o dito de Fragoso; e receoso de que pela intercessão de algum santo, ou por artes ocultas, conseguisse o despeitado mancebo abrandar-lhe o ânimo, pensou que o melhor esconjuro contra êsse malefício era casar quanto antes a filha.
D. Flor, que outrora assustava-se com a idéia do casamento, aceitou-a nessa ocasião com um modo pressuroso que não lhe era habitual. Porventura entrevia ela na sua aliança conjugal, um apôio para a resolução que tomara, e da qual ainda receava desviar-se?
À noite, pouco antes do toque de recolher, chegaram à Oiticica dois viajantes: uma dama que trajava de luto, ajoelhou-se aos pés do potentado.
— Sou uma desventurada, que vem pedir ao sr. capitão-mór Campelo, como pai dos pobres e a Providência dêstes sertões, agasalho e proteção contra seus perseguidores.
— Agasalho terá, que a ninguém se nega na oiticica; proteção, a darei se a merecer; mas primeiro diga para o que a pede, mulher!
— É tarde, e eu não quero pagar com incômodo da família a hospitalidade que vossa senhoria me concede. Se o sr. capitão-mór dá licença, eu deixarei para amanhã relatar-lhe minhas desgraças.
— Amanhã a ouviremos.
D. Genoveva já tinha dado ordem para preparar-se um aposento, no qual foi ela própria, com Flor, instalar a dama, que lhes captara as simpatias, não só por sua desventura, como por seu modo, ao mesmo tempo digno e modesto.
Quando a desconhecida ergueu o crepe que a velava de dó, sua beleza deslumbrante produziu nas duas damas um movimento de ingênua admiração. Não se recordavam de ter visto semblante tão formoso. Flor era aos olhos da mãe o tipo da graça e da gentileza; mas não tinha a fascinação que derramavam os olhos negros e aveludados da desconhecida.
Soube então D. Genoveva que sua hóspede chamava-se Águeda, e era viúva. Como, porém, com a lembrança recente de seu infortúnio desatasse em pranto, a fazendeira depois de a consolar, retirou-se para não perturbar-lhe o repouso de que devia carecer.
No outro dia, logo pela manhã, veio Águeda à presença do capitão-mór, trazida por D. Genoveva, a qual a animava com a esperança de obter a proteção que viera solicitar do dono da Oiticica.
— Diga o seu agravo, mulher, e conte que lhe faremos justiça, determinou o capitão-mór com a gravidade de um desembargador daquele tempo, que os de hoje são mais gaiteiros.
— Com a justiça infalível do sr. capitão-mór conto eu, que a sua fama corre todo êste sertão, e não há quem não a conheça e louve e respeite, pois nunca faltou ao pobre e desvalido; e assim não abandonará esta mísera viúva, que vivia afortunada e na abastança, mas agora aquí está a seus pés, desgraçada, sem marido, sem abrigo, na maior penúria, e tudo por quê? Só porque na sua casa venerava-se acima de tudo o nome do capitão-mór Gonçalo Pires Campelo.
— Que diz, mulher? exclamou o dono da Oiticica com um estremeção que fez estalar a poltrona.
— É a verdade, sr. capitão-mór. Vossa senhoria talvez não se lembre de meu marido, o Tomaz Nogueira?
— O Tomaz Nogueira? repetiu o capitão-mór, interrogando a memória.
— Da Barbalha, acrescentou a viúva.
O fazendeiro consultou com o olhar a D. Genoveva, ao capelão e ao ajudante, que eram os três arquivos ou canhenhos dos fastos de sua vida; mas nenhum recordava-se do nome pronunciado pela viúva.
— Meu marido conheceu o sr. capitão-mór Campelo no Icó, de vista, que de fama já o conhecia desde pequeno; e tal era a veneração que tinha por vossa senhoria que muitas vezes me dizia: « Olha, Águeda, se não fosse minha mãe estar já tão velhinha e não querer por coisa alguma sair da Barbalha, com certeza mudava-me para o Quixeramobim só para ter o gôsto de servir ao capitão-mór Campelo. Aquilo é que é homem! El-rei escreve a êle todos os anos com muitas partes para agradá-lo, porque tem mêdo que o capitão-mór não tome para si todo o sertão, com esta capitania do Ceará e mais a de Pernambuco. Que isto é só êle querer. El-rei bem sabe». E era uma vontade tão grande, que estava sempre a repetir.
— Tenho uma lembrança de seu marido, mulher, disse o capitão-mór. Parece-me que o vi no Icó, numa festa.
— É isso mesmo!
O Campelo não se recordava de tal Nogueira; mas entendeu que não podia ser alheio a um homem, que tinha por sua pessoa aquele profundo acatamento.
— Que aconteceu então a seu marido?
— Apareceu na Barbalha êste ano um tal Proença que foi toda a nossa desgraça.
— Um conhecido por Vareja? perguntou Campelo.
— O próprio. Êsse homem não sei por que tinha raiva do sr. capitão-mór, e então foi meu marido quem pagou; porque um dia apresentou-se em nossa casa com três cabras, e intimou ao sr. Nogueira, que pusesse a bôca em vossa senhoria, e o chamasse já e já de... Não me atrevo a dizer.
— Há de atrever-se, mulher, que lhe ordenamos nós. Chamasse de quê?
A viúva fez um esfôrço:
— De sapo cururú.
O capitão-mór que já a custo sofreava a cólera, saltou como uma explosão:
— Agrela, mande já sem demora encilhar os cavalos, que eu não durmo enquanto não ensinar o cabra! Vá aprontar a minha maca, D. Genoveva. Não ouve, senhora?
Enquanto a mulher e o ajudante saíam a cumprir suas ordens, o capitão-mór cruzava o terreiro a largos passos, sôfrego de montar a-cavalo. Amainando a refega da ira, caminhou para a viúva que ficara imóvel no mesmo lugar:
— E seu marido que fez, mulher?
— Nogueira? Não tinha que saber. Disse e repetiu que o sr. capitão-mór era o primeiro homem do mundo e a Providência desta terra, pelo que o havia de louvar sempre. Foi então que o malvado gritou: — «Pois eu faço tanto caso dele como de um surrão velho, e toma lá a prova». Matou meu marido, deitou fogo na casa...
Os soluços e lamentações da viúva eram abafados pela voz do capitão-mór que retumbava:
— Meu bacamarte, D. Genoveva! Onde estão êstes cavalos? Pegou no sono, Agrela? Anda com estas botas, negro do inferno?
Êsse Vareja era um sujeito de Russas. Tendo uma vez dito que o Campelo não era capitão-mór às direitas, porisso que o Quixeramobim ainda não subira a vila; e sabendo disso o potentado, mandou-o chamar, com o que tal mêdo tomou, que desapareceu, e não houve mais novas dele.
Por aquí se avaliará da gana que devia ter o capitão-mór, de agarrá-lo para pagar-se do novo e do velho.
D. Genoveva, a-pesar-de habituada a estas sortidas, afligira-se com aquela partida tão precipitada. A ausência do Campelo naquela ocasião a assustava: nem ela sabia por qual motivo. Entretanto não se animando a opor-se diretamente à resolução do marido, incumbiu a D. Flor dessa difícil missão.
A donzela exercia no ânimo do pai decidida influência, e isso provinha do dom que ela tinha de identificar-se com a sua vontade, de modo que cedendo-lhe, pensava o capitão-mór que cedia a si mesmo.
D. Flor não usou de nenhuma das razões em que a mãe insistira; não empregou argumento de família. Abundou no sentimento do pai; mas confessou-lhe que admirava-se de sua partida.
— Por quê?
— É dar muita importância a um vilão. Basta que mande buscá-lo por uma escolta. Que não dirão quando souberem que o capitão-mór Campelo abalou-se de sua fazenda para prender um bandoleiro?
— Pois mandarei o Agrela.
— Isto sim.
Nesta conformidade, deu o capitão-mór suas ordens; e o ajudante preparou-se para sair naquela mesma hora com uma escolta de cincoente homens.
Arnaldo chegava nesse momento, e a primeira vez que viu Águeda, experimentou uma sensação estranha, que se poderia chamar de acerba admiração. A esplêndida beleza dessa mulher, que o arrebatava a seu pesar, fazia-lhe mal, como se o fulgor que dela irradiava lhe queimasse a alma.
Quando o sertanejo soube da próxima partida do Agrela, ficou preocupado. Podia o ajudante demorar-se na expedição, e nesse tempo voltar o Fragoso de Inhamuns.
Antes demeio-dia partiu a escolta. Já iaa na várzea, quando saíu-lhe ao encontro Arnaldo que aproximou do cavalo de Agrela o seu.
— Preciso falar-lhe, sr. ajudante.
— Da parte do sr. capitão-mór? perguntou Agrela secamente.
— Da minha.
— Que negócio pode haver entre nós? tornou o ajudante surpreso.
— O serviço dos donos da Oiticica, respondeu Arnaldo com o tom firme.
Agrela inclinou a cabeça com um sinal adesivo e demorou o cavalo, acenando à escolta que passasse adiante. Quando se acharam sós, voltou-se para o sertanejo.
— O que há?
— O sr. Agrela não me gosta; não sei a razão, nem a pergunto. Eu por mim não lhe quero mal, e espero que ainda havemos de ser amigos.
O ajudante comoveu-se com essa linguagem singela e nobre:
— Estimarei que assim aconteça.
— Mas não se trata de nós agora. A Oiticica vai ser atacada.
— Por quem? perguntou o ajudante surpreso.
— Pelo Marcos Fragoso.
— Como sabe?
— Sei; é quanto basta.
— Já avisou ao sr. capitão-mór?
— Não; e enm o avisarei.
— Por quê?
— Talvez me engane. Demais êsse Fragoiso é meu inimigo, e não posso denunciá-lo.
Agrela era homem para compreender semelhante suscetibilidade.
— Que devo eu fazer então? perguntou ao sertanejo.
— Voltar quanto antes.
— Conte comigo.
Os dois mancebos despediram-se. Eram duas almas nobres que sentiam-se atraídas pela estima recíproca; mas os acontecimentos as tinham separado, lançado entre elas um gérme de desconfiança.
Apartando-se do ajudante, Arnaldo esteve algum tempo a refletir, e encaminhou-se para a gruta.
— Um de nós deve partir.
— Para onde? perguntou Jó.
— Para a taba dos Jucás.
— Dá-me a seta.