Alice e suas amigas brincavam no jardim, umas folgando o jogo dos cantos, outras escolhendo flores para os ramalhetes que deviam ornar a capela e a ceia do Ano-Bom.
Era dia de São Silvestre; já tinha tocado uma hora da tarde no sino grande da fazenda.
Lúcio de esperto se encaixara no jogo dos cantos, onde as corridinhas, os sustos e os logros lhe ofereciam frequentes ocasiões de apertar a mão de Adélia, roçar-lhe as espáduas, e cingir-lhe a mimosa cintura, sem que isso causasse o menor reparo. Semelhante confusão é o chiste do jogo.
Alice, tendo transformado o Sr. Domingos Pais em uma espécie de jarra ambulante, mergulhandoo em um formidável molho de flores que ele mal abraçava, deixou-o no meio do jardim, como um vaso de barro cozido, e chamou para servir-lhe de parelha ao Frederico. Foi um meio de desembaraçar a amiga da presença do moço, que naturalmente acanhava a ela e ao Lúcio.
As duas meninas traziam o mesmo trajo do dia de Natal, com uma pequena modificação. Alice sobre o vestido de raminhos verdes deitara um cinto de flor de alecrim, e Adélia ornara o seu vestido escarlate com laços de fita verde.
A chegada de Mário transtornou completamente o bem combinado plano. Alice contente por ver seu companheiro de infância, não ocupou-se mais senão dele. Frederico aproveitando-se da distração da moça, acumulou sobre o Domingos Pais a sua carga de flores, e voltou ao jogo, pelo que Lúcio retirou-se, agastado com Adélia por não fazer outro tanto.
Desde alguns dias, Mário andava arredio da família do barão e da sociedade reunida na Casa Grande.
Pretextando o desejo de visitar os sítios que vira outrora, na infância, e percorrer os arredores, pouca ou nenhuma parte tomara nos folguedos e divertimentos em que se passara o intermédio do Natal ao Ano-Bom.
Imagine-se pois qual devia ser o contentamento de Alice vendo aparecer o moço no jardim. Correu a seu encontro desfeita em risos e tão alvoraçada de prazer, que não reparou na estranha fisionomia que tinha Mário naquele momento. Sob a máscara polida que a educação impõe ao homem da boa sociedade, via-se brilhar em seus olhos o lívido lampejo da tormenta, e borbulhar em seus lábios a gota de fel.
— Já sei que vem me ajudar a fazer um ramalhete para esta noite! De que há de ser, de violetas ou de cravos brancos?
— O Senhor Frederico é mais próprio para essa tarefa. Não quero usurpar direitos alheios!
O tom, mais do que as palavras, feriu o coração de Alice, magoada pelo frio desdém com que Mário lhe respondia.
— Enfadou-se comigo!
— Enfadar-me por tão pouco... Não, senhora; era preciso que não tivesse outras cousas e bem sérias para ocupar-me o espírito.
Ditas estas palavras, o moço afastou-se de Alice com uma cortesia delicada mas glacial, e aproximou-se do lugar onde brincavam os quatro cantos. Recostado ao tronco de uma árvore, entreteve-se durante algum tempo em ver o folguedo, trocando algumas palavras com Adélia e Frederico.
A filha de D. Luíza a pouco e pouco tomou interesse na conversa do moço e deixando o jogo veio sentar-se no banco de relva próximo à árvore onde ele se apoiava. Mário, até então sóbrio na conversação e reservado no trato, revelou nesse dia a vivacidade de seu espírito e a distinção de suas maneiras. Contou impressões e curiosos incidentes de viagem com uma frase singela e amena, que a todos encantava.
Adélia, surpresa da preferência que lhe dava o engenheiro, mostrava-se em princípio acanhada; mas a pouco e pouco atraída pelo prazer da conversação, correspondeu às delicadas atenções do moço, pelo que Lúcio e Frederico se afastaram arrufados.
Entretanto Alice continuava maquinalmente na sua colheita de ramos, observando de parte a conversação animada dos dois moços. Ainda possuída pelo assombro que lhe causaram os modos estranhos de Mário, a menina perdia-se em conjeturas sobre a razão dessa brusca mudança. Teria o moço levado a mal que ela chamasse o Frederico para segurar as flores junto de si?
Na esperança de apagar do espírito do moço aquela sombra de ressentimento, qual fosse a causa, a menina fazendo uma volta pelos alegretes do jardim, aproximou-se hesitando do banco onde estava Adélia sentada.
A filha de D. Luíza que fazia os últimos gastos da conversa animada que tivera com Mário, continuou sem interromper-se, ou porque não se apercebesse da presença da amiga, ou por não recear-se de ser ouvida.
— Já vai? perguntava ela com certa inflexão entre carinhosa e zombeteira, cheirando uma rosa que tirou do decote.
— Se me demorar mais tempo, pode haver alguma catástrofe, respondeu Mário sorrindo. Felizmente não está admitido entre nós o uso do duelo, o grande recurso dos romancistas, senão podia gabar-se de ter neste quarto de hora arranjado uns dois pelo menos.
— Que pena! E fico eu sem esse triunfo?
— Não lhe faltarão outros mais esplêndidos.
— Nenhum vale este! acudiu Adélia brincando com a flor e roçando as pétalas nas faces.
— Depois desta, vou-me decididamente embora.
— Pretende eclipsar-se de novo deixando-nos às escuras, como estes dias passados em que ninguém o viu a não ser no jantar e isso mesmo de relance? Onde andou todo esse tempo? Passeando... só?... perguntou Adélia com o mesmo tom de maliciosa afabilidade.
Mário ficara pensativo.
— Passeando, repetiu ele quase maquinalmente.
— Tanto lhe aborrecem as nossas reuniões, que o senhor prefere ver os matos! Pela minha parte agradeço-lhe a fineza.
— Nem sempre, D. Adélia, é essa a causa de nos afastarmos.
Estas palavras foram ditas com uma entonação profunda.
— Qual é a outra? inquiriu a moça reparando na expressão de Mário.
— Algumas vezes é ao contrário o terror de uma sedução funesta, que nos faria esquecer os mais santos deveres. É preciso então fugir, abrigar-se no seio das florestas, no regaço das recordações da infância, nesse berço de nossa alma, onde a natureza a acalentou nos primeiros anos da vida. É preciso ver os sítios e os objetos que foram nossos camaradas de infância, com quem brincamos e que, amigos leais, guardaram puras e intactas as nossas confidências pueris, o segredo de nossas paixões de menino. Parece com o exilado quando volve à pátria, esse homem que remontando o curso da vida, se transporta aos dias da sua infância e...
Súbito, Mário que se deixara arrebatar pela expansão de um sentimento recalcado no íntimo, sofreou a palavra e tornou a si daquela emoção. Outra vez o toque do jovial galanteio se derramou pelo semblante do moço.
— Não procure pois outro motivo. Foi com medo da tentação que me escondi. E veja se não tinha razão! A que tempo estou para ir-me embora e sem ânimo de afastar-me?...
Adélia, tomada pela expressão grave que ressumbrava na fisionomia do mancebo, enquanto ele falava de sua infância, deixara inadvertidamente resvalar entre os dedos a rosa com que antes brincava. Despertada pelo novo gracejo, respondeu com um sorriso:
— Então sempre caiu na tentação?
— Como resistir, se estou preso por este condão? Veja!
E Mário mostrou na gola do fraque, presa à casa do botão, a rosa que ele havia rapidamente apanhado do chão aos pés da moça.
Um som indefinível, como de um soluço ou gemido sufocado, escapou-se dos lábios de Alice, envolto em um riso angustiado. A menina sentira trincar-lhe o coração o dente de um áspide, ao ouvir as últimas palavras de Mário; com a vista escura pela vertigem, foi obrigada a segurar-se ao ramo de um arbusto para não cair.
Antes que os outros se apercebessem de seu abalo, a menina fazendo um esforço, recuperou, não a calma, mas a resignação.
— Fica, Adélia? perguntou à amiga com um timbre doce, mas triste.
— Não; vamos todos.
— Com licença, disse Mário indo-se.
Alice vendo afastar-se Mário, sentiu um contentamento inexplicável, no meio da tristeza que se tinha derramado em sua alma. Lembrou-se que, separando-se dela embora, o mancebo afastava-se de Adélia; e portanto naquele momento ao menos não trocariam os olhares e os sorrisos que ela observara.