Era impossível a Alice atinar com a causa da súbita mudança de Mário.

O próprio mancebo, se o interrogassem, talvez não conseguisse explicar a revolução profunda, que durante os últimos dias se tinha operado em seu moral.

Apartando-se na idade de 15 anos da Fazenda do Boqueirão, era natural que a impressão dos lugares onde passara a infância, fosse a pouco e pouco diminuindo em seu espírito adolescente; e com essa impressão, as recordações das travessuras e despeitos de sua meninice.

O que a ausência começara, completou a curiosidade sôfrega de uma inteligência vivaz, transportada repentinamente da solidão de uma fazenda ao bulício de uma grande cidade, como o Rio de Janeiro. O aspecto dessa aglomeração de casas e povo; o tumulto incessante das ruas; a exuberância febril da vida a pulular em toda a parte, pelos mil poros da grande praça mercantil, aturdiram o menino, por modo que durante muitos meses seu espírito sentiu um como azoamento.

Mal se ia habituando ao constante burburinho que o cercava e fervia dentro no próprio colégio frequentado por cerca de trezentos alunos, quando ocorreu o falecimento de D. Francisca, vítima da moléstia de peito de que padecia desde anos.

Apesar de seu gênio seco e ríspido, Mário amava extremosamente sua mãe. Sem estrépito, nem manifestações ruidosas, curtiu a dor da perda que sofrera. Talvez não o vissem lamentar-se ou soluçar no dia da notícia; porém muito tempo depois, ainda o menino de vez em quando sentia os olhos molharem-se de repente e um suspiro cortar-lhe a voz.

A morte de D. Francisca determinou uma resolução, que veio a influir na existência de Mário.

Tendo-se incumbido do futuro do menino, o barão lembrou-se de mandá-lo à Europa, a fim de concluir seus estudos em um colégio francês. Porventura esperava ele que a residência por muitos anos em um país estrangeiro, e a influência de ideias e costumes diversos, gastariam no caráter de Mário certas asperezas, e apagariam no seu espírito vagas suspeitas que lhe tinham imbuído em tenros anos.

Passando da capital do império à capital do mundo, teve o menino segundo e talvez maior aturdimento. A grande cidade, hoje manietada pelo inimigo e prestes a baquear, estava então na intensidade de seu fulgor. Nenhum estrangeiro penetrava nesse grande foco da civilização, que não sofresse um deslumbramento.

Mário, adolescente ainda, tolhido não só pelo natural acanhamento da idade, como pela vigilância dos correspondentes, não podia conhecer as delícias dessa voluptuosa Babilônia, cuja devassidão a cólera celeste se preparava a punir, suscitando o velho espírito germânico do pó daquela terra, donde saíram outrora os demolidores de Roma.

Todavia a eletricidade moral dessa atmosfera comunicava-se à alma do menino e produzia nela choques e repercussões íntimas que brandiam as fibras mais recônditas de seu organismo. Ele não via, mas pressentia, que em torno de si agitava-se o tropel de uma civilização chegada ao apogeu.

Sucedeu o que esperava o barão. Um espírito jovem, ao despontar da juventude, não podia resistir a abalos, capazes de subverter uma alma já adulta e um caráter formado. Desprendendo-se da primeira quadra de sua infância, talvez sopitando-a apenas, o menino foi-se moldando pelo exemplo da nova sociedade em cujo seio vivia, e pelo influxo dos conhecimentos que rapidamente adquirira; porque sua inteligência, como a semente cheia de seve, caindo na leiva na civilização, começara logo a pulular com viço admirável.

Mais tarde, já passados os dezoito anos, depois que a vida do homem transpõe esse breve limbo que separa a mocidade da adolescência, quando o homem apenas surgido das ilusões, atônito de si mesmo, coteja-se como o menino que era ontem, e a criança que foi outrora; nesses momentos de auscultação d'alma, as reminiscências dos primeiros anos refluíam de chofre ao coração de Mário, e submergiam por instantes as impressões da vida parisiense e as preocupações do moço estudante.

Essas evocações de um passado que parecia extinto, vinham involuntariamente e muitas vezes por um singular contraste em ocasiões que pareciam mais próprias para impedi-las. Em uma festa; nos teatros e passeios mais frequentados; no meio dos ledos ruídos da multidão em júbilo; o pensamento isolava-se-lhe irresistivelmente desse mundo repleto de comoções e prazeres, para ir em demanda daquele canto obscuro, que fora o ninho de sua alma implume.

Despertando afinal, Mário sentiu sempre, como dissera a Alice, um desgosto profundo. Aquela introversão vascolejava-lhe o fel dentro d'alma. O mancebo de ânimo generoso e delicado revoltava-se contra o gênio irritável e rústico do menino que tinha sido. Muitas vezes corou de vergonha recordando alguma pirraça mais censurável de seus primeiros anos.

Tinha ele o direito, por simples e vagas suspeitas, de odiar o barão a quem devia a subsistência de sua mãe e sua? Não era indigno dele que aproveitava do benefício, em vez de se enobrecer pela gratidão, ao contrário se rebaixar por um despeito insultante? Fora justo além disso estender a culpa, se culpa houvesse, a toda a família desse homem, e até a uma inocente menina, a um anjo que o estremecia, como a irmão, e a quem ele próprio Mário apesar de sua arrogância queria bem?

O estigma que o mancebo infligia à sua infância, era nimiamente severo, mas ele achava-o justo. O que o dominara naqueles primeiros tempos, não fora o respeito e amor à memória paterna; mas inveja de ver possuída por outrem uma riqueza que ele acreditava pertencer à sua família.

Entretanto não se deixava o passado condenar sem reagir com energia. Uma voz íntima, submissa, vaga, mas incessante como o estalido da filtração que mina gota a gota do coração do rochedo; voz de mofa, importuna e irônica, murmurava-lhe:

— Chamas inveja à repugnância que a virtude experimenta pelo crime; grosseria, às repulsas da dignidade ultrajada; loucura, às angústias e tribulações de uma criança, forçada pelo desamparo a aceitar a subsistência da mão que talvez assassinou-lhe o pai, e a receber como esmola humilhante as migalhas de uma riqueza que talvez lhe foi roubada! Não há dúvida! o Sr. Mário Figueira civilizou-se! Adquiriu essa admirável ciência que ensina a ir com o mundo; a aceitá-lo como ele é realmente, e não como o sonham os moralistas. O barão, alma de têmpera antiga, tipo raro da amizade, lembrado dos benefícios que devia a José Figueira, se desvela em proteger o filho de seu amigo. É essa a realidade da situação. Por que pois o Sr. Mário Figueira não há de afagar um tão nobre e generoso patrono, e tirar dele todo o proveito possível enquanto não aparece causa melhor? Se no futuro se descobrir que o barão espoliou com efeito a seu amigo, melhor, porque restituirá o que roubou; se nada se descobrir, ao menos não se perdeu tudo!

Debalde porfiava Mário por sufocar essa voz sardônica, ou com as elucubrações do estudo ou com o torvelinho do baile; o latejo da consciência batia dia e noite a todo instante como a pulsação de uma artéria. Só depois de algum tempo, quando se aplacava o tédio deixado pelas recordações da infância, calava-se o eco do passado.

Semelhantes crises com o correr do tempo se tornaram mais raras e no último ano da estada do mancebo em Paris não se reproduziram; ou porque o tempo gastasse aquela corda d'alma, ou porque as preocupações de estudos mais graves e da próxima volta à pátria lhe tomassem todo o espírito por forma que não deixava presa para outros cuidados.

Tendo obtido o bacharelado em engenharia, como três anos antes o obtivera em letras, Mário regressou afinal ao Brasil depois de uma ausência de cerca de sete anos.

O alvoroço de rever a pátria, que aliás era uma desconhecida para quem a deixara menino e vindo de uma fazenda do interior; o atrativo das festas do Natal em que ele, quase estrangeiro, farto dos bailes e divertimentos parisienses, achava o encanto da novidade e um perfume ingênuo e agreste que penetrava-lhe os seios d'alma; o acolhimento da família que o recebeu como a um filho, e mais que tudo a afetuosa ternura de Alice, tratando-o com a meiguice respeitosa de uma irmã pelo irmão mais velho; essas doces emoções absorveram tanto a existência do moço nos primeiros dias, que seria impossível às recordações surdirem do jazigo do coração onde estavam acamadas desde tanto tempo.

Mas de repente começou Mário a sentir as vibrações do passado; e era a voz carinhosa de Alice, que sem o saber feriu n'alma de seu camarada de infância aquelas teclas dolorosas. A ingênua menina obedecia à necessidade de expansão irresistível depois de tão longa ausência. Todas as saudades que durante sete anos ela tinha escondido em seu coração de menina, agora desfraldavam as asas e borboleteavam em sua imaginação, afagadas pelo doce alumbre da esperança.

Mal sabia ela que essas recordações, se eram em seus meigos sonhos silfos de asas douradas, se transformavam para Mário em vespas que pungiam-lhe os seios da alma. Por diversas vezes o mancebo sofreu aquele íntimo remordimento e conseguiu abafá-lo, até que a insistência de Alice no pomar arrancou-lhe, mau grado, a revelação da luta que desde muito se travara nele, entre o presente e o passado, entre o homem e a criança.

A gazil afabilidade de Alice e sua gentileza tinham já serenado o espírito de Mário, quando por ocasião do batuque dos pretos, um incidente veio exacerbar todas as nobres suscetibilidades dessa alma. Foram as alusões feitas pelas negras velhas ao casamento de Alice com ele, fato que elas tinham como certo e próximo. Foi a tolerância com que a família, desde seu chefe, deixou passar aquela indiscreta liberdade. Mas sobretudo, impressionaram ao moço as palavras que o barão deixara escapar nessa ocasião.

Afigurou-se a Mário que seu casamento com Alice era um projeto já resolvido pela família e divulgado entre os estranhos, ignorado unicamente por ele de cujo destino dispunham sem darem-se ao trabalho, não só de consultá-lo, mas até de preveni-lo. Contavam com seu consentimento, como cousa infalível. Um moço pobre, educado por caridade, sem arrimo nem futuro, podia nunca recusar o mais rico dote daquele município quando lho ofereciam de mão beijada e com uma noiva tão bonita?

Esta suposição, aliás em boa parte inexata, trabalhou o espírito do mancebo durante o resto da noite. Por mais que fizesse para corresponder às efusões de Alice, partilhando seu contentamento; embora se atirasse à dança com o sentido de atordoar-se, não lhe saíam da mente aquelas repugnâncias, que aí se tinham insinuado.

No dia seguinte, Mário ergueu-se ao romper d'alva. A noite fora para ele de insônia: passara-a revolvendo o corpo no leito e o pensamento nas cinzas do passado. Devorava-lhe o seio uma sede imensa de luz, de espaço, de movimento.

Desceu no jardim; sem intenção formada, levado por um forte impulso, fez uma longa excursão pelos matos e campos, visitando os sítios de que tinha guardado a lembrança, reconhecendo outros que havia de todo esquecido, notando as mudanças operadas durante a ausência nos objetos seus conhecidos. Aqui era um tronco morto que o fogo abrasara; ali um arbusto que se fizera árvore.

Deu-se então um fenômeno mais comum do que se pensa, uma espécie de ressurreição moral. Quantas vezes a índole natural do indivíduo, sopitada pela educação, tolhida pelas circunstâncias, não ressurge mais tarde com extrema veemência?

Ao contacto daquelas devesas, no fundo desses campestres, Mário sentiu que outro ser, diferente, crescia dentro do seu, insinuava-se pelos refolhos d'alma, e tomava posse dele; e este ser não era senão o do órfão que outrora ali vivera.

A alma desse menino ficara em hibernação no seio daqueles ermos; e despertando agora depois de longos anos de entorpecimento, voltava a animar o corpo onde outrora habitara. Mário a bebia a tragos no ambiente que inspirava, na fragrância das flores, nos estos da brisa, nos borbotões da luz que jorrava no espaço.

O dia inteiro, o mancebo passou-o no campo; almoçou frutas do mato como tantas vezes fizera outrora; e em vez de jantar merendou na cabana de Benedito.

Quem nessa noite se recolheu à Casa Grande não foi o jovem doutor chegado ultimamente da Europa, mas o órfão de outrora com todas as suas paixões.