CANTO TERCEIRO

 

Já a noſſa do Mundo ultima Parte
Tinha voltado[1] a enſanguentada fronte
Ao centro luminar quando a campanha
Semeada de mortos e inſepultos
Vio desfazer-ſe a um tempo a vila errante
Ao ſom das caixas. Deſcontente e triſte
Marchava o General: não ſofre o peito
Compadecido e generoſo a viſta

Daqueles frios e ſangrados corpos,

Vítimas da ambição de injuſto império.
Forão ganhando e deſcobrindo terra
Inimiga e infiel; até que um dia
Fizerão alto e ſe acamparão onde
Incultas várgeas, por eſpaço imenſo,
Enfadonhas e eſtéreis acompanham
Ambas as margens de um profundo rio.
Todas eſtas vaſtíſſimas campinas
Cobrem paluſtres e tecidas canas
E leves juncos do calor toſtados,
Pronta matéria de voraz incêndio.
O índio habitador de quando em quando
Com eſtranha cultura entrega ao fogo;
Muitas léguas de campo: o incêndio dura,
Enquanto dura e o favorece o vento.
Da erva, que renaſce, ſe apaſcenta

O imenſo gado, que dos montes deſce;
E renovando incêndios deſta ſorte

A Arte emenda a Natureza, e podem
Ter ſempre nédio o gado, e o campo verde.
Mas agora ſabendo por eſpias
As noſſas marchas, conſervavão ſempre
Secas as torradíſſimas campinas;
Nem conſentiam, por fazer-nos guerra,
Que a chama benfeitora e a cinza fria
Fertilizaſſe o árido terreno.
O cavalo até li forte e brioſo,
E coſtumado a não ter mais ſuſtento,
Naqueles climas, do que a verde relva
Da mimoſa campina, deſfalece.
Nem mais, ſe o ſeu ſenhor o afaga, encurva
Os pés, e cava o chão co’as mãos, e o vale
Rinchando atroa, e açouta o ar co’as clinas.
Era alta noite, e carrancudo e triſte

Negava o céu envolto em pobre manto
A luz ao mundo, e murmurar ſe ouvia

Ao longe o rio, e menear-ſe o vento.
Reſpirava deſcanſo a natureza.
Só na outra margem não podia entanto
O inquieto Cacambo achar ſoſſego.
No perturbado interrompido ſono
(Talvez foſſe iluſão) ſe lhe apreſenta
A triſte imagem de Sepé deſpido,
Pintado o roſto do temor da morte,
Banhado em negro ſangue, que corria
Do peito aberto, e nos piſados braços
Inda os ſinais da míſera caída.
Sem adorno a cabeça, e aos pés calcada
A rota aljava e as deſcompoſtas penas.
Quanto diverſo do Sepé valente,
Que no meio dos noſſos eſpalhava,
De pó, de ſangue e de ſuor coberto,

O eſpanto, a morte! E diz-lhe em triſtes vozes:
Foge, foge, Cacambo. E tu deſcanſas,

Tendo tão perto os inimigos? Torna,
Torna aos teus boſques, e nas pátrias grutas
Tua fraqueza e deſventura encobre.
Ou, ſe acaſo inda vivem no teu peito
Os deſejos de glória, ao duro paſſo
Reſiſte valeroſo; ah tu, que podes!
E tu, que podes, põe a mão nos peitos
À fortuna de Europa: agora é tempo,
Que deſcuidados da outra parte dormem.
Envolve em fogo e fumo o campo, e paguem
O teu ſangue e o meu ſangue. Aſſim dizendo
Se perdeu entre as nuvens, ſacudindo
Sobre as tendas, no ar, fumante tocha;
E aſſinala com chamas o caminho.
Acorda o índio valeroſo, e ſalta
Longe da curva rede, e ſem demora

O arco e as ſetas arrebata, e fere
O chão com o pé: quer ſobre o largo rio

Ir peito a peito a contraſtar co’a morte.
Tem diante dos olhos a figura
Do caro amigo, e inda lhe eſcuta as vozes.
Pendura a um verde tronco as várias penas,
E o arco, e as ſetas, e a ſonora aljava;
E onde mais manſo e mais quieto o rio
Se eſtende e eſpraia ſobre a ruiva areia
Penſativo e turbado entra; e com água
Já por cima do peito as mãos e os olhos
Levanta ao céu, que ele não via, e às ondas
O corpo entrega. Já ſabia entanto
A nova empreſa na limoſa gruta
O pátrio rio; e dando um jeito à urna
Fez que as águas correſſem mais ſerenas;
E o índio afortunado a praia opoſta
Tocou ſem ſer ſentido. Aqui ſe aparta

Da margem guarnecida e manſamente
Pelo ſilêncio vai da noite eſcura

Buſcando a parte donde vinha o vento.
Lá, como é uſo do país, roçando
Dous lenhos entre ſi, deſperta a chama,
Que já ſe ateia nas ligeiras palhas,
E velozmente ſe propaga. Ao vento
Deixa Cacambo o reſto e foge a tempo
Da perigoſa luz; porém na margem
Do rio, quando a chama abraſadora
Começa a alumiar a noite eſcura,
Já ſentido dos guardas não ſe aſſuſta
E temerária e venturoſamente,
Fiando a vida aos animoſos braços,
De um alto precipício às negras ondas
Outra vez ſe lançou e foi de um ſalto
Ao fundo rio a viſitar a areia.
Debalde gritam, e debalde às margens

Corre a gente apreſſada. Ele entretanto
Sacode as pernas e os nervoſos braços:

Rompe as eſcumas aſſoprando, e a um tempo
Suſpendido nas mãos, voltando o roſto,
Via nas águas trêmulas a imagem
Do arrebatado incêndio, e ſe alegrava...
Não de outra ſorte o cauteloſo Uliſſes,
Vaidoſo da ruína, que cauſara,
Viu abraſar de Tróia os altos muros,
E a perjura cidade envolta em fumo
Encoſtar-ſe no chão e pouco a pouco
Deſmaiar ſobre as cinzas. Creſce entanto
O incêndio furioſo, e o irado vento
Arrebata às mãos cheias vivas chamas,
Que aqui e ali pela campina eſpalha.
Comunica-ſe a um tempo ao largo campo
A chama abraſadora e em breve eſpaço
Cerca as barracas da confuſa gente.

Armado o General, como ſe achava,
Saiu do pavilhão e pronto atalha,

Que não proſſiga o voador incêndio.
Poucas tendas entrega ao fogo e manda,
Sem mais demora, abrir largo caminho
Que os ſepare das chamas. Uns já cortam
As combuſtíveis palhas, outros trazem
Nos prontos vaſos as vizinhas ondas.
Mas não eſpera o bárbaro atrevido.
A todos ſe adianta; e deſejoſo
De levar a notícia ao grande Balda
Naquela meſma noite o paſſo eſtende.
Tanto ſe apreſſa que na quarta aurora
Por veredas ocultas viu de longe
A doce pátria, e os conhecidos montes,
E o templo, que tocava o céu co as grimpas.
Mas não ſabia que a fortuna entanto
Lhe preparava a última ruína.

Quanto ſeria mais ditoſo! Quanto
Melhor lhe fora o acabar a vida

Na frente do inimigo, em campo aberto,
Ou ſobre os reſtos de abraſadas tendas,
Obra do ſeu valor! Tinha Cacambo
Real eſpoſa, a ſenhoril Lindóia,
De coſtumes ſuavíſſimos e honeſtos,
Em verdes anos: com ditoſos laços
Amor os tinha unido; mas apenas
Os tinha unido, quando ao ſom primeiro
Das trombetas lho arrebatou dos braços
A glória enganadora. Ou foi que Balda,
Engenhoſo e ſutil, quis deſfazer-ſe
Da preſença importuna e perigoſa
Do índio generoſo; e deſde aquela
Saudoſa manhã, que a deſpedida
Preſenciou dos dous amantes, nunca
Conſentiu que outra vez tornaſſe aos braços

Da formoſa Lindóia e deſcobria
Sempre novos pretextos da demora.

Tornar não eſperado e vitorioſo
Foi todo o ſeu delito. Não conſente
O cauteloſo Balda que Lindóia
Chegue a falar ao ſeu eſpoſo; e manda
Que uma eſcura priſão o eſconda e aparte
Da luz do ſol. Nem os reais parentes,
Nem dos amigos a piedade, e o pranto
Da enternecida eſpoſa abranda o peito
Do obſtinado juiz: até que à força
De deſgoſtos, de mágoa e de ſaudade,
Por meio de um licor deſconhecido,
Que lhe deu compaſſivo o ſanto padre,

Jaz o iluſtre Cacambo - entre os gentios
Único que na paz e em dura guerra

De virtude e valor deu claro exemplo.
Chorado ocultamente e ſem as honras
De régio funeral, deſconhecida
Pouca terra os honrados oſſos cobre.
Se é que os ſeus oſſos cobre alguma terra.
Cruéis miniſtros, encobri ao menos
A funeſta notícia. Ai que já ſabe
A aſſuſtada amantíſſima Lindóia
O ſuceſſo infeliz. Quem a ſocorre!
Que aborrecida de viver procura
Todos os meios de encontrar a morte.
Nem quer que o eſpoſo longamente a eſpere

No reino eſcuro, aonde ſe não ama.
Mas a enrugada Tanajura, que era

Prudente e exprimentada (e que a ſeus peitos
Tinha criado em mais ditoſa idade
A mãe da mãe da míſera Lindóia),
E lia pela hiſtória do futuro,
Viſionária, ſuperſticioſa,
Que de abertos ſepulcros recolhia
Nuas caveiras e eſburgados oſſos,
A uma medonha gruta, onde ardem ſempre
Verdes candeias, conduziu chorando
Lindóia, a quem amava como filha;
E em ferrugento vaſo licor puro

De viva fonte recolheu. Três vezes
Gyrou em roda, e murmurou três vezes

Co’a carcomida boca ímpias palavras,
E as águas aſſoprou: depois com o dedo
Lhe impõe ſilêncio e faz que as águas note.
Como no mar azul, quando recolhe
A liſonjeira viração as aſas,
Adormecem as ondas e retratam
Ao natural as debruçadas penhas,
O copado arvoredo e as nuvens altas:
Não de outra ſorte à tímida Lindóia
Aquelas águas fielmente pintam
O rio, a praia o vale e os montes onde

Tinha ſido Liſboa; e viu Liſboa
Entre deſpedaçados edifícios,

Com o ſolto cabelo deſcompoſto,
Tropeçando em ruínas encoſtar-ſe.
Deſamparada dos habitadores
A Rainha do Tejo, e ſolitária,
No meio de ſepulcros procurava
Com ſeus olhos ſocorro; e com ſeus olhos
Só deſcobria de um e de outro lado
Pendentes muros e inclinadas torres.
Vê mais o Luſo Atlante, que forceja
Por ſuſtentar o peſo deſmedido
Nos roxos ombros. Mas do céu ſereno
Em branca nuvem Próvida Donzela
Rapidamente deſce e lhe apreſenta,
De ſua mão, Eſpírito Conſtante,
Gênio de Alcides, que de negros monſtros
Deſpeja o mundo e enxuga o pranto à pátria.

Tem por deſpojos cabeludas peles
De enſangüentados e famintos lobos

E fingidas rapoſas. Manda, e logo
O incêndio lhe obedece; e de repente
Por onde quer que ele encaminha os paſſos
Dão lugar as ruínas. Viu Lindóia
Do meio delas, ſó a um ſeu aceno,
Sair da terra feitos e acabados
Viſtoſos edifícios. Já mais bela
Naſce Liſboa de entre as cinzas - glória
Do grande conde, que co’a mão robuſta
Lhe firmou na alta teſta os vacilantes
Mal ſeguros caſtelos. Mais ao longe

Prontas no Tejo, e ao curvo ferro atadas
Aos olhos dão de ſi terrível moſtra,

Ameaçando o mar, as poderoſas
Soberbas naus. Por entre as cordas negras
Alvejão as bandeiras: geme atado
Na popa o vento; e alegres e viſtoſas
Deſcem das nuvens a beijar os mares
As flâmulas guerreiras. No horizonte
Já ſobre o mar azul aparecia
A pintada Serpente, obra e trabalho
Do Novo Mundo, que de longe vinha
Buſcar as nadadoras companheiras
E já de longe a freſca Sintra e os montes,

Que inda não conhecia, ſaudava.
Impacientes da fatal demora

Os lenhos mercenários junto à terra
Recebem no ſeu ſeio e a outros climas,
Longe dos doces ares de Liſboa,
Tranſportão a Ignorância e a magra Inveja,
E envolta em negros e compridos panos
A Diſcórdia, o Furor. A torpe e velha
Hipocriſia vagaroſamente
Atrás deles caminha; e inda duvida
Que houveſſe mão que ſe atreveſſe a tanto.
O povo a moſtra com o dedo; e ela,
Com os olhos no chão, da luz do dia
Foge, e cobrir o roſto inda procura
Com os pedaços do raſgado manto.

Vai, filha da ambição, onde te levam
O vento e os mares: poſſão teus alunos

Andar errando ſobre as águas; poſſa
Negar-lhe a bela Europa abrigo e porto.
Alegre deixarei a luz do dia,
Se chegarem a ver meus olhos que Ádria
Da alta injúria ſe lembra e do ſeu ſeio
Te lança - e que te lanção do ſeu ſeio
Gália, Ibéria e o país belo que parte
O Apenino, e cinge o mar e os Alpes.
Pareceu a Lindóia que a partida

Deſtes monſtros deixava mais ſerenos
E mais puros os ares. Já ſe moſtra

Mais diſtinta a ſeus olhos a cidade.
Mas viu, ai viſta laſtimoſa! a um lado
Ir a fidelidade portugueſa,
Manchados os puríſſimos veſtidos
De roxas nódoas. Mais ao longe eſtava
Com os olhos vendados, e eſcondido
Nas roupas um punhal banhado em ſangue,
O Fanatiſmo, pela mão guiando
Um curvo e branco velho ao fogo e ao laço.
Geme ofendida a Natureza; e geme
Ai! Muito tarde, a crédula cidade.
Os olhos põe no chão a Igreja irada

E deſconhece, e deſaprova, e vinga
O delito cruel e a mão baſtarda.

Embebida na mágica pintura
Goza as imagens vãs e não ſe atreve
Lindóia a perguntar. Vê deſtruída
A República infame, e bem vingada
A morte de Cacambo. E atenta e imóvel
Apaſcentava os olhos e o deſejo,
E nem tudo entendia, quando a velha
Bateu co’a mão e fez tremer as águas.
Deſaparecem as fingidas torres
E os verdes campos; nem já deles reſta
Leve ſinal. Debalde os olhos buſcam
As naus: já não ſão naus, nem mar, nem montes,
Nem o lugar onde eſtiverão . Torna
Ao pranto a ſaudoſíſſima Lindóia
E de novo outra vez ſuſpira e geme.

Até que a noite compaſſiva e atenta,
Que as magoadas láſtimas lhe ouvira,

Ao partir ſacudiu das fuſcas aſas,
Envolto em frio orvalho, um leve ſono,
Suave eſquecimento de ſeus males.

Fim do Canto Terceiro.
  1. Voltado. He dito por hypotheſe.