Estando um pouco arrufado com a dama dos meus pensamentos, achei-me eu uma noite sem destino nem vontade de preencher o tempo alegremente, como convém em tais situações. Não queria ir para casa porque seria entrar em luta com a solidão e a reflexão, duas senhoras que se encarregam de pôr termo a todos os arrufos amorosos.
Havia espetáculo no Teatro de S. Pedro. Não quis saber que peça se representava; entrei, comprei uma cadeira e fui tomar conta dela, justamente quando se levantava o pano para começar o primeiro ato. O ato prometia; começava por um homicídio e acabava por um juramento. Havia uma menina, que não conhecia pai nem mãe, e era arrebatada por um embuçado que eu suspeitei ser a mãe ou o pai da menina. Falava-se vagamente de um marquês incógnito, e aparecia a orelha de um segundo e próximo assassinato na pessoa de uma condessa velha. O ato acabou com muitas palmas.
Apenas caiu o pano houve a balbúrdia do costume; os espectadores marcavam as cadeiras e saíam para tomar ar. Eu, que felizmente estava em lugar onde não podia ser incomodado, estendi as pernas e entrei a olhar para o pano da boca, no qual, sem esforço da minha parte, apareceu a minha arrufada senhora com os punhos fechados e ameaçando-me com olhos furiosos.
— Que lhe parece a peça, sr. Amaral?
Voltei-me para o lado de onde ouvira proferir o meu nome. Estava à minha esquerda um sujeito, já velho, vestido com uma sobrecasaca militar, e sorrindo amavelmente para mim.
— Admira-se de lhe saber o nome? perguntou o sujeito.
— Com efeito, respondi eu; não me lembro de o ter visto...
— A mim nunca me viu; cheguei ontem do Rio Grande do Sul. Também eu nunca o tinha visto, e no entanto conheci-o logo.
— Adivinho, respondi; dizem-me que me pareço muito com meu pai. Conheceu-o, não?
— Pudera! fomos companheiros d’armas. O coronel Amaral e o capitão Mendonça passavam no exército por ser a imagem da perfeita amizade.
— Agora me recordo de que meu pai me falava muito no capitão Mendonça.
— Sou eu.
— Falava-me com muito interesse; dizia que era o seu melhor e mais fiel amigo.
— Era injusto o coronel, disse o capitão abrindo a caixa de rapé, eu fui mais do que isso, fui o único amigo fiel que ele teve. Mas seu pai era cauteloso, talvez não quisesse ofender ninguém. Era um tanto fraco seu pai; a única rixa que tivemos foi por eu uma noite chamar-lhe tolo. O coronel reagiu, mas convenceu-se finalmente... Quer uma pitada?
— Obrigado.
Admirou-me que o mais fiel amigo de meu pai tratasse tão desdenhosamente a sua memória, e entrei logo a suspeitar da amizade que os ligara no exército. Confirmou-me esta suspeita a lembrança de que meu pai, quando falava no capitão Mendonça, dizia ser um excelente homem... com uma aduela de menos.
Contemplei o capitão enquanto ele sorvia a pitada e sacudia com o lenço a camisa ligeiramente maculada por um clássico e legítimo pingo. Era um homem de boa presença, gesto militar, olhar um tanto vago, barba de fonte a fonte, passando por baixo do queixo, como convém a um militar que se respeita. A roupa era toda nova, e o velho capitão mostrava estar acima das necessidades da vida.
A expressão da cara não era má; mas o olhar vago e as sobrancelhas espessas e salientes transtornavam o rosto.
Conversamos do passado; o capitão contou-me a campanha contra Rosas, e a parte que nela tomou com meu pai. A sua conversa era animada e pitoresca; lembrava-se de muitos episódios, entremeava tudo com anedotas engraçadas.
Ao cabo de vinte minutos o público começou a inquietar-se com a extensão do intervalo e a orquestra dos tacões executou a sinfonia do desespero.
Justamente nesse momento veio um sujeito chamar o capitão para ir a um camarote. O capitão quis adiar a visita para outro intervalo, mas, instando o sujeito, cedeu e apertou-me a mão dizendo:
— Até já.
Fiquei outra vez só; os tacões cederam lugar às rabecas, e ao cabo de alguns minutos começou o segundo ato.
Como aquilo para mim não era distração nem ocupação, acomodei-me o melhor que pude na cadeira e cerrei os olhos ouvindo um monólogo do protagonista, que cortava o coração e a gramática.
Não tardou que fosse despertado pela voz do capitão. Abri os olhos e vi-o de pé.
— Quer saber de uma coisa? perguntou ele. Eu vou cear; acompanha-me?
— Não posso, queira desculpar-me, respondi.
— Não admito desculpa; faça de conta que eu sou o coronel e digo: Pequeno, vamos cear!
— Mas é que eu espero...
— Não espera ninguém!
O diálogo provocou alguns murmúrios à roda de nós. Vendo a disposição anfitriônica do capitão, achei prudente acompanhá-lo para não dar lugar a uma manifestação pública.
Saímos.
— Cear a esta hora, disse o capitão, não é próprio de um rapaz como o senhor; mas eu cá sou velho e militar.
Não repliquei.
A falar verdade eu não tinha preferência pelo teatro nem por coisa nenhuma; queria passar o tempo. Conquanto não me arrastasse nenhuma simpatia para o capitão, a maneira por que me tratava e a circunstância de ter sido companheiro d’armas de meu pai, faziam com que a companhia dele fosse naquele momento mais aceitável que a de outro qualquer.
Além destas razões todas, a vida que eu levava era tão monótona que a diversão do capitão Mendonça devia encher uma boa página com matéria nova. Digo a diversão do capitão Mendonça, porque o meu companheiro tinha não sei que no gesto e nos olhos que me parecia excêntrico e original. Encontrar um original ao meio de tantas cópias de que anda farta a vida humana, não é uma fortuna?
Acompanhei, portanto, o meu capitão, que continuou a falar durante o caminho todo, arrancando-me apenas de longe em longe um monossílabo.
No fim de algum tempo paramos defronte de uma casa velha e escura.
— Vamos entrar, disse Mendonça.
— Que rua é esta? perguntei eu.
— Pois não sabe? Oh! como anda com a cabeça a juros! Esta é a Rua da Guarda Velha.
— Ah!
O velho bateu três pancadas; daí a alguns segundos rangia a porta nos gonzos e nós entrávamos num corredor escuro e úmido.
— Então não trouxeste luz? perguntou Mendonça a alguém que eu não via.
— Vim com pressa.
— Bem; fecha a porta. Dê cá a mão, sr. Amaral; esta entrada é um pouco esquisita, mas lá em cima estaremos melhor.
Dei-lhe a mão.
— Está trêmula, observou o capitão Mendonça.
Eu tremia, com efeito; pela primeira vez surgiu-me no espírito a suspeita de que o pretendido amigo de meu pai não fosse mais que um ladrão, e aquilo uma ratoeira armada aos néscios.
Mas era tarde para retroceder; qualquer demonstração de medo seria pior. Por isso, respondi alegremente:
— Se lhe parecer que não há de tremer quem entre por um corredor como este, o qual, haja de perdoar, parece o corredor do inferno.
— Quase acertou, disse o capitão, guiando-me pela escada acima.
— Quase?
— Sim; não é o inferno, mas é o purgatório.
Estremeci ao ouvir estas últimas palavras; todo o meu sangue precipitou-se para o coração, que começou a bater apressado. A singularidade da figura do capitão, a singularidade da casa, tudo se acumulava para encher-me de terror. Felizmente chegamos acima e entramos para uma sala iluminada a gás, e mobiliada como todas as casas deste mundo.
Para gracejar e conservar toda a independência do meu espírito, disse sorrindo:
— Está feito, o purgatório tem boa cara; em vez de caldeiras tem sofás.
— Meu rico senhor, respondeu o capitão, olhando fixamente para mim, coisa que pela primeira vez acontecia, porque o seu olhar era sempre vesgo; meu rico senhor, se pensa que desse modo arranca o meu segredo está muito enganado. Convidei-o para cear; contente-se com isto.
Não respondi; as palavras do capitão desvaneceram as minhas suspeitas acerca da intenção com que ele ali me trouxera, mas criaram outras impressões; suspeitei que o capitão estivesse doido; e o menor incidente confirmava-me a suspeita.
— Moleque! disse o capitão; e, quando o moleque apareceu, continuou: prepara a ceia; tira vinho da caixa nº 25; vai; quero tudo pronto em um quarto de hora.
O moleque foi executar as ordens de Mendonça. Este, voltando-se para mim, disse:
— Sente-se e leia alguns destes livros. Vou mudar de roupa.
— Não volta ao teatro? perguntei eu.
— Não.