Poucos minutos depois caminhávamos para a sala de jantar, que ficava nos fundos da casa. A ceia era farta e apetitosa; no centro campeava um soberbo assado frio; pastelinhos, doces, velhas botelhas de vinho, completavam a ceia do capitão.

— É um banquete, disse eu.

— Qual! é uma ceia ordinária... não vale nada.

Havia três cadeiras.

— Sente-se aqui, disse-me ele indicando a do meio, e sentando-se ele próprio na que ficava à minha esquerda. Compreendi que havia mais um conviva, mas não perguntei. Também não era preciso; daí a poucos segundos saía de uma porta em frente uma moça alta e pálida, que me cumprimentou e se dirigiu para a cadeira que ficava à minha direita.

Levantei-me, e fui apresentado pelo capitão à menina, que era filha dele, e acudia ao nome de Augusta.

Confesso que a presença da moça me tranqüilizou um pouco. Não só deixara de estar a sós com um homem tão singular como o capitão Mendonça, mas também a presença da moça naquela casa indicava que o capitão, se era doido como eu suspeitava, era ao menos um doido manso.

Tratei de ser amável com a minha vizinha, enquanto o capitão trinchava o peixe com uma habilidade e destreza que bem indicavam a sua proficiência nos misteres da boca.

— Devemos ser amigos, disse eu a Augusta, pois que nossos pais o foram também.

Augusta levantou para mim dois belíssimos olhos verdes. Depois sorriu e abaixou a cabeça com ar de casquilhice ou de modéstia, porque ambas as coisas podiam ser. Contemplei-a nessa posição; era uma formosa cabeça, perfeitamente modelada, um perfil correto, uma pele fina, cílios longos, e cabelos cor de ouro, áurea coma, como os poetas dizem do sol.

Durante esse tempo Mendonça tinha concluído a tarefa; e começava a servir-nos. Augusta brincava com a faca, talvez para mostrar-me a finura da mão e o torneado do braço.

— Estás muda, Augusta? perguntou o capitão servindo-a de peixe.

— Qual, papai! estou triste.

— Triste? Então que tens?

— Não sei; estou triste sem causa.

Tristeza sem causa traduz-se muitas vezes por aborrecimento. Eu traduzi assim o dito da moça, e senti-me ferido no meu amor-próprio, aliás sem razão fundada. Para alegrar a moça tratei de alegrar a situação. Esqueci o estado do espírito do pai, que me parecia profundamente abalado, e entrei a conversar como se estivesse entre amigos velhos.

Augusta pareceu gostar da conversa; o capitão também entrou a rir como um homem de juízo; eu estava num dos meus melhores dias; acudiam-me os ditos engenhosos e as observações de algum chiste. Filho do século, sacrifiquei ao trocadilho, com tal felicidade que inspirei o desejo de ser imitado pela moça e pelo pai.

Quando a ceia acabou reinava entre nós a maior intimidade.

— Quer voltar ao teatro? perguntou-me o capitão.

— Qual! respondi.

— Quer dizer que prefere a nossa companhia, ou antes... a companhia de Augusta.

Esta franqueza do velho pareceu-me um pouco indiscreta. Estou certo de que fiquei rubro. Não aconteceu o mesmo a Augusta, que sorriu dizendo:

— Se assim é, não lhe devo nada, porque eu também prefiro agora a sua companhia ao melhor espetáculo deste mundo.

A franqueza de Augusta admirou-me ainda mais que a de Mendonça. Mas não era fácil mergulhar-me em reflexões profundas quando os belos olhos verdes da moça estavam pregados nos meus, parecendo dizer-me:

— Seja amável como até agora.

— Vamos para a outra sala, disse o capitão levantando-se.

Fizemos o mesmo. Dei o braço a Augusta, enquanto o capitão nos guiava para outra sala, que não era a de visitas. Sentamo-nos, menos o velho, que foi acender um cigarro numa das velas do candelabro, enquanto eu lançava um olhar rápido pela sala, que me pareceu de todo ponto estranha. A mobília era antiga, não só no molde, senão também na idade. No centro havia uma mesa redonda, grande, coberta com um tapete verde. Numa das paredes havia pendurados alguns animais empalhados. Na parede fronteira a essa havia apenas uma coruja, também empalhada, e com olhos de vidro verde, que, apesar de fixos, pareciam acompanhar todos os movimentos que a gente fazia.

Aqui voltaram os meus sustos. Olhei, entretanto, para Augusta, e esta olhou para mim. Aquela moça era o único laço que havia entre mim e o mundo, porque tudo naquela casa me parecia realmente fantástico; e eu já não duvidava do caráter purgatorial que me fora indicado pelo capitão.

Estivemos silenciosos alguns minutos; o capitão fumava o cigarro passeando com as mãos atrás das costas, posição que pode indicar a meditação de um filósofo ou a taciturnidade de um néscio.

De repente parou defronte de nós, sorriu, e perguntou-me:

— Não acha formosa esta pequena?

— Formosíssima, respondi.

— Que lindos olhos, não são?

— Lindíssimos, com efeito, e raros.

— Faz-me honra esta produção, não?

Respondi com um sorriso aprovador. Quanto a Augusta, limitou-se a dizer com adorável simplicidade:

— Papai é mais vaidoso do que eu; gosta de ouvir dizer que sou bonita. Quem não sabe disso?

— Há de notar, disse-me o capitão sentando-se, que esta pequena é franca de mais para o seu sexo e idade...

— Não lhe acho defeito...

— Nada de evasivas; a verdade é essa. Augusta não se parece com as outras moças que pensam muito bem de si, mas sorriem quando lhes fazem algum cumprimento, e franzem o sobrolho quando não lhos fazem.

— Direi que é uma adorável exceção, respondi eu sorrindo para a moça, que me agradeceu sorrindo também.

— Isso é, disse o pai; mas exceção completa.

— Uma educação racional, continuei eu, pode muito bem...

— Não só a educação, tornou Mendonça, mas até a origem. A origem é tudo, ou quase tudo.

Não entendi o que queria dizer o homem. Augusta parece que entendeu, porque entrou a olhar para o teto sorrindo maliciosamente. Olhei para o capitão; o capitão olhava para a coruja.

Reanimou-se a conversa por espaço de alguns minutos, ao cabo dos quais o capitão, que parecia ter uma idéia fixa, perguntou-me:

— Então acha esses olhos bonitos?

— Já lho disse; são tão formosos quanto raros.

— Quer que lhos dê? perguntou o velho.

Inclinei-me dizendo:

— Seria muito feliz em possuir tão raras prendas; mas...

— Nada de cerimônias; se quer, dou-lhos; senão, limito-me a mostrar-lhos.

Dizendo isto, levantou-se o capitão e aproximou-se de Augusta, que inclinou a cabeça sobre as mãos dele. O velho fez um pequeno movimento, a moça ergueu a cabeça, o velho apresentou-me nas mãos os dois belos olhos da moça.

Olhei para Augusta. Era horrível. Tinha no lugar dos olhos dois grandes buracos como uma caveira. Desisto de descrever o que senti; não pude dar um grito; fiquei gelado. A cabeça da moça era o que mais hediondo pode criar a imaginação humana; imaginem uma caveira viva, falando, sorrindo, fitando em mim os dois buracos vazios, onde pouco antes nadavam os mais belos olhos do mundo. Os buracos pareciam ver-me; a moça contemplava o meu espanto com um sorriso angélico.

— Veja-os de perto, dizia o velho diante de mim; palpe-os; diga-me se já viu obra tão perfeita.

Que faria eu senão obedecer-lhe? Olhei para os olhos que o velho tinha na mão. Aqui foi pior; os dois olhos estavam fitos em mim, pareciam compreender-me tanto quanto os buracos vazios do rosto da moça; separados do rosto, não os abandonara a vida; a retina tinha a mesma luz e os mesmos reflexos. Daquele modo as duas mãos do velho olhavam para mim como se foram um rosto.

Não sei que tempo se passou; o capitão tornou a aproximar-se de Augusta; esta abaixou a cabeça, e o velho introduziu os olhos no seu lugar.

Era horrível tudo aquilo.

— Está pálido! disse Augusta, obrigando-me a olhar para ela, já restituída ao estado anterior.

— É natural... balbuciei eu; vejo coisas...

— Incríveis? perguntou o capitão esfregando as mãos.

— Efetivamente, incríveis, respondi; não pensava...

— Isto é nada! exclamou o capitão; e eu folgo muito que ache incríveis essas coisas poucas que viu, porque é sinal de que eu vou fazer pasmar o mundo.

Tirei o lenço para limpar o suor que me caía em bagas. Durante esse tempo Augusta levantou-se e saiu da sala.

— Vê a graça com que ela anda? perguntou o capitão. Aquilo tudo é obra minha... é obra do meu gabinete.

— Ah!

— É verdade; é por ora a minha obra-prima; e creio que não há que dizer-lhe; pelo menos o senhor parece estar encantado...

Curvei a cabeça em sinal de assentimento. Que faria eu, pobre mortal sem força, contra um homem e uma rapariga que me pareciam dispor de forças desconhecidas aos homens?

Todo o meu empenho era sair daquela casa; mas por maneira que os não molestasse. Desejava que as horas tivessem asas; mas é nas crises terríveis que elas correm fatalmente lentas. Dei ao diabo os meus arrufos, que foram a causa do encontro com semelhante sujeito.

Parece que o capitão adivinhara aquelas minhas reflexões, porque continuou, depois de algum silêncio:

— Deve estar encantado, ainda que um tanto assustado e arrependido da sua condescendência. Mas isso é puerilidade; nada perdeu em vir aqui, antes ganhou; fica sabendo coisas que só mais tarde saberá o mundo. Não lhe parece melhor?

— Parece, respondi sem saber o que dizia.

O capitão continuou:

— Augusta é a minha obra-prima. É um produto químico; gastei três anos para dar ao mundo aquele milagre; mas a perseverança vence tudo, e eu sou dotado de um caráter tenaz. Os primeiros ensaios foram maus; três vezes saiu a pequena dos meus alambiques, sempre imperfeita. A quarta foi esforço de ciência. Quando aquela perfeição apareceu caí-lhe aos pés. O criador admirava a criatura!

Parece que eu tinha pintado o pasmo nos olhos, porque o velho disse:

— Vejo que se espanta de tudo isto, e acho natural. Que poderia o senhor saber de semelhante coisa?

Levantou-se, deu alguns passos, e sentou-se outra vez. Nesse momento entrou o moleque trazendo café.

A presença do moleque fez-me criar alma nova; imaginei que fosse ali dentro a única criatura verdadeiramente humana com quem me pudesse entender. Entrei a fazer-lhe sinais, mas não consegui ser entendido. O moleque saiu, e fiquei a sós com o meu interlocutor.

— Beba o seu café, meu amigo, disse-me ele, vendo que eu hesitava, não por medo, mas porque realmente não tinha vontade de tomar coisa nenhuma.

Obedeci como pude.