A RELIGIÃO NA POESIA DO POVO

Reflexo do pensar e sentimentos collectivos, á poesia popular não poderiam escapar os themas ou ideaes de religiosidede, tão arraigados na alma de nossa gente. Cantadores há que se especializam na discussão e commento da doutrina catholica: não lhes faltam ouvintes com a avidez dos espectadores que, em noites de Natal ou em dias de Finados, accorrem a apreciar nos cinemas dos logarejos do sertão os films da “Vida, Paixão e Morte de Jesus Christo.”

O sacerdote é um ser á parte no seio da communidade sertaneja. Respeitado e obedecido, ninguem lhe discute os ensinamentos. Si o Padre Catholico também erra ou pecca, não é aos seus subditos em Christo que cabe julgal-os:

Ninguem me fale de Padre,
Seja lá que Padre for:
Não gosto de ouvir falar
Dos Ministros do SENHOR.

Eu, como sou peccador,
Estando são ou doente,
Quero ver na minha frente
Um Ministro do SENHOR.

Faria um rol reduzidissimo quem se propuzesse a catalogar as irreverencias religiosas contidas na poesia do povo. A quadra:

S. Gonçalo do Amarante,
Meu santo casamenteiro,
Antes de casar as outras,
Me casae a mim, primeiro!

é a affirmação de ingenua crença, não consciente remoque ao falado poder excepcional de um titular da Côrte Celeste. Mesmo aquelles versos que dizem:

Meu São Francisco das Chagas,
Meu santo do Canindé,
Eu sei que Santo não voga
Naquillo que Deus não quer...

não importam, propriamente, uma ironia, sim a revelação do exacto valor das mediações perante o Juiz Supremo.

A proposito desta ultima quadra devo lembrar, aliás, que ella excéde um pouco o legitimo adagio portuguez: “Quando Deus não quer, Santo não rogam”. A quadrinha nordestina admitte a inutil intercessão dos Santos, pois affirma que não vogam, isto é, não têm valor, ás vezes, os rogos dos intermediários da Divindade.

Olavo Bilac, numa conferencia sobre “O feiticismo dos poetas brasileiros”[1], narrou a anecdota de uma sua amiga, illustre senhora patricia que em Portugal se lhe queixava da falta de seu Santo Antonio que ficára no Rio de Janeiro. Como o poeta observasse que a devota dama tinha sobre a commoda uma imagem do meigo e misericordioso santo lisboeta, ouviu como resposta que aquillo não era a mesma cousa: ella só se dava bem com o seu Santo Antonio, o do Rio de Janeiro, que já a conhecia, tinha intimidade comsigo e nada lhe recusava...

Esse “feiticismo” observado por Bilac num espirito relativamente illustrado eu o verifiquei na Parahyba, apanhando a quadra:

Não quero Santo Antonio grande
Dentro dos meus oratóro:

Eu quero é o pequenininho,
Que faz os meus peditóro.

Em outro capitulo deste volume vai inserta a “Historia das tres irmãs que se queriam casar com um moço só”. Essa poesia lembra a quadrinha portugueza:

Minha avó tem lá em casa
Um Santo Antonio velhinho:
Em os moços não me querendo,
Dou pancadas no santinho...

Rosa Dhalia e Rosa Amelia proromperam em improperios contra as almas e contra S. Sebastião, ao verem que Nequinho se decidira pela prima Flor do Dia, devota do padroeiro dos namorados felizes. Isso prova que tambem o nosso povo tem assomos de rebeldia contra os poderes mysteriosos, “tal qual o pova romano que, há dezenas de seculos, maltratava os deuses, quando estes não o attendiam.”

Para mostrar quanto a musa rustica se preoccupa com o sentimento religioso mencionarei que o cantador Luiz da Costa Pinheiro condensou em 115 sextilhas todo um sermão que ouviu ao notavel orador sacro Frei Marcellino de Milão, contra os jogadores, bebados e amancebados, surprehendendo ao erudito pregador com a fidelidade da reportagem versificada.

O menestrel alagoano Nabuco de Campos (um nome frondeur) em outras setenta estrophes reproduziu uma discussão travada em certo trem, entre um protestante e um catholico. Nabuco de Campos diz que o protestante

Falava de nossa Igreja
E deste povo misseiro,
Contra o povo rezador,
Ou beato ou noveneiro,
Mettia o pau, a valer,
No Padre do Juazeiro.

E accrescenta:

No mesmo trem vinha um velho
Que, ouvindo a conversação,
Quando o sujeito falou
Do Padre Cicero Romão,
Chegou-se um pouco pra perto
Pra dar melhor attenção.

O velho tira do bolso
Um enorme tabaqueiro
E diz, tomando a pitada:
— “Me desculpe, cavalleiro,
Mas onde eu estou não se fala
Do Padre do Juazeiro!”

Estabeleceu-se, então, o debate vehemente. Ia em meio a porfia acalorada, quando o catholico fala na “Santa Cruz”. Commenta o protestante:

Não pode ser santo o pau
Em que Christo padeceu!
Isto é mentira de Padre
Ou do burro que o escreveu...
A Cruz não pode ser santa:
Santo é quem nella morreu!

Mas o catholico insiste:

Tudo de Jesus é santo:
A mangedoura em Belém,
O seu refugio sagrado
Dentro de Jerusalem,
O Monte Calvario é santo
E o seu sepulcro tambem.

Isto faz com que o protestante argúa, ironico:

Pense bem, fale melhor,
Vigie, não se arroje tanto...
As sete quedas de Christo
Lhe causaram dor e pranto!
Uma quéda é um desastre:
Desastre pode ser santo?

Como o sectario de Luthero esbraveje que não crê na immaculada conceição de Maria nem no poder de Nossa Senhora, os raciocinios se cruzam assim:

C. — Basta Maria ser mãe
De Jesus, o Salvador,
Pra gosar como Elle gosa
Um poder superior:
Uma mãe perante um filho
Tem um sublime valor!

P. — Mas não são todas as mães
Que gosam desse poder!
Não me conformo com isso,
Não posso me convencer,
O poder de Jesus Christo
Maria não pode ter...

C. — E não são santos os dois?
Pode a mãe ser humilhada?
Uma mãe perante o filho
E’ mãe ou é palhaçada?
Si assim é, você é tudo,
Sua mãe não vale nada...

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Nesta resposta romperam
Numa grande gargalhada
Os passageiros do trem,

E, numa vaia damnada,
Saiu o tal protestante
Vendendo azeite ás canada...

O protestante é, geralmente, conhecido no sertão pela alcunha de “nova-seita”. As tres sextilhas abaixo mostram quanto os sertanejos o abominam:

Com lagrimas do diabo
E baba duma serpente,
Carvão de osso de sogra
Com intriga de parente
Fizeram um nova-seita
Magro, amarello e doente.

Pode-se achar sogra boa,
Padre desinteressado,
Italiano innocente,
Cigano serio e honrado,
O que nunca ninguem viu
Foi nova-seita corado.

O primeiro nova-seita,
Emquanto pequenininho,
Um mez foi alimentado
Com arenga de vizinho,
Com praga de pae e mãe
E maldição de padrinho...

Leandro Gomes de Barros argumentava que um “nova-seita” é peior do que um urubú, pois até este respeita a casa de Deus:

Um urubú não se senta
Na torre de uma igreja!

E Manoel Vieira do Paraiso chasqueou do protestantismo, descrevendo o casamento de um nova-seita com a filha do Diabo:

Deu-se um caso lá no inferno,
Um diabo veiu e contou
A um velho feiticeiro
Tudo como se passou
Com uma filha bastarda
Que elle tinha e se casou.

Conservava elle esta filha
Dentro dum quarto guardada,
De todo diabo que havia
Elle tinha ciumada,
Comtudo de um nova-seita
Ella era namorada.

Um dia, o diabo saiu,
Pois havia precisão
De buscar um nova-seita
Que morreu no alto sertão,
Ahi o tal namorado
Deu na moça um beliscão.

E quando o diabo chegou
Afflicto e muito suado,
Viu o rapaz nova-seita
Um pouco desconfiado,
Sentado, mordendo o beiço,
Com o olhar todo espantado.

O diabo entrou p’r’o quarto,
Como era de seu costume,
Viu a filha pensativa
E elle ahi pegou o lume,
Pois de tudo desconfia
Quem já vive com ciume...

Irado, indagou da filha:
— “Que é isto? aqui veiu gente?
'Eu estou observando

Tú um pouco differente...
Ninguem pode mais criar
Uma diabinha innocente!

“Quero que me conte tudo,
Sinão eu te como o couro...
Opero saber o atrevido
Que anda com desaforo,
Illudindo filha minha
Com malicia de namoro!”

Respondeu-lhe o nova-seita:
— “Sou eu della namorante,
Pois achei fuga e abracei,
Belisquei a minha amante...
Você, quer queira ou não queira,
E’ meu sogro, de ora avante!”

A moça disse — “Meu pae,
Nada se afoite a dizer...
Artigos de casamento
Nada se pode fazer:
E’ muito ruim sujar agua
Para depois a beber...”

Disse o diabo: — “ô atrevida,
Me fazes ficar em braza,
Tú podes ter a certeza
Que este inferno hoje se arraza,
Porem com um nova-seita
Morres damnada e não casa!”

A moça, então, levantou-se
Como uma feia serpente,
Fez uma careta horrivel,
Prendeu a saia no dente,
Gritou ao pae: — “Vamos ver
Quem de nós é mais valente!

O diabo tocou o buzo,
Mil diabos vieram armados...
O nova-seita apitou,
Vieram seis mil condemnados,
Feiticeiros, nova-seitas
E tres mil amancebados.

O diabo, então, quando viu
Essa horrenda bateria,
A força dos condemnados
Que em cima delle investia,
Dava a filha em casamento
Ou, com certeza, morria.

A diabona, mãe da noiva,
Soccou-se nesse barulho,
Disse á filha: — “ô atrevida,
Queres servir de basculho?
Pança de besta amojada,
Damna-te daqui, entulho!”

Nisto, chega Satanaz
Que é chamado Lucifér:
— “Que diabo de briga é esta
Entre homem e mulher?
Um diz ”Casa”, outro “Não casa!”,
Um diz “Quer!”, outro “Não quer”.

Disse o demonio: — “Sou eu
Que aqui tenho esta donzella
Que, por força, quer casar
Com esse papa-ramela...
Não querem dar a razão
A mim, que fico sem ella.”

Disse assim o nova-seita:
— “Eu estou bem satisfeito...
Entrego á vossa clemencia

Que faz tudo no direito:
Eu me ponho a séu dispor,
O que fizer dou por feito!”

Satanaz disse: — “Eu desejo
Tudo direito e acalmado:
Arrumem logo esse frêvo
Que eu vejo desarrumado...
Olhe: quem tem moça em casa
Deve ter muito cuidado!”

O diabo, cheio de raiva:
— “Eu não posso arrumar nada,
Porque o escrivão do civel
Está de mão aleijada,
A noiva núa, e o cão côxo
Está com a loja fechada...”

Enviuvou um demonio
E a mulher tinha deixado
Um bom vestido e um sapato
Já todo desabrochado:
A diabona, mãe da noiva,
Comprou tudinho fiado.

A diaba vestiu a filha,
Não tinha véo nem camisa,
Pois decencia lá no inferno
E’ uma coisa que horroriza,
Lucifér disse: — “Está bom!
Mesmo melhor não precisa...”

E disse, então, para o noivo:
— “Sois um grande condemnado!
A tua seita na terra
Foi muito do meu agrado,
Mas te baptiso de novo
Pois não estás baptisado.”

Satanaz disse as palavras
— “Eu te baptiso, porem,
Em nome da nova seita,
De mim, Satanaz, tambem,
E de tudo quanto é diabo
Aqui deste inferno. Amém!”

Chamou Lucifér o noivo:
— “Quero ouvil-o em confissão,
Pois quero saber si fez
No mundo alguma oração,
Si recebeu sacramento,
Si desejou salvação.

“Accuse si alguma vez
Chamou por Santa Maria,
E si deu alguma esmola,
Ou si rezou algum dia,
Si deixou de rogar praga,
Pois é de muita valia.

“Accuse si alguma vez
Tambem deixou de matar,
Si, tendo fuga e, podendo,
Tambem deixou de roubar,
Si ainda não jurou falso
Para a outro condemnar.

“Accuse si aos bens alheios
Nunca desejou mau fim,
Si já guardou castidade
Que é coisa muito ruim,
Si nunca levantou falso,
Enredo, intriga e moitim.

“Accuse si viu mulher
Alheia e não desejou,
Si em alguma occasião,

No nome de Deus falou,
Ou si em qualquer vexame
A Santo já supplicou;

“E si já creste na Igreja
De Christo que é a Romana,
E si usou conversa licita,
Sem ser lasciva e profana,
Si aprendeu toda a doutrina,
Si fez bem na vida humana;

“Si acreditas que Deus-Filho
Morreu e resuscitou,
E si Elle com seu sangue
O homem remiu e salvou;
Accuse si crê que a Pedro
Elle a Igreja entregou.”

O nova-seita nos pés
De Satanaz ajoelhado:
— “Eu accuso duas culpas:
Uma que fui baptisado,
Outra que chamei um Santo,
Por me ver muito vexado.”

Perguntou-lhe Lucifér:
— “Filho, estás arrependido?
Agora pede perdão
Deste crime commettido...
E’s maldicto para sempre
E já estás absolvido.”

E logo ajuntou os noivos,
Chegou a diaba enfronhada
Com um acompanhamento,
Uma caterva damnada,
Vinha faiscando fogo,
Em chammas toda abrazada.

O noivo, então, se encostou
Muito immundo o pestilento,
Satanaz, buscando o fogo,
Celebrou o casamento...
O noivo agarrou a noiva,
Uamnou-se, de inferno a dentro.

Então, houve grande festa
De enxôfre e breu derretido,
Beberam fél de dragão,
O noivo ficou distraido,
Sobrou festa que até hoje
Os diabos têm comido.

Inda tem festa guardada
Para certa occasião:
Para esses nova-seitas
Que andam pelo sertão,
Quando chegarem no inferno,
Inda encontrar seu quinhão.

De conformidade com a paremia espanhola, solo Dios acierta a reglar con regia tuerta. O nosso povo repete isso, dizendo que Deus escreve direito por linhas tortas. Annotei, no alto sertão parahybano, uma historia tendente a demonstrar a veracidade desse proloquio. Um individuo casado e extremamente fido aos seus deveres de chefe de familia consagrava os seus affectos a tres entes: a mulher, um filhinho e um cavallo. Certa noite, em sonhos, uma voz lhe ordenou de se tornar devoto de Santo Antonio. O casal redobrou de religiosidade e começou a cultuar, com viva fé, áquelle Santo. Mezes depois, o homem,

Um dia, estando dormindo,
Accordou sobresaltado,
Correu, foi ver a cocheira:
Estava o cavallo laçado,
Com a corda no pescoço
Tinha morrido enforcado.

Elle accordou a mulher.
Lhe disse o que se passou:
— “Senhora, neste momento
Meu cavallo se enforcou...
Pelo geito que estou vendo,
Santo Antonio lhe enganou!”

Lhe respondeu a mulher:
— “Marido, ninguem conhece
As obras daquelle Deus
A Quem o mundo obedece:
Antes morresse o cavallo,
Que isso c’um de nós se désse!”

Foi quando elle conheceu
Que a mulher tinha bom tino,
Dado pela Providencia
Daquelle Deus tão divino,
Mas quando foi no outro anno
Tambem morreu-lhe o menino...

Quando o menino morreu,
Disse elle: — “Assim não convem
Adorar a Santo Antonio...
Quêde o poder que elle tem?
O meu filhinho morreu;
Santo Antonio não é ninguem!”

A mulher lhe respondeu:
— “Largue de se maldizer!
De Deus se faça a vontade,
Devemos lhe obedecer...
Antes morrer nosso filho
Que qualquer de nós morrer!”

Ahi, disse elle á mulher,
Já passado de agonia,
Com pena de seu filhinho

Que beijava, todo dia:
— “Santo Antonio é quem é causo:
Pra mim não tem mais valia!”

A mulher disse, de novo:
— “Não fique assim tão afflicto!
Adoremos Santo Antonio
Por um modo mais contricto...
Isso é arte do demonio,
Ou tentação do Maldicto...”

Elle, então, diz num suspiro:
— “Faça lá como quizer,
Da forma que parecer-lhe,
Do geito que convier...”
Quando foi no anno seguinte,
Morreu tambem a mulher.

Morrendo a mulher, o homem
Só faltou enlouquecer...
Pelas ruas da cidade
Não pretendia viver,
O coração lhe pedia
Pra se enforcar e morrer.

Tendo enterrado a mulher,
Depois que se viu sosinho,
Correu dentro de uma matta,
Depois saiu num caminho
E viu que atraz vinha um homem
Amontado num burrinho.

Pareceu-lhe que era um Padre,
Olhou pra diante e pra traz:
— “Padre sempre dá conselho,
Eu já sei Padre o que faz,
Nem que elle dê mil conselho:
Eu morro, não volto mais!”

O Padre falou pra elle
Com brandura e energia:
— “Meu filho, p’r’onde é que vais?
Vais a alguma romaria?”
Elle, ahi, torceu a cara
E lhe respondeu que ia.

O Padre era Santo Antonio,
Mas o homem não sabia...
Por isso, quando o foi vendo,
Disse aquella zombaria
De andar pagando promessa,
Fazendo uma romaria...

— “Senhor Reverendo, eu conto
Somente a vossa Mercê:
Adorei a Santo Antonio
Pra meus trastes não morrer,
Porem, como morreu tudo,
Santo Antonio não tem poder.”

Então, o Padre falou
Com um semblante risonho:
— “Isto é laços do diabo,
Ou tentação do demonio...
Meu filho, volta pra casa,
Vae adorar Santo Antonio!”

O homem lhe respondeu:
— “Adorar? não pode ser!
Com tantas adorações,
Só falta mesmo eu morrer...
Estou mais do que sciente;
Santo Antonio não tem poder!”

Ahi, o Padre lhe disse:
— “Faço voltar-te a razão;
Si você vir os seus trastes,

Você reconhece ou não?”
— “Seu Padre, eu conheço elles
Como a palma desta mão!”

Mostrou-lhe o Padre um retrato
Com o tal cavallo sellado,
O cavallo estava em pé,
O dono estava deitado:
Tinha morrido dum coice
Que o animal tinha dado.

— “Num dia, você montava
 Neste cavallo e caía...
Desta quéda que levava
Não escapava, morria!
Santo Antonio, como bom Santo,
Matou, tirou da agonia.”

Conheceu, então, o homem
Que o Padre tinha bom tino
Dado pela Providencia
Daquelle Deus tão divino:
— “Já me disse do cavallo,
Me diga do meu menino!”

Ahi, o Padre mostrou-lhe
O menino retratado,
Todo amarrado de corda,
Rodeado de soldado,
E o pae, pertinho delle,
Tristonho, olhando de lado.

— “Teu filho, com 15 annos,
Roubava tudo que via,
Era preso no flagrante,
Trancado numa enxovia...
Santo Antonio, como bom Santo,
Matou, tirou da agonia.”

— “Seu Padre, suas palavras
E’ grande o valor que têm,
Porque, quando sai da bocca,
Os Anjos dizem Amém!
Já que disse do menino,
Diga da mulher tambem!”

Mostra o Padre outro retrato,
Coisa de devassidão:
A mulher nos braços de outro,
Com gosto e satisfação...
Pergunta o Padre: — “E’ você?”
Elle respondeu que não.

O Padre, então, explicou
Com fala branda e macia:
— “Sua mulher, no futuro,
Com outro homem fugia...
Santo Antonio, como bom Santo,
Matou, tirou da agonia.”

E o Padre continuou,
Com um ar muito tristonho:
— “Não se enforque, não, meu filho,
Fique certo que eu me opponho!
E’ melhor voltar pra casa,
Ir adorar Santo Antonio.”

O homem baixou a vista.
Por algum tempo pensou....
Depois de ter maginado,
Quando a vista levantou,
Conheceu que estava só,
Caça o Padre e não achou...

Elle, ahi, voltou pra casa,
Fez de novo invocação,
Adorando a Santo Antonio,

Contricto de coração...
Morreu já com setenta annos,
Quando teve a salvação.

O “Castigo da soberba”, que ouvi a Anselmo Vieira de Souza, cantador cearense, espelha bem a confiança que os sertanejos depositam na misericordia divina:

Agora eu passo a contar
Do que houve em algum tempo:
O castigo da soberba
Que ficou para exemplo,
Foi um caso acontecido,
Não é coisa que eu invento.

Era um homem muito rico,
Tinha honras de Barão,
Tinha vinte engenho de ferro,
Em metal trinta milhão,
Doze mil vaccas paridas
Nas fazendas do sertão.

A mulher deste Barão
Tinha honras de rainha,
Sessenta e cinco criadas
Pra lhe servir na cosinha,
Parecia inda mais bella
Pelos cabellos que tinha.

Com vinte annos de idade
Elle tomou novo estado,
Augmentou o cabedal
Adespois de ter casado,
Que, antes de interar dez annos,
Sete vez havia herdado.

Bem conhecido e falado
Dos mais homes brasileiro,

Tanto por bens de fortuna
Como em credito de dinheiro,
Mas não tinha nem um filho
Para delle ser herdeiro.

Era grande no respeito
Pelos bens que possuia...
Si era grande na riqueza,
Maior era em fidalguia
E, si era grande em nobreza,
Maior era em soberbia.

Seus cincoenta anno de idade
Tinha elle já contado,
Tinha vinte de solteiro,
Tinha trinta de casado,
Esperança de ter filho
Já estava desenganado.

Quando interou cincoenta anno,
Deu-se um certo movimento:
Seus bens, sem se saber como,
Se acabavam num momento,
Era como ridimunho
Ou tempestade de vento.

No campo os bichos de fôlgo
De repente se acabavam,
As plantações que fazia
Nasciam mas não vingavam,
Dinheiro que désse a juro
Nunca mais que lhe pagavam.

Não se passou muito tempo,
Acabou-se a tal grandeza:
Olhe o pobre acabrunhado,
Carregado de pobreza,
Desprezado dos amigos
Em quem contava firmeza!

Caiu a mulher doente,
Bastante desbilitada,
Desprezada das amigas
Por quem era visitada,
No meio desse desprezo
Apresentou-se pejada.

Foi-se approximando o dia
Que deu á luz o filhinho:
Nasceu em tanta pobreza
Que enrolou-se em mulambinho,
Por sua grande miseria
Foi diffice achar padrinho.

Criou-se sem ir á Missa
E nunca se confessou,
Pôz os pés na santa Igreja
Só quando se baptisou,
Negocio de penitencia
Elle nunca procurou.

Esmola por caridade
Isso nunca que elle deu;
Deitava e se levantava,
Porém nunca se benzeu;
Viveu assim, deste gosto,
Té o dia em que morreu.

Logo assim que elle morreu,
Cobriu-se os montes dum véo
Mas a alma, como invisive,
Chegou ás portas do céo,
Em tristeza amortalhada
Para dar contas de réo.

Mais de doze mil demonios
Tudo isso lhe acompanhavam,
Uns se rindo, outros soltando

Gargalhadas que rolavam,
Todos elles muito alegres
Da certeza que levavam.

— “Ô divino São Miguel,
Vosso nome escularêço,
Valei-me nesta agonia,
Nestas pena em que padeço!”
São Miguel arrespondeu:
— “Alma, eu não te conheço!”

— “Vála-me o Senhor São Pedro
Por ser Apóstolo primeiro,
Foi quem recebeu as chaves,
Que do céo é o chaveiro,
E’ quem pode ver as faces
Do nosso Deus verdadeiro!”

— “Alma, eu te abro a porta
Porque tú me vem rogar,
Porém não tenho poder
Pra fazer-te aqui ficar...
Tú recorre a Jesus Christo
Que é quem geito pode dar.”

Abriu-se as portas do céo,
A alma viu toda alegria,
Tambem viu Nossa Senhora,
Jesus, Filho de Maria,
Para Quem não poude olhar
Pelas culpas que trazia.

Curvou-se, beijou-lhe os pés,
Felizmente Elle acceitou...
— “Me accudi, meu doce Pae,
Valei-me, Nosso Senhor,
Sempre vejo vos chamar
Refugio dos peccador!”

— “Arretira-te, alma ingrata,
Vae pra donde tú andaste,
Que a santa Religião
Tu nunca que procuraste:
Te dei trinta e quatro annos,
Nunca de mim te lembraste.”

— “Ai, Senhor, por piedade,
Tenha de mim compaixão,
Pelo dia em que nasceu,
Por vossa Resurreição,
Por aquelle grande dia
De vossa Morte e Paixão!”

(Cão) — “Isto era o que faltava:
MANOEL padeceu as dor,
E tu reza e caridade
Nunca fez por seu amor,
Confissão e penitença
Tú toda vida abusou.”

(Jesus) — “Alma, tu bem estás ouvindo
Esta grande accusação,
Eu, até pra defender-te
Não vejo um pé de razão,
Abre a tua consciencia,
Faz a tua confissão.”

(Cão) — “Isso é só tempo perdido,
Não tem elle o que dizer,
Pois, emquanto andou no mundo,
Só tratou de te offender,
Nunca lhe veiu á lembrança
Que ainda havéra de morrer!”

(Alma) — “Ai, Senhor, se compadeça,
Nunca a vós eu quiz servir,

Não sei mesmo o que vos diga
Pois não vos posso illudir
E me vejo na presença
De Quem não posso mentir.”

Disse os demonio duns p’r’os outros,
— “Boa confissão aquella!
Agora queremos ver
Essa alma pra quem appella...
MANOEL é recto e justo,
Nós hoje carrega ella!”

(Jesus) — “Alma, pelo que me dizes
Eu não posso te valer:
Tú me viste morto a fome,
Não me déste de comer!
Tú me viste morto a sêde,
Não me déste de beber!

“Eu estava muito mortal,
Tú não foste visitar;
Tu me viste na cadeia,
Não foste me consolar;
Quando eu te vi errado,
Te mandei aconselhar.

“Assim agora, alma ingrata,
Vae cumprir teu triste fado,
Que tú não fez pela vida
De purgar os teus peccado,
Na minha Gloria só entra
Coração purificado.”

(Alma) — “Vala-me, ó virgem Maria,
Pelo vosso resplandor,
Pelo dia em que nasceu,
Pelo nome que tomou,
O nome do vosso filho
Que no ventre carregou!”

(Maria) — “Alma, já que me chamaste,
Na presença te cheguei,
Tú falaste com fiança
Neste nome que eu tomei,
No nome de meu filhinho
Que no ventre carreguei.”

(Alma) — “Ai, Senhora, Virgem Pura,
Padroeira mãe dos home,
Valei-me nesta agonia,
Nesta sorte que consome,
Sempre vejo protegido
Quem recorre a vosso nome.”

(Cão) — “Como elle está com ponta
Só pra illudir a Maria,
Com tantos annos de vida
Nome delia nem sabia,
Só sabia decorado
Era praga e harizia.

(Maria) — “Alma, tú nunca assististe,
Nem ao menos um momento,
Dentro dum logar sagrado
Onde houvesse um Sacramento,
Que tú ouvisses meu nome
Com grande contentamento?...

(Alma) — “Senhora, eu passando, um dia,
Numa casa de oração,
EU, vendo o povo lovando
A vossa consagração,
Eu ouvi com muito gosto
Com meus dois joelho no chão.”

(Cão) — “Já Maria está puxando,
A coisa se desmantela,
Aquillo nunca se deu,

Vejam que mentira aquella!
Eu já vi que esta mulher
Todo mundo illude ella!

“Ella põe-se a esmiuçar,
Puxa de diante pra traz,
Pega com tanta pergunta,
Tambem isso não se faz,
Até apparecer coisa
Que ninguem se lembra mais.”

(Alma) — “Mãe amada, me livrae
Das grandes rigoridade,
Sei que gastei os meus dias
Envolvido em vaidade,
Mas espero ser valido:
Valei-me por caridade!”

(Maria) — “Alma, o que tú me pediste
Eu não posso prometter,
Si tivesse em penitença
Com razão eu ia ver:
Mas assim, é impossivel
Te salvar, sem merecer.”

(Alma) — “Rainha, Mãe Amorosa,
Esperança dos mortaes,
Quem recorre a vosso nome
Sei que não desamparais,
Eu, pegando em vossos pés,
Sei que não largo elles mais.”

(Maria) — “Pois, alma, demora ahi,
Emquanto eu vou consultar,
Fazer pedido a meu Filho,
Ver si eu posso te salvar,
Ver si teus grandes peccados
Tem grau de se perdoar.”

(Cão) — “Como esta tal Maria
Eu mesmo nem nunca vi:
Uns pedem por interesse,
Pédem porque é pra si,
Mas ella pede é p’r’os outros,
Não se enjôa de pedir...

(Maria) — “Meu filhinho, aqui cheguei,
Vim te fazer um pedido
Para uma alma que chegou
Lá do mundo corrompido...
Tú, não tendo compaixão,
Pra ella o céo está perdido”.

(Jesus) — “Mas, minha mãe, não é assim,
Todos bem podem saber:
Lá deixei as Escripturas
Contando como há de ser...
Os Prophetas publicando,
Foi pra todos comprehender.”

(Cão) — “Isso é outro Portuguez!
Quem se engana é porque quer...
Loucura grande a do home
Que se illude com mulher...
Nem sei como se defende
Uma alma tão lhé-gué-lhé...

(Maria) — “Meu Filho, dê-me a resposta
Pra sciença dos christão,
Eu sei que é grande peccado
Não procurar confissão,
Porem, meu Filho, o peccado
Vem desde o tempo de Adão.”

(Jesus) — “Minha Mãe, larguemo esta alma,
Foi muito ruim creatura...
Si eu chegar a salvar ella,

Muitas outra estão segura,
E eu não posso salvar
A quem a mim não procura”.

(Maria) — “Pra isto mesmo, meu Filho,
Foi vossa resurreição,
Trespassaram vós no peito,
Foi Longuim c’as suas mão,
Soffrestes muitos trumento
Na vossa morte e paixão.

“Por vossa misericordia
Cypriano se salvou,
Vós salvaste a outros muito
Pelo vosso santo amor,
Tambem perdoaste a Paulo,
Sendo teu perseguidor.

“Mathia estava soffrendo,
Vós avisaste num sonho,
Tambem livraste da morte
Pae de senhor Santo Antonio
E a filha de Cananéa
Da vexação do demonio.

“Emfim sempre perdoaste
A quem vos pediu perdão;
Longuim, por se converter,
Prostrou-se e pediu perdão,
Por isso lhe déste a vida
E tambem a salvação.

“Quando os Judeus vos faziam
Grandes tormentos horror,
Pedro, por tres vez seguida,
Vos desconheceu, negou,
Mas vós lhe déste o poder
De ser vosso successor.

“Meu Filho, perdôe esta alma,
Tenha della compaixão!
Não se perdoando esta alma,
Faz-se é dar mais gosto ao cão:
Por isso abisolva ella,
Lançae a vossa benção.

“Si vós não salvar esta alma
Que aos vossos pés se apresenta,
O demonio, sabendo disto,
Agora é que bem attenta,
E eu quero que elle hoje
Réle a testa e quebre a venta.”

(Jesus) — “Pois, minha Mãe, carregue a alma,
Leve em sua protecção,
Diga ás outras que a recebam,
Façam com ella união...
Fica feito o seu pedido:
Dou a ella a salvação.”

(Cão) — “Vamos todos nos embora
Que o causo não é o primeiro,
E o peior é que tambem
Não será o derradeiro...
Home que a mulher domina
Não pode ser justiceiro!”

(Jesus) — “Os demonios se arretirem,
Vão lá p’ras suas prisão
Que é pra não attentar mais
A todo fiel christão...
Quem recorrer a meu nome,
Eu garanto a salvação.”

Agora acabei o verso
Minha historia verdadeira...
Toda vez que eu canto elle,

Dez mil réis vem p’r’a algibeira,
Porém hoje eu dou por cinco:
Talvez não ache quem queira!

No “Cancioneiro do Norte, de Rodrigues de Carvalho, intitulada “A peleja da alma” há uma poesia que é, no fundo, a historia d’“O castigo da soberba”; é, porém, diversissima na forma.

Disse, paginas antês, que são mui raras as irreverencias dos cantadores para com os Padres da Igreja Catholica: por isso mesmo entendo que deve ser repetida aqui esta satyra, cuja acquisição foi até motivo de surpreza para mim:

Eu vi se narrar um facto
Que fiquei adimirado:
Um sertanejo me disse
Que no seculo passado
Viu se enterrar um cachorro
Com honras de potentado.

Um inglez tinha um cachorro
De uma grande estimação,
Morreu o dito cachorro
E o inglez disse, então;
— “Mim enterra este cachorro,
Inda que gaste um milhão.”

Foi ao vigario, lhe disse:
— “Morreu cachorro de mim
E urubú do Brasil
Não poderá dar-lhe fim...”
— “Cachorro deixou dinheiro?”
(Perguntou-lhe o Padre assim)

— “Mim quer enterrar cachorro!”
Disse o Vigario: — “ô inglez,
Você pensa que isto aqui

 
E’ o paiz de Vocês?”
Disse o inglez: — “Com cachorro
Gasto tudo, desta vez...

“Elle, antes de morrer,
Um testam.ento apromptou,
Só quatro contos de réis
Para o Vigario deixou...”
Antes do inglez findar,
O Vigario suspirou.

— “Coitado! (disse o Vigario)
De que morreu esse pobre?
Que animal intelligente
E que sentimento nobre!
Antes de partir do mundo,
Fez-me presente do cobre...

“Leve-o para o cemiterio
Que eu vou o encommendar,
Isto é, traga o dinheiro,
Antes delle se enterrar,
Que estes suffragios fiado
E’ factivel não salvar!”

E lá chegou o cachorro,
O dinheiro foi na frente,
Teve imponente o enterro,
Missa de corpo presente,
Ladainha, etc., etc.,
Melhor do que certa gente...

Mandaram dar parte ao Bispo
Que o Vigario tinha feito
O enterro dum cachorro,
O que não era direito:
O Bispo, ahi, falou muito,
Mostrou-se mal satisfeito.

 
Mandou chamar o Vigario...
— “Prompto! (o Vigario chegou)
A’s ordens, Sua Excellencia!”
O Bispo lhe perguntou:
— “Então, que cachorro foi
Que o Reverendo enterrou?”

— “Foi um cachorro importante,
Animal de intelligencia:
Elle, antes de morrer,
Deixou a Vossa Excellencia
Dois contos de réis em ouro...
Si eu errei, tenha paciencia!”

— “Não errou, não, meu Vigario,
Você é um bom pastor,
Desculpe eu incommodal-o,
A culpa é do portador...
Um cachorro como esse
Se vê que é merecedor!...”

  1. Publicada em   Ultimas conferencias e discursos (1924) (projeto de transcrição), p. 268-298. [Nota editorial da Wikisource]