Quando Paulo Maurício bateu à porta de sua casa soavam piedosamente em todos os campanários as 12 pancadas de meia-noite. Uma chuvinha impertinente e fria açoitava a atmosfera e vinha colar à fronte magra do poeta os negros cabelos que a sombreavam.

A casa era na rua da Misericórdia; uma casa de fúnebre aparência e velha como as três virtudes teologais. Estava a rua silenciosa; a chuva enlameava as calçadas em cujo passeio, ao longe, ressoavam monótonos os passos de um sonolento policial.

O poeta mal comera durante o dia, e uma maldita febre — a febre da pobreza -, vós a conheceis, miseráveis! Fazia latejar-lhe o pulso ardente, roçando-lhe nos lábios pálidos a asa diabólica.

Dormia o Cérbero daquele inferno, à hora em que o esfaimado inquilino levantava a aldraba e propunha-se a safar-se da chuva cada vez mais perseguidora. Enquanto pela quarta vez o poeta batia à porta do seu tugúrio, alguma coisa foi-lhe de encontro às pernas e um hálito quente bafejou através das calças úmidas.

Voltou-se Paulo Maurício e reconheceu na tal coisa um cão; um cão magro e trêmulo, com os olhos cheios de dor e de meiguice como acontece a essa classe admirável. Paulo Maurício curvou-se e roçou os dedos carinhosos no pêlo hirsuto daquela inesperada visita.

O cão lambeu os dedos do poeta, grunhindo em sinal de festa.

Paulo Maurício dizia entre si, contemplando os lacrimosos olhos do rafeiro:

— Pobre diabo, pobríssimo-diabo! Condenam-te à fome, ao frio, às chuvas, até o dia em que um espetaculoso e nédio fiscal te arremessar às goelas secas uma bola de arsênico. O teu rival, esse gatinho traidor e voluptuoso, de gana escondida no veludo, pronto sempre a dar o bote, possui tapetes flácidos, um ninho sobre o piano da menina, e um berço agradável no cesto da costura. Tu, que és bom, ó amigo! Tu, que és nobre, altivo, humilde e carinhoso — tu, á símbolo da fidelidade — coisa em que a época não crê absolutamente -, andas por ai a enlamear-te nas sarjetas imundas, a latir no meio da escuridão e do inverno, a ladrar no céu torvo e insensível, sem que alguém se lembre de te oferecer uma côdea de pão ou uma guarita para a noite. Estás com fome, eu o sei! Vejo nos teus olhos desvairados e na rispidez febril de tua língua humilhada. Consola-te comigo, ouviste? Ora vamos lá! Não gemas mais assim que me feres duplamente. O mal de muitos consolo é, diz esse enorme e estúpido povo, o povo que faz máximas durante o almoço, o jantar e a ceia. Olha para mim. Aqui estou eu também com uma violenta falta de alimentos! E sou feito à imagem de Deus! E penso, e cismo, e creio nas grandes aspirações do século e da humanidade. Tem paciência. Basta, basta, não me faças cócegas na mão com a tua língua. Safa! A porteira dorme hoje como qualquer empregado público. Afasta-te um pouco, meu amigo, e deixa-me atordoar os sonhos dessa fera, que bebeu uma dose de ópio hoje para atormentar-me!

Paulo Maurício bateu de novo à porta. Responderam-lhe do fundo do corredor com uma espécie de ronco ou de grunhido sinistro.

— Bom; despertei o bruto — disse o poeta.

A chuva engrossava. Por trás do nevoeiro o céu tempestuoso parecia uma barreira impenetrável entre as consolações divinas e as decantadas angústias humanas.

Paulo Maurício conchegou ao peito o fraque desmantelado e enterrou o queixo numa gravata impossível. O cão encostado às pernas do poeta tiritava estendendo a cauda enregelada e nua.

Rangeu a porta sobre uns gonzos atroadores, e no vácuo mal aclarado pelas réstias dum lampião, surgiu o focinho meio feminino e meio lupino duma parda colossal.

— Ainda um dia eu o deixo a patinhar aí pelas ruas, senhor Maurício — rosnou ela, embrulhando-se na baeta, que a envolvia até os pés. — Isto são horas, meu senhor, de vir acordar a gente! Vale muito a pena meu amo alugar quartos para me enterrar mais depressa.

— Pois já pensa em morrer, tia Angélica? — volveu o poeta sorrindo e afagando o ombro da porteira. — Ora multo boas noites!

— Amém. Então não entra, senhor?

— Entro sim, tiazinha de minha alma, entro e em companhia.

— Quê?!

— Não se agaste. Trago um pobre para passar a noite comigo. Temos que conversar acerca do Asilo de mendicidade. Uma grande idéia do governo, tia Angélica!

O vento começou a soprar com violência, e a chama da lanterna agitou-se como um colérico em convulsões.

— Deixemo-nos de brinquedos, senhor! Faça favor de entrar para dentro, que eu não estou para apanhar uma defluxão de peito. Ora não se viram, e vosmecê ri-se!

— Com licença. Permita-me que eu convide a minha visita a acompanhar-me ao quarto.

— Faça favor... — E o monstro tentou impedir a entrada ao companheiro de Paulo Maurício.

Era tarde, porém. A um sinal do poeta, o cão faminto dera um arranco para o interior da casa, em risco de lançar por terra a velha parda, a lanterna e qualquer outra barreira que lhe interceptasse o ingresso.

— Um cachorro, gente! — bramiu a velha, recuando assustada.

— Um cachorro, sim, minha querida tia Angélica! Um cachorro honesto como o senhorio desta casa, um cachorro ágil, atrevido e grato. Olhe, se vosmecê um dia por sua desgraça cair no mar...

— Credo!

— Ouça: se tal acontecer, este amigo salvá-la-á, expondo-se à morte, unicamente, tia Angélica, porque a sua caridade recebeu numa noite de chuva à porta de casa. e deu-lhe um bocado de pão para matar a fome. Veja se há por este mundo de Cristo muito fidalgo agradecido assim!

A velha resmungou entre dentes:

— Veio em má hora. Não há um pãozinho de rala para remédio!

O poeta acudiu com um melancólico sorriso:

— Experimente sempre; procure. Estou hoje com desejos de ceder-lhe, tia Angélica, a cabeça de Jesus, que tenho no meu quarto... Aquela, sabe?

A medonha careta da velha metamorfoseou-se num sorriso, que à força de tentar ser delicado, fez lúgubre e fantástico.

— Está bom, está bom. Não quero que as alminhas do céu digam que eu fui má um dia. Vamos ver se há na cozinha algum osso ou pelanca para esse cachorro feio.

— Feio? Repare bem, tia.

E o poeta apoderando-se da lanterna aproximou-a ao rosto do cão.

O pobre animal estrebuchava de frio, cosido com a parede esboroada. De suas pupilas cobertas por tênue neblina escapavam-se reflexos metálicos como os que produz o aço mal polido e o seio das ondas no mar alto ferido pelas estrelas.

— Olhe como treme o infeliz, tia Angélica. Faz pena, não é verdade? Coitado, coitado! Que patas frias! Andaste muito pelo meio da chuva, hein, meu camarada?

O cão, como se compreendesse a linguagem piedosa do poeta, lambeu-lhe de novo as mãos, uivando docemente.

— Vosmecê ainda lhe há de acontecer alguma com os bichos — observou a velha. — Da outra vez foi com o gaturamo, que entrou pela janela do seu quarto; agora é um cachorro, que apanhou na rua. Cachorro de rua, então, que dana, enquanto o tinhoso esfrega o olho!

— Verá que se engana, tia Angélica. O que me pode acontecer por acaso? Chorar? Ora viva! Chora-se por tantos homens e por tantas mulheres, quanto mais por um cão!

— Oh! senhor! Vosmecê está doido! Cão e gente é o mesmo?

— O mesmo, não, tia Angélica: estou pouco disposto a ofender a superior raça canina, os animais mais perfeitos da criação. O cão é incapaz duma baixeza ou duma traição. Bate-se-lhe e ele volta a receber de novo a pancada, humilde e satisfeito. A sua ambição única é a de servir de sombra ao homem, que lhe concede a suprema ventura de uma vez ou outra, cuspir-lhe no pêlo ou pisar-lhe a cauda com um pé amaldiçoado.

— Tá, tá, tá! Vamos ao que serve. É tarde e eu quero me deitar. Leve o seu cachorro para cima, mas Deus permita que ele não ladre, senão o senhor Gregório...

— O senhorio?

— Sim, senhor, é muito capaz de passar-me alguma sarabanda. Os vizinhos não gostam nada de barulhos, nem eu, com a ajuda de Deus!

Paulo Maurício chamou o cão; o animal ali ficou unido à parede sem mover as pernas. A fome e o frio petrificavam-no.

— Acenda o espírito de vinho, tia Angélica, e aquente-me um pouco de água. Hei de pôr-te rijo como um fuzileiro, meu amigo! — acrescentou o poeta carregando o cão nos braços compassivos.

— Santa Mãe de Deus! — acudiu a velha, esbugalhando os olhos. — Vosmecê quer fazer deste bicho um menino de peito?

— Não pode andar, e então? Levo-o ao colo.

E o poeta subiu ao seu quarto conchegando ao peito o cão agonizante.