O espaço ocupado na casa da rua da Misericórdia por Paulo Maurício era uma água-furtada, de telha-vã, e paredes mal caiadas, em cujas fendas o vento estorcia-se às vezes como gritos dum bando de almas condenadas.

A vida desse rapaz era um prodígio de bondade e de ternura. Nunca do fundo de sua miséria arriscou ele um cartel ao mundo egoísta e brutal, que o encerrava em seus círculos infernais, como os do Inferno do Dante, onde habitam os que perderam de todo a esperança e a fé.

Paulo Maurício estava ainda na época luxuriante da existência em que a dor desfaz-se em gotas de lágrimas, e o espírito retempera-se, amianto divino, nas labaredas do sofrimento e nas piras da amargura.

O seu coração aspirava sempre, e as angústias de todos os dias e de todas as horas eram as brancas asas com o auxílio das quais aquele ente peregrino e nobre devassava os largos mistérios do infinito.

Órfão e pobre, apresentara-se à sociedade, à madrasta implacável, armado apenas com a túnica de sua mocidade e as crenças bebidas no regaço materno. Para que contar mais este capítulo da inesgotável história dos miseráveis?... Paulo Maurício tentou duas, dez, cem vezes ganhar o pão amargo como qualquer imbecil de tamancos mas, faltando-lhe a principal qualidade para tão duro mister — a insensibilidade -, teve de tocar em outro ferrolho e pedir agasalho em novo tugúrio. A sua inteligência fenomenal atraiu as atenções dum honrado homem, que o iniciou nos segredos das tricas comerciais, e proporcionou-lhe as proteções de algumas casas de negócio, onde ele escrevia, conseguindo amontoar laboriosamente o parco pecúlio de sua subsistência diária.

O que porém o arrastava, o seduzia e o desorientava era esse místico arroubo das almas privilegiadas, essa ascensão do espírito às paragens desconhecidas — a poesia enfim, Oceano de diamantes e de lágrimas, em cujas ondas a mocidade se afoga!

Era poeta; poeta pela inspiração e pelo sentimento. Havia na sua vida uns traços da existência fugitiva de Casimiro de Abreu, e descobria-se em sua fronte a palidez doentia, com que Delaroche desenhou o suave contorno da cabeça de Cristo.

O honrado protetor morreu na véspera do dia em que Paulo Maurício foi dispensado dos seus serviços de escrituração nas casas que lhe deram almoço cotidiano.

Quando voltou para o seu quarto, vinha sombrio.

Beijou repetidas vezes o retrato de sua mãe, e depois de estender a vista ansiosa pelo horizonte impassível e tranqüilo — desatou a chorar convulsivamente.

— Ótimas tardes lhe dê Deus, senhor Maurício! — exclamou à porta uma voz trôpega e surda.

Era mestre Gregório, o senhorio da casa, caricatura de homem sério, olho de usurário e sorriso de raposa velha.

O poeta enxugou furtivamente as pálpebras e dirigiu-se ao senhorio.

— Boa tarde, senhor Gregório; boa tarde. Vem cobrar o mês? Estamos a 24, parece-me.

A raposa fingiu-se surpresa.

— Já 24, hein? Ora vejam! Nem me eu alembrava.

Paulo Maurício abriu uma gaveta.

— Para que tanta pressa, senhor Maurício? Deixe-se disso!

— Tanto faz hoje como amanhã. Aqui tem, senhor Gregório; cinco e dois sete, e três dez, e seis dezesseis...

— ...Mil, duzentos e quarenta; ainda faltam esses quebradinhos. Bom; bom; pegue lá o recibo; trazia-o, por acaso.

A caricatura de homem sério pôs a rir com todos os seus dentes de onça sanguinária. Ia a sair quando o poeta pronunciou-lhe o nome.

— Chamou-me?

— Estou a propor-lhe um negócio, senhor Gregório.

O homúnculo enfiou, e abotoado-se todo:

— Se é para baixar o aluguel, não estou em casa.

Paulo Maurício reprimiu um gesto de asco e:

— Pelo contrário, é para pedir-lhe que não me o aumente. Fui despedido de Soares Campos e da casa do Fabrício.

Mestre Gregório estremeceu.

— Oh! diabo! — disse ele. — Então como vive o senhor de hoje por diante?

— Quer dizer: como pagarei os seus aluguéis, não é verdade?

— Quase, quase. Mas afinal de contas o dinheiro é que é a vida, e quem não o tem peça a Deus que o mate e o diabo que o carregue. Grande coisa é andar pelas ruas de cotovelos rotos e barriga vazia! Safa! antes um estouro!

— Ouça-me, senhor Gregório. Sabe que sou amigo do trabalho?

— E depois?

— Façamos um contrato. Deste momento em diante ocupar-me-ei com os seus livros de escrituração, e o meu ordenado...

— Acabe.

— Resumir-se-á nos aluguéis que eu deva pagar-lhe mensalmente.

— Dezesseis mil, duzentos e quarenta réis?

— Justamente. V. S. come em casa...

— De vez em quando.

— Come. Se achar humano convidar-me para a sua mesa, basta-me.

— E o senhor lidará com todos os meus livros, assentos, pagamentos etc., etc.?

— Tudo.

— Irá a cobranças?

De pálido que era tornou-se dessa vez purpúreo o rosto de Paulo Maurício, até a raiz dos cabelos.

— Não — respondeu ele com a voz vibrante e rápida.

— Está feito. Há quem seja mais exigente do que o senhor. Vou pensar no caso.

O poeta aproximou-se ao usurário, e cravando-lhe as pupilas irradiantes:

— Em 24 horas dê-me a resposta decisiva.

— Por que em 24 horas e não em 30?

— Nada mais simples. O senhor vai sair daqui por uma porta e eu por outra. Baterei em mata duma aldraba a pedir trabalho. Mendigarei um emprego, um mata-fome, uma espelunca em que derrame suor e lágrimas... em troca da importância duma camisa lavada e duns sapatos que me livrem da lama. Eu possuo uma alma ousada, senhor Gregório! O cansaço não me aterra, e a luta é para mim o meio único de um dia deixar no mundo um nome digno de mim e de minha mãe. Bem vê que estou disposto...

— Mas o que tem isso com as 24...

— Vai ver. Se voltar sem ter encontrado um coração que me ampare e me compreenda, esperarei pela sua resposta até o tempo do prazo fixo. Demos que V. S. me diga redondamente que não.

— Demos!

— Nesse caso — e nos olhos do poeta fulgiu a asa dum pensamento sinistro -, eu pedirei perdão à sombra imaculada de minha mãe e...

O usurário acompanhou automaticamente os movimentos precipites do moço.

Paulo Maurício desalojou de entre os papéis, que povoavam a gaveta, uma excelente faca mineira, de bainha de prata, e desembainhada, fê-la brilhar ante os olhos espavoridos do senhorio...

— Que diabo faz o senhor? — acudiu mestre Gregório procurando o chapéu e a bengala.

— Não tenha receio. Está vendo esta lâmina? É magnífica; aço de primeira qualidade; fura o ferro como se atravessasse a casca dum ovo. Pois, ilustríssimo senhor, admitamos que ninguém me salve desta miséria, e que a resposta do senhor Gregório vá de parelhas com a de tão cavalheirescas almas...

Mestre Gregário estava fulo de terror; a faca fazia evoluções entre os dedos nervosos do poeta, como um corisco.

— Meto-me neste quarto, queimo os meus papéis, escrevo um bilhete de agradecimento à sociedade fluminense, e mergulho este ferro até o cabo dentro do coração. Aí tem!

Paulo Maurício embainhou a arma, sorrindo com o ar semibárbaro e semidivino dos gladiadores romanos. O senhorio cortejando até o chão, saiu do quarto a resmungar grotescamente. No patamar esbarrou com a velha Angélica:

— Diga-me cá, mulher, esse rapaz, esse senhor Maurício, é dado à bebida?

— Até hoje, meu senhor, não viram nada estes olhos que a terra há de comer.

— Salta! — continuou mestre Gregório, apalpando um por um os degraus da escada — se ele em vez de meter em si a faca, desse para...

E um suor de morte percorreu-lhe a espinha dorsal.