Na gaveta em que se escondia a faca tão contrária à índole oscilante de mestre Gregório, guardava o poeta o seu tesouro. Um tesouro! A riqueza que não se vende nem se compra, a opulência acumulada com lágrimas e com sorrisos, brilhante sempre e sempre abençoada pelo destino!
No silêncio da noite, à luz mortiça da vela, Paulo Maurício abria um grande livro manuscrito, em cuja primeira página lia-se em largos caracteres a palavra Ideal. Era o título do poema.
Todas as noites, em hora de inspiração, o poeta depositava no receptáculo de seus pensamentos o óbolo do coração e da mocidade. O Ideal simbolizava a luta do homem com a natureza e com a sociedade. Vibrava naqueles cantos resplandecentes e enérgicos ora a lira arrogante do Ashaverus, ora o mavioso arrabil da Messiada.
Um pesar no entanto oprimia a alma ingênua do poeta. Onde achar um juízo imparcial sobre a sua obra? A quem recorrer? A quem pedir conselho e lição?
Repetidas vezes os dedos nervosos rasgavam um canto começado, e Paulo Maurício embebendo os dedos entre os cabelos perdia-se num silencioso e morno abatimento.
O nome e a imagem de sua mãe ocupavam quase todo o poema. Eram as bússolas e as âncoras da inspiração febril; presa a essas santas amarras, a alma do poeta ganhava forças, ganhava coragem, ganhava luz, no meio das sombras e desalentos que a perseguiam.
Paulo Maurício pouco saía de casa depois do seu contrato com o senhorio. Era o seu passeio favorito uma livraria menos freqüentada, onde, graças à proverbial bondade do livreiro, o poeta conseguia examinar alguns volumes, e mais de uma vez, trazê-los consigo por empréstimo.
O seu ânimo recluso e desconfiado separava-o do mundo e dos moços como ele. Receava molestar os mais com a sua desgraça, e sabe Deus a angústia que o oprimia, ao partilhar as magras refeições de mestre Gregório.
Começa esta história num dia em que Paulo Maurício, voltando à casa tarde, perdera o jantar. Subiu ao seu quarto, leu cinco páginas da Imitação de Jesus, e quando anoiteceu, saiu a espairecer. A velha Angélica — rendamos-lhe o merecido preito! — viera oferecer ao poeta alguma coisa "para aquentar o estômago", mas o moço recusara com um doce sorriso.
O horizonte estava um pouco tempestuoso, apesar de não chover ainda. Paulo Maurício foi até o Passeio, onde ficou três horas, a cismar por entre as árvores, e a contemplar pensativo a marcha dos cisnes e das irerês no lago adormecido.
— Ó minha mãe — murmurava ele com a sua alma -, acaso me vês tu lá de cima, da misteriosa guarida, ninho e glória do teu espÍrito imortal? Responde-me, inefável essência! Consola-me e dá-me forças para caminhar nesta negra rua da amargura!
Soprava a brisa do mar. Paulo Maurício cuidou sentir o carinho de uma asa invisível entre os seus cabelos esparsos.
Havia baile no Cassino, essa noite. Eram dez horas os cupês e os trens faustosos estacavam ruidosamente à porta do opulento edifício.
As luzes do salão resplandeciam como num festim oriental. Os lacaios da casa imperial, os curiosos e os ramalheteiros enchiam a calçada junto ao portão. Paulo Maurício instintivamente moveu os panos até lá e esgueirou-se entre a multidão. Aproximava-se um carro; aberta a portinhola, desceu, ágil e elegante, uma moça envolta em cambraias diáfanas. Luziam-lhe na cabeça os diamantes, e o seu ombro nu, desfazendo-se da capa, que o cobria, cintilou como o dorso de Vênus.
O poeta fechou os olhos resistindo à fascinação. A elegante desapareceu abandonando ao indiscreto vento da noite uma espiral de violetas e de cravos.
Paulo Maurício vagou até meia-noite por quase todas as ruas da cidade, meio alucinado, com aquela figura de ninfa ou de arcanjo a segui-lo como a sombra do amor. O seu estado de fraqueza e a comoção que o abalava faziam-no vacilar como um homem quase ébrio.
A porta de casa encontrou o cão. A sua alma ansiosa precisava transbordar, e quando ele carregou ao seio até o quarto o corpo do animal moribundo, ia reconhecido ao destino por lhe haver enviado uma criatura em quem empregasse o mundo de amor e de simpatia que surgia esplêndido do seu coração extasiado.
A velha Angélica cumpriu a promessa baseada na oferta da cabeça de Jesus. Momentos depois o cão, acalentado e saciado, punha os olhos úmidos no seu novo amo. Paulo Maurício fechou a porta da alcova e chegou-se ao cão.
— Posso contar com a tua amizade, que dizes, amigo?
O rafeiro estendeu a cabeça agradecida grunhindo em surdina.
O poeta sentia-se cambalear. Tentou varrer as nuvens que lhe obscureciam a vista, mas, faltando-lhe as pernas, caiu sobre a cadeira ao pé da mesa.
Recuperou os sentidos ao romper do dia. A primeira coisa que viu foi o cão, na mesma atitude da véspera, de olhos presos nele com a persistência infatigável de um irmão ou de um amigo.
Banharam-se de lágrimas as faces do poeta.
— E é um cão! — murmurou pensativo.