Gregório ia às mil maravilhas com o seu novo guarda-livros. Paulo Maurício, além de ser uma inteligência rara, era a dignidade personificada. Na fronte daquele moço distinguia-se esse toque solene que a experiência deixa gravado na cabeça encanecida do ancião.
E que melhor escola do que a da necessidade e a da miséria? É aí que se estuda a vida e se descobre o fio de Ariadne para os meandros inacessíveis da sociedade mundana. Paulo Maurício educava o seu espírito entre as lágrimas e os sofrimentos. Desse choque fatal surgia-lhe a alma cheia de irradiações, como Minerva do cérebro de Júpiter e a namorada de Marte do meio das espumas.
No dia seguinte ao do encontro com o cão esfaimado, desceu o poeta até a sala de jantar, a hora do almoço, amparando-se ao corrimão e encostando-se às paredes. As sombrias visões da febre dançavam urna sarabanda infernal ante os seus olhos turvos.
O usurário esperava-o à mesa em companhia de um sujeito que Paulo Maurício não conhecia.
— Ora viva o sr. Maurício! — exclamou mestre Gregório. — Não nos quis ontem aparecer?
O poeta saudou com um leve sinal de cabeça o desconhecido, e apertando a mão do senhorio:
— Estive fora ontem — disse ele. — Passei mal o dia!
— E é verdade. O senhor está com as mãos como uma brasa!
Paulo Maurício tomou lugar à mesa, sorrindo dolorosamente.
Mestre Gregório incumbiu-se das apresentações.
— O sr. Paulo Maurício! O sr. Mendes, rico fazendeiro de Baependi!
— É filho do Rio de Janeiro? — perguntou Mendes ao poeta.
— Sim, senhor. Aqui nasci e creio que aqui morrerei.
— Um moço da sua idade não pensa em morte! Mas, agora reparo... O que tem? Sente alguma coisa?
O poeta mal chegara o alimento à boca; um suor frio derramou-se-lhe pela testa e faltou-lhe a luz de repente.
— Não é nada — acudiu ele, dominando-se. — Fraqueza talvez!
O fazendeiro apiedou-se do estado do moço, e com a voz comovida;
— Para que trabalha tanto? Disse-me o sr. Gregório que o senhor leva as noites em claro. Também, não vai a matar; nem aqui o amigo é tão exigente assim!
— Oh! não. Os trabalhos de que me incumbe o sr. Gregório pouco me atropelam. O meu mal, senhor, é dos piores e dos que não têm remédio.
Mendes sorriu com brandura paternal.
— Alguma paixão, hein?
— Por minha mãe. Amo-a e hei de morrer desse amor.
Mestre Gregório olhou de esguelha para o fazendeiro, movendo os ombros quase imperceptivelmente.
Mendes, porém, era uma alma romana, um desses distintos caracteres cuja missão no mundo é as mais das vezes compreender e aliviar as desgraças alheias. Rara avis.
— O senhor é órfão, não?
— De Deus e dos homens, senhor! — respondeu Paulo Maurício com uma pungente dignidade.
— Oh! — sussurrou o usurário a modo de censura.
Mendes contemplou lentamente o poeta.
— Não fale assim. A criatura deve esperar sempre uma felicidade, embora tardia. O céu, mais hora, menos hora, ampara aqueles que o imploram com sinceridade e crença. Quer fazer-me acreditar talvez — veja lá se pode! — que não tem o menor vislumbre de ambição e que a nada aspira no mundo?
— Mentiria, se tal dissesse! — acudiu Paulo Maurício elevando o busto com um sentimento de nobre orgulho. A minha ambição, porém, é alheia aos caprichos dessa riqueza bastarda cimentada com bilhetes de banco e moedas cunhadas. Aspiro às coisas ideais! Meu coração estremece feliz à idéia de que um dia, no futuro, mais de uma boca cite-me o nome com entusiasmo e amor. Eu prefiro a glória de Tasso à de Rothschild, e de bom grado trocaria, se os possuísse, os tesouros dos contos arábicos por uma estrofe de Lamartine.
— Poesia! Poesia!
— E então! Não será uma virtude, diga-me, e uma grande virtude, ser poeta no meio das brutalidades, da fome, das misérias e dos insultos da existência terrestre? Qual merece mais: o sibarita que se chafurda até o pescoço nos pântanos, ou o infeliz que, para não manchar a túnica de sua alma, agarra-se a quanta pedra, a quantos espinhos e tojos encontra às mãos, morto de fadiga e de torturas?
— Gosto de ouvi-lo, moço; isso é belo, é cheio de abnegação e de sentimentos elevados. Dê, porém, ao coração a sua parte, ou por outra, o seu inestimável quinhão entre todas as vicissitudes da vida. É preciso admitir que há na terra quem mereça ainda simpatias e amor.
— Há, sim. E eu conheço alguém...
— Bravo!
— Veja.
O poeta fez um sinal, e um cão, deitado por baixo de sua cadeira, estirou o colo, as pernas e o pescoço, pousando em seguida a cabeça festiva nos joelhos de Paulo Maurício.
— Oh! oh! — exclamou mestre Gregório. — Não sabia desse novo inquilino!
— Esqueci-me de lho participar — volveu Paulo Maurício afagando o cão. — É tempo ainda.
— Com que então — disse o fazendeiro — é esse o tal alguém tão preconizado?
— Justamente; é este cão.
— Tem-no há muito?
— Desde ontem à meia-noite. Chovia quando o encontrei à porta desta casa; o coitado tiritava de frio e de fome. A desgraça possui o imparcial condão de nivelar todos os animais. Compadeci-me deste miserável órfão e dei-lhe abrigo. Hoje de madrugada surpreendi-o com os olhos fitos em mim como um sublime enfermeiro. Quero-o deveras e dói-me não ser rico para nomeá-lo meu herdeiro universal.
— O senhor sempre anda com umas idéias! — observou mestre Gregório, rindo parvamente.
— É de raça este cão?
— Parece que roçou pela genealogia dos Terra Nova; mas que olhos! Que cabeça inteligente! A natureza é uma ingrata na extensão da palavra. Nega a voz a um animal como este, para outorgá-la copiosamente a quanto barbeiro estupidarrão e usurários há por aí.
Mestre Gregório dilatou as ventas e esfregou a vasta orelha.
— O senhor não freqüenta a sociedade? — perguntou Mendes.
— Não, senhor. Ia uma vez ou outra, enquanto minha mãe vivia, à casa em que por caridade lhe davam um travesseiro e um lugar à mesa. Tive um protetor, que morreu, há pouco tempo, e desde então só à imensa bondade do sr. Gregório devo a ventura de conversar com o sr. Mendes, a esta hora e nesta sala.
— Acredita na espontaneidade da simpatia?
— Por que não?
— Saiba, pois, que deve contar-me no número dos que o estimam.
Paulo Maurício agradeceu modestamente.
Quando subiu para o seu quarto, ia mais lento e senhor de si. O cão, à maneira do homem, também movia melhor o corpo, aventurava ziguezagues caprichosos, sacudia a cauda e estendia a cabeça aos raios do sol, que iluminavam a alcova. O céu estava azul; soprava um vento frio e agradável: no quintal de uma casa próxima, duas lavadeiras cantavam alegremente.
Paulo Maurício apoiou-se à janela e respirou com delicias os aromas do dia. Estava mais alegre, mais forte, mais esperançoso e por que não mais feliz? Mais feliz também; as palavras do fazendeiro haviam-lhe sido gotas de ambrosia e um bálsamo para as feridas de sua alma atribulada.
É fácil na mocidade transformar-se o sentimento e dar abrigo às musas da esperança e da fé o coração, ondas, a todas as pérolas e a todas as tempestades da vida. O fazendeiro jantou ainda em casa de mestre Gregório. Vendo-o de novo, estremeceu de júbilo o poeta. Ao despedir-se, disse-lhe Mendes:
— Lembre-se de mim.
— Sempre.
— Hei de vir com a família passar uns meses na corte. Dar-me-á o gosto de aparecer por minha casa?
Paulo Maurício guardou silêncio.
— Vai, sim senhor, vai! Tinha que ver! — interrompeu o usurário. — Pode-se gabar, sr. Maurício! que ainda não ouvi este nosso amigo falar de ninguém como de vosmecê.
O poeta apertou entre as suas as mios do fazendeiro.
— Deus lhe pague.
— Vai?
— Vou.
Terminada uma pequena escrituração de mestre Gregório, Paulo Maurício entregou-se ao seu poema, de corpo e alma. As idéias jorravam-lhe do coração em borbotões revoltos; anavalhe o peito, e a inspiração, à semelhança dessa terrível serpente do Amazonas, enroscava-se-lhe na alma em milhares de círculos gigantescos.
O cão parecia compreendê-lo, seguindo-lhe os movimentos, os gestos, os acenos e os olhares.
Suave, a noite abria no regaço das nuvens todos os seus irradiantes tesouros. A lua, fraca ainda, franjava o horizonte de uns leves tons de opala, que se multiplicavam de floco em floco.
O herói do poema de Paulo Maurício, como o Ashaverus, como o judeu amaldiçoado pelo Cristo, vagava cercado das mais cruciantes dores e pesadas aspirações, à cata do ideal. Urna diferença, porém, distinguia os dois tipos: um era perseguido pela profecia de Jesus, o outro pela ingratidão dos homens.
O talento de Paulo Maurício obrara prodígios naqueles cantos repassados de entusiasmo e nervosa eloqüência. Por vezes o delírio da própria inspiração o dominava profundamente, a ponto de o poeta arremessar ao chão a pena e recitar em altas vozes as estrofes que lhe irrompiam do coração deslumbrado.
Nessa noite subiu à meta o sentimento que se poderia chamar a febre do ideal. Ofegante, trêmulo, com a fronte úmida e os lábios abrasados, o poeta declamava as últimas páginas do seu livro. Era um furacão. Era uma tempestade! Era uma maravilha!
O cão eriçava o pêlo e grunhia arrebatado naquela torrente impetuosa. Revelavam as palavras um quadro de horror ou de angústia; o animal confrangia-se todo, e mal conseguia suster-se nas patas vacilantes. A inteligência do homem o fascinava, e as chamas do poder criador como que o elevavam até a essência da alma humana.
No momento em que o herói do poema alcançava enfim o bem supremo, o amor partilhado, e as coroas do triunfo na imortalidade, a voz de Paulo Maurício despedia notas de uma música divina; seus olhos fulguravam como a racha de uma aurora boreal, e uma espécie de torpor místico veio paralisar-lhe num êxtase a boca inspirada. O poeta correu à janela e voltou-se em cheio para as nuvens estreladas.
De um salto o cão foi-lhe no encalço, e, suspendendo-se até o peitoril, acariciou as mãos queridas, latindo de prazer e de palpitante ventura.
Paulo Maurício, com um movimento frenético, debruçou-se sobre o animal e prendendo-lhe a cabeça entre os dedos nervosos:
— Tu me compreendes, tu me compreendes, amigo! — articulou ele.
Em seguida, apoderando-se do manuscrito, mostrou-o ao cão.
— Já que o destino determinou que fosses tu a única testemunha das minhas secretas mágoas e alegrias... Olha! Isto aqui será o berço da minha glória ou o túmulo das minhas ilusões.
O cão veio humildemente deitar-se-lhe aos pés.