A MORTE DO CAMICÊGO



FOI o Edgardzinho quem "lançou" esse monstro. O Camicêgo era para sua imaginação de quatro annos, um "bicho malvado", grande como o guarda-louça. Depois, cresceu e ficou do tamanho do morro.

Moravamos na fazenda, em casa rodeada de morros, e ser grande como o morro avistado da "porta da rua" era algo sério...

Comia gente, o Camicêgo, e tinha um bico assim! Este assim não era explicado com palavras, mas figurado numa careta de labios abrochados em bico e olhos esbugalhados.

Com tão gentil focinho não devia ser má rez o monstro — pensava a "gente grande" que, de passagem, via o Edgard refranzir os beicinhos côr de rosa naquella onomatopéa muscular. Mas para os nervosos cinco annos da sua maninha, a Martha, era de crer que fosse horrendo, tal o rictus de pavor com que, enfitando a macaquice do irmão, instinctivamente lhe arremedava o muxoxo.

E todas as noites, na rede da sala de jantar, ficavam os dois, absorvidos no caso do Camicêgo — elle a desfiar as proezas incontaveis do monstro, ella a interrompel-o com perguntas.

— E come gente?

(Preoccupava á Martha, sempre que se lhe antolhava algo desconhecido, visto pela primeira vez — um besourão, um lagarto, uma coruja, saber o gráo de anthropophagia do bicho. O mundo para ella se repartia em duas classes: a dos seres bons, que não comem gente, e a dos máos, que comem gente.)

— Come, sim! respondia o Edgard. Pois não sabe que comeu o filhinho de Marianna, lá no morro, no dia da chuvarada?

A menina volvia os olhos sonhadores para a morraria enquadrada pela janella e quedava-se a scismar...

Nisto vinha para a rede um terceiro, o Guilherme, cujos dois annos e pico o traziam ainda muito amodorrado de imaginativa. Ouvia as historias mas não se impressionava grandemente, e no meio da papagueada hoffmanica saltava ao chão, pedindo coisa mais positiva — o pão-de-ló, o bolinho de milho, a gulodice qualquer do dia, entrevista no guarda-comida.

E a historia continuava a dois, na rede, onde os passaricos se balançavam, isochronos como dois ponteiros de metronomo — sempre entremeiada das perguntas da Martha, futura leitora de Grimm, e cabalmente delucidada pelo Edgard, um Wells em embrião.

— E onde móra elle?

No quarto escuro, no porão, debaixo da cama, no buraco do forno, naquelle barranco onde cahiu a vacca pintada — o Edgard encontrava incontinente uma duzia de biocos tenebrosos onde encafuar sua creação.

A's vezes brincavam de casinha na sala de visitas, grande salão sempre mergulhado em penumbra.

Sob o sofá antigo, de canella preta, armavam com albuns de musica e almofadas a casita da Irene, a grande boneca de louça sem uma perna.

Que maravilhosa mobilia tinha a casa! Coloridos cacos de tijella figuravam de sumptuosa porcelana. Havia travessas e sopeiras "de mentira". Em torno sentavam-se sabugos de milho, representando as grandes personagens da fazenda — Anastacia, a cozinheira; Esaú, o preto tirador de leite; Leoncio, o domador. Quando comparecia á mesa este heroe, não deixava de figurar tambem, solidamente amarrado a um pé de cadeira, o ultimo animal que elle amansara. Este ultimo animal era sempre o mesmo xúxú espetado de quatro palitos, á guiza de pernas, uma penna de gallinha como cauda e tres caroços de feijão prefigurando bocca e olhos — suggestiva esculptura da cozinheira que preferiam aos mais bem feitos cavallinhos de pau vindos de Nurenberg.

Assim brincavam horas, até que, de subito, farto já, o Edgard apontava para um canto da sala, onde eram mais intensas as sombras, e berrava, com cara de terror:

— O Camicêgo!

Debandavam todos, em grita, tomados de panico, rumo á sala de jantar cheia de sol, onde paravam, offegantes, a rir do susto.

Um dia appareceu no quintal um grande morcego moribundo, de asas rotas por uma vassourada da copeira.

O Edgard foi quem o descobriu, e sem vacillar o identificou:

— O Camicêgo!

Reuniram-se os tres em torno do monstro, em demorada contemplação: a menina, mais arredada, no instinctivo asco da sua aguda sensibilidade feminil; o Guilherme espichado no chão, de barriga, o rosto moreno apoiado nas mãos ambas; o outro a pegar sem nojo nenhum no bicharoco, a estirar-lhe as asas em gomos de guarda-chuva e a abrir-lhe a bocca para mostrar a serrilha dos dentinhos brancos, explicando, inventando petas a respeito.

— E este tambem come gente? pergunta a menina.

— Boba! Pois não vê que é um coitado que nem come esta palhinha? e mettia uma palha goéla a dentro do bicho já morto.

Mas "gente grande" appareceu na sala e pilhou-os na "porcaria" e com ralhos asperos dispersou o bando, pondo termo á lição anatomica.

O morcego, pegado com asco pela pontinha da asa, lá voou por cima do muro — pinchado e xingado — "...esta immundicie..."

De nada valeu o pito. O improvisado necroterio logo depois se transfere da sala para detraz do muro, á sombra de uma laranjeira onde cahira o morcego. O Edgard, com uma faca de mesa, procura abrir a barriga do "porco", a ver o que tem dentro. Depois, uma grande idéa: fazer sabão da barrigada!

A faca, porem, não corta aquellas pellancas molles, o "porco" foge á direita e á esquerda, e assim vae até que a Anastacia, de passagem para a horta em busca de tomates, pilha-os de novo na "porcaria".

Cambadinha! Vou já contar para mamãe!...

Nova dispersão do grupo, e vôo final da nojenta pellanca do vampiro, que desta vez foi pousar em poleiro inaccessivel — em cima do telhado.


Datou d'ahi a morte do Camicêgo. Não amedrontava mais.

Se Edgard o relembrava, os outros riam-se, porque a imaginação dos gurys encarnava logo o monstro na figura triste do pobre morcego morto, a estorricar-se ao sol no telhado.


Os homens, creanças grandes, bem que procedem da mesma maneira.

Com serem "gente grande" não deixam de ter seus Camicêgos, que lhes saem morcegos relissimos sempre que uma boa vassourada de critica os pespega para cima da mesa anatomica...

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.