PRIMEIRA FASE
(1830 — 1856)

Quando a 24 de agosto de 1882, na católica e friorenta São Paulo, insignificante povoado que não teria, talvez, meia centena de milhares de habitantes, morria Luiz Gonzaga Pinto da Gama, a agitação abolicionista já tinha iniciado o ciclo final do movimento impetuoso, transbordante, torrencial que, com alguns anos mais, varreria a escravidão da lista dos pecados brasileiros.

Mas, porisso mesmo que o movimento ainda estava na sua fase declamatória, de preparação do ambiente, jogando-se a fundo contra os magros resultados obtidos pela aplicação da lei do ventre-livre, arrancada esta, verdadeiramente extorquida á assemblea hostil de 1871, pelas artimanhas do Visconde do Rio Branco, o saimento fúnebre daquele que fora o primeiro grande apóstolo dos negros, o vanguardeiro efetivo da acção nessa campanha arriscada, revestiu-se da imponência e da importancia de um acontecimento histórico. Nada faltou ao brilho da sagração unânime: nem a multidão que acompanhou o féretro de um homem pobre, como se fosse ao enterro de um dos maiores figurões da época; nem a presença, no séquito, da mais alta autoridade de São Paulo, que era o Conde de Tres Rios, vice-presidente da Província, em exercício; nem o comparecimento do que a cidade possuia de mais inteletual no tempo, nem a adesão dos representantes da religião católica, pela irmandade de Nossa Senhora dos Remedios, acompanhando o esquife de um incréu; nem o protesto dos homens de côr, reclamando o direito de serem os únicos a carregar, a pulso, o corpo do inolvidavel batalhador da causa dos escravos.

Luiz Gama morria numa apoteóse. De miseravel moleque, engeitado e escravisado pelo próprio pai, ascendera, num esforço sobrehumano, de que ha alguns outros exemplos, no Brasil, embora nenhum com o mesmo relevo nem com a mesma intensidade, e subira até essa completa consagração pública. Quarenta e dois anos de vida laboriosa, obstinada, tenaz, e da qual os primeiros tempos foram, sem a mínima hipérbole, infernais, tinham feito do humilde negrinho que galgara a pé, a Serra do Cubatão, na escalada de Santos para São Paulo, a hercúlea envergadura do homem, ao mesmo tempo, mais amado e mais temido da Capital da Província bandeirante.

Tinha-o elevado a essas alturas a sua insaciavel, a sua inextinguivel, a sua indesalteravel sêde de justiça. Póde representar-se a vida inteira de Luiz Gama como duas mãos tendidas para o alto, no clamor incessante do respeito pelos direitos humanos.

E, entretanto, a esse homem desapparecido ha pouco mais de meio século, ninguem se lembrou ainda de fazer-lhe, num estudo sereno e conciencioso, desapaixonado e neutral, aquela mesma elementar justiça por que ele tanto lutou até á morte.

Talvez pareça estranho se venha pedir a imparcialidade da história para quem mais vezes se tem visto citar como figura inolvidavel no relato de nosso mais próximo passado. Mas, ha razões no proceder. Luiz Gama, como dezenas de outros vultos do Brasil de antanho, só é citado quando se torna impossivel fugir-lhe á lembrança do nome, tão intimamente se soldou a sua individualidade aos anais da Abolição. No fundo, porem, permanece um personagem por estudar, desconhecido dos contemporaneos e ligeiramente delineado em atitudes que não são verdadeiras porque apenas episodicamente exatas. E esses episódios, de tanto repetidos e mal comentados, quasi sempre, quando não mesmo adulterados, acabaram transformando o negro admiravel numa figura de cromolitografia, estereotipada e imovel, interessante ao primeiro olhar, perfeitamente irritante depois.

Descobri essa verdade, sem o querer. Em 1929, a instancias de Amadeu Amaral, amigo e mestre a quem eu não podia negar nada, ingressei, contra a minha vontade, na Academia Paulista de Letras. Estavam na fase de reorganização daquele instituto e havia nada menos de quinze vagas, ocasionadas pelo largo interregno de hibernação em que a Academia permanecera. Coube-me a poltrona n.° 15, que tinha por patrono Luiz Gama. A Academia, numa das suas primeiras sessões, resolvera que cada novo academico fizesse o perfil de seu patrono, sugestão acolhida com alegria e alvoroço, no entusiasmo daquela fase de reinicio de atividades. Ela daria motivos para demonstrar a nova vitalidade do cenáculo literário recomposto.[1]

Lancei-me, assim, no cumprimento da parte que me tocava, á cata de dados e informações que me permitissem fixar a fisionomia do homem que dava o nome á poltrona antes ocupada por Alberto Faria, o de Campinas. Confesso que pouco, pouquissimo sabia da vida desse pioneiro da abolição. Alem da "Bodarrada", meus conhecimentos não iam muito alem do que os mestres ensinam nas escolas, ao estudar as lutas pela eliminação da escravatura, e se escoravam sobre as páginas de Silvio Romero, na sua "História da Literatura Brasileira".

Voltei de minha peregrinação em busca desses dados, verdadeiramente estupefacto. Descobrí uma fila numerosa de trabalhos, na sua maioria artigos de jornais e de revistas, que se propoem contar a vida do insigne baíano. Ha dezenas deles, alguns extensos e já incorporados a livros, mas nos quais não se revela a mínima tendência para uma pesquiza histórica rigorosa. Andei atraz de pistas que me conduzissem a encontrar o arquivo individual de Luiz Gama e nada conseguí adiantar. Ninguem sabe nem mesmo se existiu.

De triagem em triagem, de desilusão em desilusão, consegui obter uma certeza absoluta: a carência de informações é completa e total acerca do negro. Mas a quantidade de inexatidões, de fatos narrados erradamente, de balelas e mentiras, é volumosa e chega a fazer rir. Porque todos ou quasi todos os escrevedores de artigos e conferencias sobre o nosso homem, apenas repetem e recozinham, quando não inventam cousa nova, um pseudo-estudo de Lucio de Mendonça, publicado no "Almanaque Literário" de 1881.

Não se afigure vontade de achincalhar a classificação de pseudo-estudo dado á biografia de Luiz Gama. O artigo de Lucio de Mendonça nada mais é do que simples ampliação de uma carta de Gama, que este escrevera, a pedido daquele, narrando-lhe a sua vida. O futuro acadêmico apenas a enfeitou com alguns adjetivos encomiásticos, acrescentou-lhe poucas observações e fatos referentes á última fase de Gama, e que Lucio conhecia porque haviam vivido e trabalhado juntos, na redação do "Ipiranga", e impingiu-a como composição sua, sob a responsabilidade de seu nome.

O artigo, portanto, seria de Lucio de Mendonça, em termos. A bem da equidade, ressalve-se a circunstancia de haver Lucio provocado o aparecimento da carta. Esse é o seu serviço ás letras, real e insubstituivel, desde que, com o temperamento de Gama e com a facilidade com que esquecia as suas melhores cousas, não seria impossivel que, hoje, nos encontrassemos em muito maior dificuldade quanto ao perfil do baiano. Espontaneamente, Gama não se haveria nunca disposto a contar, por escrito, a sua vida e temos de agradecer a Lucio de Mendonça o se haver lembrado de forçá-lo a isso.

Porque tudo quanto se sabe da vida de Luiz Gama, resume-se, em última instancia, nesse artigo, que é a carta enfestada. Os que vieram depois, os mais criteriosos, limitaram-se a requentá-la, pondo em banho-maria essa página, que já não era original. E vive por aí, publicado com grande pompa, em jornais e revistas de alto coturno, muito perú literário que não passa de "roupa-velha"... muito velha.

Aliás, não ha de que se admirar do expediente. No Brasil, maximé em sua História — e biografia não passa de ramo menor dessa arte grande — a cópia é quasi a regra geral absoluta. Os fazedores de livros, para contar feitos e façanhas nossos, cingem-se normalmente á tarefa de meros compiladores e copistas, que dão desempenho ao seu intento sem a menor dose de espírito crítico. Copiam tudo o que encontram, sem maior exame, sem coar as afirmativas pelo crivo da verificação. São, por sua vez, copiados e recopiados e tricopiados, dependendo isso apenas da idade de seus trabalhos. Estabelece-se, assim, a corrente que veícula as invencionices mais calvas, os embustes, as patranhas, as imposturas, as meias-verdades, as interpretações desvirtuadas, as versões estrábicas, quando não mesmo tendenciosas, as induções e deduções dubias e inseguras, toda a flora, enfim, das fraudes da História. Nada adianta o protesto conciencioso dos legítimos sabedores contra essa atmosfera de falsidades. O copista não lê, copia. E só copia ou para que lhe comprem o livro ou para que acreditem os ingênuos e os distraídos na sua alta competência. Não lhe interessa o que pensem e digam os entendidos. Não é para estes que ele escreve. Escreve para os outros, para os que não têm nem tempo nem vontade nem o desejo de averiguar as informações.

Parte central da Cidade do Salvador, da Baía, com a
localização da casa onde nasceu Luis Gama, no pri-
meiro quarteirão da rua do Bângala.

Foi dessa maneira que se formou, em volta de Luiz Gama, uma trama de opiniões e de juizos fictícios, alguns mesmo pérfidos, oriundos todos da ignorancia de sua vida e da preguiça de ir pesquizá-la, cousas que irei desfazendo e corrigindo no correr e, principalmente, no final deste estudo, que pretende ser, antes de mais nada, uma obra serena de reparação e de rehabilitação.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. A decisão ficou, como sempre acontece em tais instituições, incumprida até hoje. Apenas Artur Mota, para suprir a falha, abalançou-se a criar, com a ajuda de Rubens Amaral, a «Página da Academia», no suplemento literário dominical da «Folha da Manhã», fazendo sucinto estudo de cada poltrona, desde o patrono ao ocupante da hora. Assim mesmo, não chegou a estudar a metade das cadeiras.