Obras completas de Castro Alves (1921)/Segundo Volume/Os Escravos/O Seculo
Soldados, do alto daquellas pyramides quarenta seculos vos contemplam!
Napoleão
O seculo é grande e forte.
V. Hugo.
Da mortalha de seus bravos
Fez bandeira — tyrannia
Oh! armas talvez o povo
De seus ossos faça um dia.
O seculo é grande... No espaço
Ha um drama de tréva e luz.
Como Christo a liberdade
Sangra no poste da cruz.
Um corvo escuro, anegrado
Obumbra o manto azulado,
Das asas d’aguia dos céus...
Arquejam peitos e frontes...
Nos labios dos horizontes
Ha um riso de luz... E’ Deus.
A’s vezes quebra o silencio
Ronco estridulo feroz.
Será o rugir das mattas,
Ou da plebe a immensa voz?...
Treme a terra hirta e sombria...
São as vascas da agonia
Da liberdade no chão?...
Ou do povo o braço ousado
Que, sob montes calcado
Abala-os como um Titão?!...
Ante esse escuro problema
Ha muito ironico rir.
P’ra nós o vento da esp’rança
Traz o polen do porvir.
E emquanto o scepticismo
Mergulha os olhos do abysmo,
Que a seus pés raivando tem,
Rasga o moço os nevoeiros,
P’ra dos morros altaneiros
Ver o sol que irrompe além.
Toda noite — tem auroras,
Raios — toda a escuridão.
Moços, creiamos, não tarda
A aurora da redempção.
Gemer — é esperar um canto...
Chorar — aguardar que o pranto
Faça-se estrella nos céus.
O mundo é o nauta nas vagas..
Terá do oceano as plagas
Se existem justiça e Deus.
Emtanto inda ha muita noite
No mappa da creação.
Sangra o abutre dos tyranos
Muito cadaver — nação.
Desce a Polonia esvaida,
Captaletica, adormida,
A’ tumba do Sobieski;
Inda em sonhos busca a espada..
Os reis passam sem ver nada..
E o Czar olha e sorri...
Roma inda tem sobre o peito
O pesadelo dos reis;
A Grecia espera chorando
Canaris, Byron talvez!
Napoleão amordaça
A boca da populaça
E olha Jersey com terror,
Como o filho de Sorrento,
Treme ao fitar um momento
O Vesuvio aterrador.
A Hungria é como um cadaver
Ao relento exposto nu;
Nem sequer a abriga a sombra
Do foragido Kossúth.
Aqui — o Mexico ardente,
— Vasto filho independente
Da liberdade e do sol —
Jaz por terra... e lá soluça
Juarez, que se debruça
E diz-lhe: “Espera o arrebol!”
O quadro é negro. Que os fracos
Recuem cheios de horror.
A nós, herdeiros dos Gracchos,
Traz a desgraça valor!
Lutai... Ha uma lei sublime
Que diz: “á sombra do crime
Ha de a vingança marchar”
Não ouvis do Norte um grito,
Que bate aos pés do infinito,
Que vai Franklin despertar?
E’ o grito dos Cruzados
Que brada aos moços “de pé!”
E’ o sol das liberdades
Que espera por Josué.
São bocas de mil escravos
Que transformaram-se em bravos
Ao cinzel da abolição.
E’ — á voz dos libertadores
Reptis, que saltam condores,
A topetar n’amplidão!...
E vós, arcas do futuro,
Crysalidas do porvir,
Quando vosso braço ousado
Legislações construir,
Levantai um templo novo,
Porém não que esmague o povo,
Mas lhe seja o pedestal.
Que ao menino dê-se a escola,
Ao veterano — uma esmola...
A todos — luz e fanal.
Luz!... sim; que a criança é uma ave,
Cujo porvir tendes vós;
No sol é uma aguia arrojada,
Na sombra — um mocho feroz.
Libertai tribunas, prélos...
São fracos, mesquinhos élos..
Não calqueis o povo-rei!
Que este mar d’almas e peitos,
Com as vagas de seus direitos,
Virá partir-vos a lei.
Quebre-se o sceptro do Papa,
Faça-se delle uma cruz,
A purpura sirva ao povo
P’ra cobrir os hombros nús.
Ao grito do Niagara
Sem escravos, Guanabara
Se eleve ao fulgor dos sóes.
Banhem-se em luz os prostibulos,
E das lascas dos patibulos
Erga-se estatua aos heróes!
Basta!... Eu sei que a mocidade
E’ o Moysés no Sinai;
Das mãos do Eterno recebe
As taboas da lei! marchai!
Quem cahe na luta com gloria,
Tomba nos braços da historia,
No coração do Brasil!
Moços, do topo dos Andes,
Pyramides vastas, grandes,
Vos contemplam seculos mil!
Pernambuco, Agosto de 1865.
Cf. com um manuscripto de Augusto Alvares Guimarães em livro de versos do Poeta, cm. por D. Adelaide de Castro Alves Guimarães, e outro, de Antonio Alves Carvalhal, também em livro de versos de Castro Alves, cm. por D. Elisa de Castro Alves Guimarães.
E’ á I Poesia dos “Manuscriptos de Stenio”, da Edição Os Escravos “A Cachoeira de Paulo Affonso”, “Manuscriptos de Stenio” de Serafim José Alves, Rio, 1883.
1) Parece que esteve esta poesia para ser publicada nas Espumas Fluctuantes, edição original, porque, entre os autographos do Poeta que me foram cm. por D. Adelaide de Castro Alves Guimarães, estão as laudas das notas que pôs no seu livro e lá, a ultima, a 9.a, diz:
“O Seculo
“O Mexico ardente
Jaz por terra e lá soluça
Juarez que se debruça
E diz-lhe: “Espera o arrebol”.Conservei a estrophe tal, como a escrevi quando Juarez era o altivo guerrilheiro das selvas, e a patria de Montezuma arcava sob a tyrania de um governo... europêo... A espada de Deus cortando o fio á vida de um Rei, cortou a corda que garroteava um povo”.
2) Sobieski... (estancia 5.a, v. 7), João III, rei da Polonia (1629-1696) heroe polaco que repelliu Tartaros e Turcos e deteve, ás portas de Vienna, a invasão musulmana pelo Oriente (1683).
Canaris... (estancia 8.a, v. 4), Constantino Kanaris (1790-1877), marinheiro grego que se distinguiu na guerra da independencia helenica, incendiando varios navios turcos; deputado, ministro da marinha, presidente do conselho, triunviro na vacancia do throno... foi considerado um heroe da liberdade. Hugo lhe consagra varias poesias.
Jersey... (estancia 8.a, v. 7), uma das “Duas Ilhas”, já cantadas por Castro Alves e que elle oppõe a Santa Helena, o desterro de Napoleão: Jersey serviu ao desterro voluntário de Hugo.
Kossuth... (estancia 9.a, v. 4), Luiz Kossuth (1802-1894), estadista hungaro que pugnou pelas idéas liberaes, democraticas e constitucionaes em seu paiz e pelas quaes teve de viver e morrer no exilio, foragido.
Juarez... (estancia 9.a, v. 9), Benito Juarez (1806-1872), patriota e estadista mexicano que venceu dissenções civis e a invasão imperialista européa, a qual puzera o archiduque Maximiliano no throno, castigando-a em Quaretaro, com o supplicio do intruso.
Franklin... (estancia 10a, v. 10), Benjamim Frankin (1706-1790), physico, philosopho e estadista americano, um dos patriarchas da Independencia dos Estados Unidos.