Esta é de cabo de esquadra! — dizia ele, horas depois, aos amigos que o confortavam. — E quem deu direito a minha mulher de emprestar sem minha ordem 1.650$000 réis ao irmão da costureira? Que me importa a mim que ele fosse boa pessoa ou que fosse um pandilha sem beira nem leira?

— Você tem razão — dizia-lhe um primo carnal de Atanásio. — Lá pr’ó caso de sua mulher andar mal, andou; e, se era honrada, não o parecia. Por exemplo: eu vou em casa da mulher dum sujeito, e peço-lhe dinheiro. Ela mo empresta, e se esconde do marido; que hei de dizer eu? Sim, tem razão você de não dar a orelha, Sr. Fialho.

Estas cláusulas pareceram irrespondíveis ao doente. E, de feito, a natureza tinha esclarecido esta família dos Atanásios com grandes lumes de razão natural.

Por feição que Hermenegildo ratificou não só os seus anteriores juízos sobre os irregulares costumes de Ângela, mas também entrou-se da desconfiança de ter apanhado, quando menos o esperava, o amante dela. Quer-nos parecer que aquela perversíssima alma raciocinasse atuada por influências de fígado e outras entranhas que principiavam a engurgitar-se.

O restante do dia passou-o pouco febril, e por isso mesmo com certa energia de espírito que destampava em esfuziadas de protérvias contra a esposa, sem ressalvar a probidade do cirurgião.

De noite exasperaram-se-lhe as dores hepáticas, as aflições do estômago, a dispnéia, e o queimar de febre. Ao romper do dia, pediu a brados que lhe chamassem o doutor Costa.

Informou-se Francisco com o portador sobre o estado do doente, e despediu-o.

Daí a pouco, outro notável médico enviado por Francisco Costa, desculpando o colega, oferecia os seus serviços.

A doença progrediu sem intermitências de repouso nos cinco dias seguintes.

Hermenegildo pegou a dar gritos que o doutor o mandara envenenar na tisana da quina. Os médicos, chamados um de pós outro, iam cedendo o passo ao último, indignados da aleivosia com que o estúpido enfermo caluniava o ilustre caráter de Francisco Costa e o do seu substituto.

A doença entrou no décimo quarto dia, com mortais sintomas. Aquela massa reagia com frenesi ao esfacelar da morte. O gemer dum doente vulgar era em Hermenegildo um rugir ferocíssimo. Rosa Catraia ganhou-lhe medo, e fugia da beira do leito receosa de que o legado do moribundo fosse algum daqueles murros que fendiam o espaldar do leito. Recolhida em sua dor, a choruda alvéola da ribeiras de Barrosas começou a cobrir com as asas os brilhantes e notas que se lhe depararam na sua irrequieta angústia. Nestes transes foi-lhe grande auxiliar um criado da casa, parente em quarto grau do patrão, rapazola de espáduas anchas, que prometia reabilitar os créditos de Rosa por meio dum decente matrimônio, logo que seu patrão e primo "desse a casca", frase lírica e pitoresca da Catraia.

Assim, pois, que o último assistente declarou perdidas as esperanças de cura, o primo de Atanásio começou de arrebanhar os livros e papéis do moribundo — cuidado que lhe tinha sido sobremodo recomendado do Porto, logo que Hermenegildo adoecesse gravemente. Notou o arrecadador dos livros comerciais que os haveres do moribundo, superiores a duas centenas de contos, estavam em poder de Pantaleão, de Joaquim Antônio, e de seu primo Atanásio José, repartidos em avultadas somas, das quais Fialho tinha cobrado as declarações encontradas, e lavradas com suficientes solenidades legais. Este quarto ladrão que descobria os três do Porto considerou-se o melhor colherdeiro da herança, porque desde logo computou a percentagem a auferir.

Um conhecido do agonizante levado de escrúpulos, entrou-lhe ao quarto com o prior da freguesia, homem de respeitáveis cãs, e, na serenidade límpida do rosto, um como mensageiro e núncio da misericórdia divina.

Hermenegildo encarou nele com assombro, e regougou a trancos de voz cavernosa:

— Vá-se embora, que eu não morro desta vez.

— Assim o permitirá Deus — respondeu o sacerdote com grave compostura — mas os benefícios dos sacramentos não utilizam somente aos que vão à presença do Senhor.

— Não me conte histórias — tartamudeou o brasileiro, rolando-se de modo que lhe virou as costas.

— Meu irmão — tornou o sacerdote de Jesus — veja se tem na sua alma ofensas a perdoar, ou ódios de que peça perdão. Quando Deus for servido chamá-lo a contas, a sua alma não poderá voltar as costas à face do supremo juiz.

— Não me matem! — rugiu Hermenegildo, barafustando.

O padre quedou-se a contemplar de braços cruzados e o coração em Deus aquele espetáculo, suplicando graça para rebeldia tão estranha na suprema hora.

A graça divina esquivou-se. Contra a benigna teologia de boníssimos casuístas, vivo persuadido que Lúcifer estimaria que certas almas, à última hora, limpas pela contrição, se guindassem à glória, a fim de lhe não sujarem o inferno.

O sacerdote retirou-se, quando viu que a sua presença sobreafligia o doente.

Era meia-noite.

Desta hora até às cinco da manhã Hermenegildo pediu água já nos demorados paroxismos, e ninguém se abeirou do seu leito.

Cinco horas vasquejou sozinho, e, aos primeiros assomos do dia, rendeu... a alma.

Rosa, acordada pelo futuro marido, perguntou se o patrão tinha acabado.

— Acho que sim, que já não ouço nada — disse o criado, e foi chamar o primo de Atanásio para tomar conta de algumas arrobas de carne em putrefação, onde estivera uma alma "criada à imagem e semelhança de Deus".

A tolerância divina permite semelhantes blasfêmias.