Em abril de 1850, Ângela e Joana, sentadas no quintalinho de sua casa, debaixo duma amendoeira florida, ao entardecer, descansavam do trabalho do bastidor de que tiravam bons lucros em bordados de ouro.
Joana, embelezada na formosura de sua amiga, dizia-lhe:
— Como vossa excelência, nesta pobreza, ganhou o que tinha perdido na opulência da sua casa! É bem certo que a felicidade está em mui pouco! Eu a temer que a Sr.ª D. Ângela envelhecesse nestas estreitezas da nossa casa, e não se habituasse a isto; e quis Deus que, em dez meses, eu a não visse triste senão quando veio a primeira carta do meu Francisco...
— Pois olhe, minha amiga, eu estava agora triste...
— Por quê?! Vi-a calada; mas cuidei que não era tristeza...
— Era...
— E é segredo?
— Não, minha amiga... Segredos quando eu não posso distinguir as nossas almas uma da outra... Eu lhe conto... Estava a dizer comigo: o meu futuro qual será? Tenho vinte e nove anos. Se me recordo do que passei, imagino que a vida já é longa e deveria estar por pouco; mas, diante de mim, vejo os anos demorados daqui até à velhice, até aos sessenta anos da nossa Vitorina, que espera ainda viver até os oitenta. Muito se vive quando se sofre!... E o que mais espanta é que nem a desesperação infunda um sincero desejo de morrer... Aqui estou eu a lastimar-me, a perguntar o que há de ser de mim, a ver a precisão de se acabar esta sossegada vida que tenho; e, apesar do escuro das minhas nenhumas esperanças, desejo viver... para quê?
— Deus lho irá dizendo, minha senhora. Se eu dissesse à minha amiga que esperasse resignada, seria uma indiscreta conselheira. Quem pode dar lições mais sublimes de paciência que a Sr.ª D. Ângela?
— Paciência, sim; não me há de abandonar esta providência dos infelizes... — disse Ângela, concentrando-se outra vez com desacostumada melancolia.
— Então que é isso? — disse meigamente Joana, tocando-lhe nas mãos que ela enclavinhara amparando a fronte.
— E seu irmão? — disse Ângela, como se a pergunta saísse de um diálogo mental.
— Meu irmão? O quê, minha amiga?
— Não o hei de ver mais?
— Por que não, Sr.ª D. Ângela? Pois que razão há para que o não veja?
— Quando a felicidade do coração se tornou impossível...
— Impossível, não. Vossa excelência quis ser noutro tempo esposa de meu irmão. Quem sabe se um dia poderá mais livremente dispor da sua vontade!... Seu marido tem bastante idade...
— Eu era nesse tempo a mulher com o prestígio que se desfez... Esse homem, que me prendeu ao remorso e vergonha de me deixar vencer da compaixão e dos baixos pensamentos de ser rica, igualou-me a qualquer mulher vulgar... Se eu desmereci aos meus próprios olhos, autorizei todo o mundo a considerar-me aviltada...
— Não diga isso, minha senhora... — atalhou Joana, tomando-lhe as mãos cariciosamente. — Pois não vê nessas sinceras confissões de meu irmão como ele a amava?...
— Amava a saudade; não era a mulher; amava o passado e que lá se perdeu. À luz que então me via não poderá ver-me jamais. Eu hei de ser sempre a esposa ou a viúva dum homem que me lançou de si com desprezo... E, depois, a gratidão das almas nobres, como a de Francisco, pode levá-lo a dobrar-me o joelho com admiração: mas, com amor, nunca. Eu sei isto, adivinho isto. Se eu vendesse a casinha única onde me abrigasse para lhe melhorar a sorte dele, essa dedicação sublime duplicaria o meu direito a ser amada; mas eu, quando bem penso no que fiz, duvido que me louvem os estranhos, e sinto esfriar a veemência de gratidão naquele mesmo por amor de quem me pareceu louvável o ato que pratiquei. Mas eu não queria que me agradecesse; queria até que ele ignorasse sempre, para eu não ficar desdourada. Vê por que tantas vezes lhe tenho pedido que não me descubra? E a minha amiga sempre a querer, sempre a instar que eu a deixe contar-lhe tudo. Oh! Não o faça, por piedade lhe peço que não lho diga! Se ele vier um dia a Portugal, basta que lhe faça saber que eu não fui má esposa... que fui caluniada; mas que não há no mundo quem possa provar que eu meditei um instante em justificar um crime com os exemplos de meu marido. Assim posso ser amada... e eu queria sê-lo, queria, minha amiga, porque dos dezasseis aos vinte e nove anos, vão milhares de dias e noites em que nunca esqueci seu irmão. Houve um tempo em que julguei mal, porque Deus lhe dera a virtude que esmaga o coração, porque o meu desatino queria ser excedido pela paixão do homem que me obrigava à voluntária pobreza, às injúrias de meus parentes, ao perdimento de um grande patrimônio e da herança de um nome nobre. Que me importava isso? Mas seu irmão, minha amiga, tinha riquezas superiores: a santificação da virtude, uma coisa que se adora de joelhos depois que se tem sido desgraçada, e se lidou seis anos com um homem de condição vil.
Nesse momento, Vitorina assomou numa janela, dizendo que estava um homem perguntando pela dona da casa.
— Será carta do Brasil? — perguntou Joana.
— Não é, - disse baixinho Vitorina — é uma pessoa asseada com barbas grandes. — E, voltando-se subitamente, soltou um grito, e disse para dentro:
— O senhor entra pela casa assim, sem esperar resposta?
O sujeito sorriu-se à indignação da velha, que não reconheceu, acercou-se da janela, debruçou-se para o quintal, e cravou espantados olhos nas duas senhoras!
— É ele! É meu irmão! — exclamou Joana.
— Oh, minha querida senhora, é ele!...
E correu para casa; mas Ângela ficara imóvel a olhar para Francisco, e ele imóvel apoiado no peitoril da janela, com os olhos fixos em Ângela.
A irmã abraçava-o, e ele, beijando-a na fronte, murmurou:
— Aquela é Ângela, não é?!
— Sim, meu filho, pois não é ela o mesmo anjo?! Vamos buscá-la, depressa, que está sem côr...
E desceram rapidamente, e chegaram já quando a esmaecida senhora caminhava a tardos passos para casa.
Costa ofereceu-lhe a mão convulsa. Ângela encarou-o muito amorável, apertou-lhe a mão, e disse com voz magoada:
— É a primeira vez...
E carregaram-se-lhe de lágrimas os olhos.
Depois, abraçou-se em Joana, apoiando-lhe a face no ombro.
Francisco permaneceu silencioso, abafado, num modo de existir, que seria o prelúdio da demência, se durasse muito, ou a congestão se não desafogasse no pranto involuntário.
— Dá-lhe o braço, Francisco... — disse Joana. — Ele parece que não acredita vê-la aqui, minha filha — continuou ela, sorrindo.
— E desde quando? — perguntou ele, tomando o braço de Ângela.
— Desde quando está aqui? — verificou a irmã, não percebendo bem a pergunta.
— Desde que não tenho casa — respondeu a hóspeda, sorrindo. — Desde que precisei da caridade da minha amiga de infância, e da sua beneficência, Sr. Costa.
Ocorreu Vitorina a dar uns tons de festa à chegada de Francisco, pasmando-se nele, nas grandes barbas, e na espantosa mudança que fizera, e no medo que ela tivera de que fosse um salteador, quando o viu romper por ali dentro.
Entraram para a saleta do trabalho, onde estavam armados dois bastidores.
— Aqui tens a nossa oficina — apontou a ridentíssima Joana. — Temos feito progressos e lucros admiráveis: bordamos a ouro. A Sr.ª D. Ângela, em dez meses, ganhou quarenta e duas moedas.
— Está vossa excelência aqui há dez meses? — perguntou Costa à hóspeda.
— Penso que sim — confirmou Ângela.
Francisco, confrontando as datas, concluiu que tendo chegado ao Rio Hermenegildo oito meses antes, Ângela se acolhera a sua irmã logo que saiu de casa. Exultou, luzia-lhe nos olhos o muito sol que se lhe abrira na alma.
E a ponto vem dizer-se que o confidente último do brasileiro, desde que ao longe premeditou a redenção de Ângela, conjecturara que teria de procurá-la na ladeira onde vulgarmente pobreza e formosura impelem a mulher, nascida sem auréola santificante: - auréola de que já hoje ninguém vê resplendor, nem os romancistas propriamente se exercitam nesse gênero de inventiva, temerosos do descrédito de fantásticos e inverossímeis.
Do muito martelar nesta hipótese péssima, bem que trivialmente realizada no máximo número de lances análogos, causou-se que o lapso da desamparada senhora para os braços doutro homem, amado ou aborrecido, era a esperança infernal que preocupava o autor dos SONHOS, aquele olímpico vidente agora demudado em pessimista, com as asas da sua poesia mortas, e o espírito prostrado nas baixezas vulgares deste mundo. Figurou-se-lhe, por desventura, que uma mulher, que aspirara o ambiente de Hermenegildo Fialho, devia de ter empeçonhado o coração, apagada a flama celestial do espírito, e desbotadas as cores prismáticas por onde via o bom, o belo o santo da criação, antes de tocar a hediondez de tal marido. Duas angústias, pois, a um tempo o navalhavam: se a encontraria amante doutrem, e para si perdida; se vítima da necessidade na vulgar degradação de escrava, e perdida também para ele.
O encontrá-la, portanto, em companhia de sua irmã causara aquele entorpecimento de espírito e palavra que parecia irmanar-se com a indiferença, e até com a surpresa desagradável. Depois, porém, que se afez ao ar da felicidade, e os seus olhos puderam suportar a luz inesperada, Francisco transfigurou-se, as lágrimas venceram a represa, os dezoito anos refloriram; e, de súbito, Ângela, que não entendia o frio silêncio dele, sentiu-se-lhe apertada nos braços, e beijada nas faces que ardiam dos beiços, das lágrimas e do pudor.
— Eu vinha procurar-te, Ângela! — balbuciou Francisco — mas Deus não quis que eu imaginasse a possibilidade de te encontrar ao lado da minha santa irmã. Eu tinha sofrido muito e a recompensa devia ser esta...
Ângela abaixou o rosto, e pensou confusamente na estranheza deste transe.
Costa, voltando em si, compenetrou-se do pejo de Ângela, e disse:
— Eu beijei a tua face, Ângela, porque não há consideração que te obrigue a corar. Teu marido morreu.
— Morreu?! — conclamaram as duas senhoras, e em ambas o ar da fisionomia não revelava sentimento que pedisse luto imediato. Os olhos de Ângela não tinham sombras de funéreos; o sorriso de Joana iriava as cores azuis e escarlates dum vestido de gala. E, se neste conflito pairasse idéia triste, bastaria um destempero de Vitorina para destruir o efeito lúgubre da notícia. Quando Francisco proferiu teu marido morreu, a criada, que estava na cozinha, correu à saleta, exclamando:
— Ainda bem! Ainda bem!
E chorava de alegria, como nunca ninguém chorou por um defunto, exceto os herdeiros, parentes em quarto grau.
Cumpria relatar o caso infando. Costa, omitindo os fatos essenciais, contou que conversara com Hermenegildo nos primeiros dias da doença, sobre coisas particulares da sua vida; mas, como outros doentes fora do Rio o desviassem do enfermo, não sabia dizer da morte senão o principal: isto é, que morrera.
Instado a referir o diálogo que tivera, contou que o brasileiro apenas se queixava e dava como prova da deslealdade de Ângela a venda duns brilhantes, e a pertinácia em não declarar o destino dado a 1.650$000 réis.
— Foi... — clamou Joana, e suspendeu-se, quando encontrou os olhos de Ângela, que pareciam recriminá-la com profundíssima dor.
— Foi... o quê? — perguntou Francisco José da Costa, fingindo-se embaraçado pelos olhares mútuos das duas,
— Nada... — dissimulou Joana. — Queria eu dizer que foi uma falsidade.
— Falsidade!... não foi... O homem não mentia; nem tu, Ângela, permitirás que a nossa Joana desminta teu defunto marido — objetou ele, sorrindo às inquietas visagens da viúva. — E continuou: - Como hei de eu entrar num segredo que teu marido não penetrou com toda a sua policia administrativa e espionagem de amigos! Não ouso, minha amiga, pedir-te a confidência... Teu marido queria morrer convencido que o seu ouro andava por mãos de quem lhe disputara e vencera a alma da esposa. Parece que o homem não se dispensava desta ignorância para poder alegá-la nas contas dadas ao juiz que via as tuas lágrimas, minha santa amiga. Eu, porém, não consenti que ele se prevalecesse da sua ignorância, e jurei, pela minha honra, que tu deras de esmola 1.650$000 réis. Mas o que tu davas de esmola, nas mãos do beneficiado, chamava-se roubo em relação a teu marido, que era o senhor do objeto esmolado. Fui roubado — poderia ele dizer ao juiz supremo. — Minha mulher estaria inocente quanto aos deveres de esposa; mas, como parte do meu ser mercantil, defraudou-me em 1.650$000 réis — quantia que ele tinha gravado ao cérebro com letras de betume ardente. Ora, supondo mesmo que tinhas sido roubada, por quem quer que fosse, e iludida em tua ardente caridade, Ângela, restava-lhe a ele a possibilidade de uma restituição que, afinal, dilucidasse o mistério da tua inocência. Com o propósito de lhe criar esperanças de ainda ser embolsado, contei-lhe eu, Joana, a história daquele dinheiro, que te foi restituído, quando tu nem o esperavas, nem tinhas remoto conhecimento do roubo. Na minha história havia a singular coincidência de ser a restituição do teu roubo igual à quantia de que o meu doente se queixava. Notável semelhança: 1.650$000 réis! Dando-se, de mais a mais, a estranha coisa de ser ele roubado ao mesmo tempo que tu eras indenizada, minha irmã! E não para aqui a coincidência! Os brilhantes eram vendidos por quantias iguais àquelas que tu ias recebendo, e na mesma ocasião, do tal sujeito de Viana, honrada pessoa que eu nunca cessarei de proclamar, apesar do incógnito!... Por que estás tu a sorrir, Joana? E tu, Ângela, que ar é esse de assombro e alvoroço?... Não querem ouvir o melhor da passagem? Um dia, estava teu marido a contar, provavelmente, as dúzias de contos que lhe alvoejavam com asas de ouro à volta do leito, onde havia de morrer sozinho, blasfemo, e abrasado de sede, sem amigo ou indiferente que lhe apagasse nos beiços o brasido da morte; um dia, vinha eu dizendo, aproximou-se dele um homem e disse: "Venho restituir-lhe 1.650$000 réis que lhe foram roubados por sua esposa para me dar a mim, que era pobre. E eu com o seu dinheiro fiz a minha posição de menos pobre. A restituição é um dever que complica dois grandes resultados: um é o Sr. Hermenegildo morrer com a certeza que deixa, além de duzentos e tantos contos, mais esta quantia aos seus amigos; a outra é ir vossa senhoria por onde quer que vá com a certeza de que teve a ventura de casar com uma senhora que podia roubá-lo e traí-lo; mas que se limitou apenas a privá-lo, por espaço de alguns anos, da deleitosa posse destas nota. Porém, como o Sr. Fialho infamou sua esposa, convém que a declare ilibada, não só do desvio do ouro, mas também da dignidade conjugal. Para o que se faz mister que leia e assine este recibo". E teu marido, minha amiga, leu, recebeu o dinheiro e assinou isto que tu vais ler, se te não custa.
E a viúva e Joana leram mentalmente a quitação que o leitor conhece.
Quando terminou a leitura, Francisco, ajoelhado aos pés de Ângela, beijava-lhe as mãos, exclamando coberto de lágrimas:
— Eu te agradeço, filha da minha alma! Bendita sejas tu, escolhida de Deus para mensageira de sua misericórdia!
E Ângela, baixando a face até aos lábios dele, murmurou:
— Meu santo e nobre coração!...