Seis meses depois, Atanásio José da Silva, Pantaleão Mendes Guimarães e Joaquim Antônio Bernardo, reunidos na famigerada bodega do Maneta do Reimão, onde em certos dias iam sevar-se na pescada e cebolas, bodo peculiar daquela taverna, praticavam do seguinte teor:

— Acertamos ou não?... — dizia Atanásio. — Viram vocês como afinal tudo se descobriu? Não, que certos lorpas inda diziam que o adultério da tal Sr.ª Ângela não estava provado... Aí a tem agora casada com o sujeito... E nem deixou passar um ano sobre a morte do marido, percebem vocês?

— Pois isso estava claro física e moralmente falando — obtemperou Joaquim Antônio. — O mariola era um estudante de cirurgia, segundo ouvi contar. Olha se o Hermenegildo não tem as coisas seguras, que lá se regalava agora o troca-tintas com bem bom dele! E dizia aqui o nosso Pantaleão, quando veio a notícia da morte do nosso amigo, que se procurasse a viúva, e se lhe desse alguns contos de réis! Parece-me que o marido se levantaria da cova, se tal fizéssemos!

— É que eu — explicou o marido de Francisca Ruiva — ainda cuidava que ela teria feito a sua asneira, e que se tivesse arrependido; mas à vista do que acontece, nem um dardo! (E descendo a voz, continuou) : Ó amigo Atanásio, aqui entre nós, seu primo do Rio é que a fez limpa! Sem trabalho nenhum, nem risco, nem nota de ladroagem, pilhou os seus quarenta contos fortes... Apre que é ladrão, e perdoe você por ser seu parente...

— Que queriam vocês? — desculpou-se Atanásio — eu incumbi meu primo do negócio porque não via pessoa mais hábil, percebem vocês? Cuidava eu que ele entregaria os títulos acomodando-se com uma pechincha de meia dúzia de contos: mas vocês bem viram a carta dele. Ou me dão quarenta contos, ou entrego os títulos à viúva ou herdeiros de Fialho. Que fazer? Ou dar os quarenta ou perder duzentos. Vocês concordaram, e eu paguei.

— E os outros seis contos que você deu ao marido da Rosa Catraia? — perguntou Pantaleão.

— Não que esse, como era criado do quarto de Hermenegildo e sabia ler, tinha visto os títulos quando andava à carta das notas e mais a bêbada da moça, percebem vocês? E depois viu que eles desapareceram, e começou a dar à língua; de maneiras que não houve remédio senão meu primo fazer cambalacho com ele, e mandá-lo para mim com uma carta, que vocês viram, e também concordaram em que se pagasse.

— Querem vocês saber uma? Adivinham quem ontem esteve no baile da Assembléia? A tal Rosa Catraia! — disse Joaquim Antônio.

— Ora que novidade você me dá! — acudiu Atanásio. — Fui eu quem lhe arranjei a carta de convite.

— E estava rica a valer! — acrescentou o marido da maiata. — E boa mulher?! O maroto do Fialho tinha gosto! Quantas lhe conheci eram todas de sola e vira!

— Pelo que vejo a Rosa soube-se arranjar bem!... — observou Pantaleão.

— Ora!... — conveio Atanásio. — eu dou-lhe trinta contos fortes pelo que ela apanhou. Só os brilhantes da Ângela valiam mais de cinco contos.

— E ela lá os tinha no baile, que eu bem lhos conheci... — confirmou o mesário da santa casa.

— Também é escândalo demais! — censurou Pantaleão. — Apresentar-se em público com os enfeites da mulher do amo. A minha vontade era espalhar isso...

— Caia nessa você — contradisse Atanásio — e depois queixe-se, se o marido contar que viu na carteira do Fialho um título seu de dívida de cinqüenta e dois contos... percebe você?

— Fale baixo, diabo! — acudiu o ladrão pundonoroso. — Você não sabe que anda aí gente pelo quintal?!

Chegaram as travessas da pescada entre rimas de cebolas e ovos. Abriram-se os buchos, e fecharam-se as consciências destes membros do tribunal de honra onde Ângela foi condenada à infâmia e à pobreza.

Fartos até ao arroto, de coletes desabotoados, saíram os três acionistas mais grados dos bancos portuenses a beber o ar balsâmico do jardim de São Lázaro. Nada, absolutamente nada, estremava aqueles três da classe dos homens de bem, porque a lei, que mandava abrir com ferro quente um ferrete na testa dos ladrões, foi derrogada em 7 de fevereiro de 1523.