Os olhos do general Noronha cegaram inteiramente. Os especialistas de Paris tinham capitulado de catarata negra a próxima cegueira, muito semelhante nos sintomas à gota serena.
Declinava para os setenta anos o inconsolável cego. Queria voltar a Paris, esperançado na operação; mas escasseavam-lhe forças. A velhice deste homem disciplinado por pesares de toda a espécie, deste o terrível só até ao excruciar do remorso, causava a um tempo compaixão e medo. A caquexia lenta mirrara-o até lhe secar a pele sobre a aridez dos ossos; e os glóbulos dos olhos guinavam pardacentos nas órbitas descarnadas à procura dum raio de luz.
Os parentes e amigos que ele havia repelido não o procuravam nos derradeiros anos, porque sabiam que o testamento estava feito. Os legatários, entregues à sáfara da sua lavoura, nem sequer averiguavam se o senhor do Paço de Gondar era morto ou vivo. Ninguém portanto o visitava. O velho cheirava a cadáver, e o lastimar-se dum cego exasperado afugentaria até a comiseração dos herdeiros.
O mordomo, João Pedro, é que, dia e noite, lhe dava o braço ou vigiava o ansiado dormitar. Chorava, quando o via de súbito parar, voltados para o céu os olhos, e clamar: "Meu Deus, meu Deus, dai-me a minha vista, ou matai-me!"
E, em uma dessas apóstrofes à Providência divina, que lhe visitara alfim a escuríssima cegueira de alma e corpo, João Pedro disse:
— Fidalgo, vossa excelência, se quer que Deus o escute, siga a lei cristã: tenha pena de sua filha, perdoe-lhe pelo divino amor de Deus. Pode ser que depois a misericórdia de Jesus Cristo se compadeça de vossa excelência.
— E quem te disse a ti que ela era minha filha? — repetiu o cego a pergunta feita um ano antes.
— Disse-mo vossa excelência, quando ela o visitava; muitas vezes me escreveu lá para o Paço: "Manda-me boa fruta que tenho cá minha filha". Há de perdoar-me, fidalgo; mas vossa excelência só deixou de lhe chamar filha depois que ela quis casar com um homem mecânico...
— E se perverteu... — atalhou rancoroso o cego.
— Mentiram-lhe, fidalgo; ela não praticou ação má senão a de querer ser esposa dum pobre.
— Não sabes nada, pedaço de asno. Tenho ali uma carta de minha irmã Beatriz.
— Bem sei, meu senhor.
— Sabes? quem to disse?
— A Sr.ª D. Ângela.
— Quem lha mostrou?
— Viu-a ela, quando escreveu a vossa excelência uma carta sobre a sua escrivaninha. Essa carta diz que os criados da senhora sua irmã, a quem Deus perdoe, tinham arrancado a fidalga dos braços do tal filho do sacristão. Era uma mentira de clamar vingança aos anjos. Sua excelentíssima filha, quando, desesperada, procurara o tal homem, não o encontrou, tinha saído para o Porto.
— Quem to contou?
— Vitorina, que saiu de Gondar com a Sr.ª D. Ângela, quando tinha dois anos; o próprio capelão, e todos os criados da Sr.ª D. Beatriz, que lá está onde as contas são apertadas.
— Por que não disseste isso até hoje?
— Porque vossa excelência se desesperava assim que eu começava a falar na Sr.ª D. Ângela, e depois...
— Depois o que?... Não respondes?!
— Vossa excelência começava a dizer que via a mãe da menina, e a sacudir os braços que me fazia terror.
— Está bom! Está bom! — murmurava guturalmente o velho, procurando com as mãos trêmulas a boca do criado.
E recaía na concentrada prostração que durava horas e dias.
Uma vez, o general acordou de sobressalto, por noite fora, chamou João Pedro com aflição, e disse-lhe:
— Quem anda na casa?
— Ninguém, senhor... Serão os ratos que os há nela de tamanho de leitões.
— Não mangues comigo, João!
— Ó fidalgo! Eu mangar com vossa excelência!...
— Aí anda gente... os passos e a voz são de Ângela...
— Deus permitisse que fosse ela... O senhor general estava agora sonhando, e às vezes falava em sua filha.
— Falava?
— Sim, meu senhor.
— Então era sonho...
— E, se ela lhe aparecesse... se vossa excelência a visse de repente...
— Não vês que estou cego... Cego, meu Deus!
— Pois sim; mas se vossa excelência lhe ouvisse a voz, e lhe deixasse beijar as mãos...
— Tu quando a viste?
— Eu, senhor? Vi-a há oito anos, quando vossa excelência estava em França, e me mandou entregar-lhe o cofre dos enfeites.
— E estava aonde?
— Perto da vila de Barrosas, e casou no dia em que lá cheguei... Eu já contei a vossa excelência isto...
— Mas ela escreveu-me há coisas de ano e meio. Onde estava então?
— No Porto.
— E nunca mais soubeste dela nada?
— Não, fidalgo... Isto é... — tartamudeou o mordomo — quero dizer...
— Soubeste, ou não?
— Ela a mim nunca me escreveu; mas, cá em Ponte, ouvi dizer que o marido a deixara e fora para o Brasil.
— Por quê?
— Não sei... — responde pronto João Pedro, como quem esperava a pergunta, e tencionava esconder os boatos desairosos para a filha de seu amo.
— Não sabes? Alguma nova desonra!... Quem te contou isso? Quero saber...
— Não me recordo a quem o ouvi... Parece-me que foi um padre que já morreu.
— E que é feito dela? Sabes?
— Não sei, meu senhor.
— Quero que saibas... Vai saber isso ao Porto... Indaga por lá.
— E quem há de ficar à beira de vossa excelência?
— Um criado qualquer. Vai já hoje, assim que amanhecer... Sonhei que a via... Ver, meu Deus, ver!... Sonhei que a via... E o meu coração estava alegre... Procura-ma, procura-ma, João!
Seis dias depois, o mordomo voltava triste do Porto. As inculcas lançadas informaram-no de que Ângela, coberta de opróbrio e justo desprezo de todo mundo, se casara com um cirurgião, por amor de quem o marido morrera apaixonado; e ninguém sabia dizer, na vizinhança da casa onde ela habitara, o destino que levaram com certeza; havia, no entanto, quem afirmasse que tinham ido para o Brasil.
Das informações colhidas, João Pedro disse simplesmente que a Sr.ª D. Ângela, viúva do primeiro marido, casara segunda vez, e saíra ou para o Brasil ou para onde se não sabia.
E o mordomo, vendo contrair-se de angústia o rosto cavado de seu amo, chorou de compaixão dele, e de pesar de não ter encontrado Ângela.
— Agora, não se aflija, fidalgo... — disse com a voz quebrada o extremoso servo.
— Deus — soluçou o ancião — despertou-me o desejo de a ter comigo para me redobrar o martírio!... Seja feita a vossa vontade, Senhor!...