Pernoitou em Ponte do Lima, no ano de 1853, um cavalheiro de Chaves, de apelido Pizarro, em casa de parentes que também o eram do general Simão de Noronha.

Dizia-se, à mesa da ceia, que o general aceitara o título de conde de Gondar, na última velhice, cego, sem descendência, sem sociedade, sem o mínimo prazer da vida, seqüestrado de toda a convivência, e, segundo se contava, tão desvairado de razão que deixava três enormes casas de bens livres aos irmãos da mulher da infama ralé com quem casara na primeira mocidade.

— E está cego o tio conde de Gondar? — perguntou o fidalgo de Chaves. — Cego sem remédio?

— Se tivesse remédio, tê-lo-ia achado em Paris, onde já foi duas vezes.

— Na minha província e perto de mim — tornou o flaviense — há um cirurgião da moderna escola que tem feito prodígios em operações de olhos. Se eu soubesse que o conde consentia ser examinado, obrigava-me a trazer-lhe o doutor Costa, como lá se chama, sem favor, ao admirável facultativo.

— Quem lho há de perguntar? Há mais de dez anos que não recebe nem visita alguém.

— Não importa: hei de eu ir procurá-lo.

Foi; anunciou-se, e teve entrada, porque o conde lembrou-se de ter conhecido, nas primeiras lutas da liberdade, um general, tio do cavalheiro anunciado.

Disse o visitante o propósito que o levava. Contou as maravilhas do doutor Costa e ofereceu-se a conduzi-lo à Ponte.

— Será inútil; mas que venha. Irá a minha liteira buscá-lo. Se eu pudesse ir...

— E por que não vai, senhor conde? — aproveitou o parente, aplaudindo o desejo. — O exercício deve ser-lhe útil. São dois dias e meio de jornada. Se ele se resolve a operá-lo, vossa excelência vai residir em Chaves na minha casa, ou em Monte Alegre, onde há boas comodidades; porque, se vossa excelência quisesse ser operado em Ponte, seria isso mais difícil ao doutor, que tem uma clínica, e não poderia assistir, como convém, ao curativo, e convalescença da operação.

Reanimou-se o cego. A esperança galvanizou-lhe as articulações emperradas pela imobilidade. Apertou nos braços com reconhecimento a dedicação do parente, e pactuou sair no dia seguinte.

Folgando de palestrar, sucederam variados aos assuntos. Falou da emigração, das esperanças daqueles dias, das batalhas do Porto, da bravura dos paisanos, das proezas do libertador e, terminou dizendo com um remoqueador sorriso de elevada crítica:

— Sabe vossa excelência o que venceu a guerra? Não foi a idéia da pátria, nem o ódio do despotismo, nem o amor à liberdade. Foi D. Pedro ter fechado o Brasil no caso de lhe cá espedaçarem o estandarte aventureiro, e foi cada homem do Mindelo defender a vida própria da forca ou do desterro, e foi cada cidadão da cidade eterna ser obrigado a defender a esposa e os filhos. Uma vez perguntava D. Pedro, no Porto, a um velho, que saía armado e trôpego, a um toque de rebate: "Também tu, meu velho?" e o velho respondeu: "Também eu, meu diabo! Por causa de Vossa Majestade estou eu aqui a defender os meus netos". Esta resposta é a história do triunfo prodigioso de D. Pedro.

Estendeu o conde a sua diatribe política, desembestando, contra generais e estadistas, acerados dardos, dignos do artigo de fundo da imprensa política portuguesa. Todavia, um ponto lhe esqueceu importantíssimo: e era explicar a sua condescendência no aceitar e pagar um título lembrado a el-rei pelo então ministro da Guerra, camarada do bravo Simão de Noronha. Convinha-lhe exemplificar o desprezo das mercês em conformidade com o seu desdém da liberdade, que, boa ou má, ele ajudara grandemente a implantar. Perdoe-se-lhe, porém, o mau humor cívico em desconto das amarguras da velhice, e da roaz concentração em que a cegueira o pusera, insulado de toda a sociabilidade.

— É pena — lastimou o cavalheiro — que vossa excelência, em anos tão carecidos dos afagos de família, se veja sozinho, e forçado a escutar-se incessantemente em suas tristezas...

— Efeitos da péssima mocidade — disse laconicamente o velho.

— E não lhe restam parentes estimados que substituíssem a falta de filhos?...

— Não, senhor.

A concisão das respostas reduziu a silêncio o interlocutor.

— Quer então vossa excelência que partamos amanhã para as Boticas?

— Se eu não tive piorado desta frouxidão que dificilmente me deixa ir duma cadeira para outra, muito me obsequiará vossa excelência acompanhando-me. Se o doutor entender que é praticável a operação, eu mandarei ir o meu escudeiro e mais criados.

— Vossa excelência tem os meus criados e a mim com eles.

— Obrigadíssimo à sua bondade: deixe-me abraçá-lo, que há muitos anos não senti alguém nos meus braços. Parece-me que ainda é novo...

— Não, senhor. Tenho quarenta anos.

— Eu já era decrépito nessa idade. Aos vinte e seis anos embranqueceram-me os cabelos, e aos trinta caíram-me. Quando voltei a Portugal, depois dum exílio de treze anos, os meus criados perguntaram-me quem eu procurava.

— E já então não encontrou pessoa alguma de família?

— Que eu prezasse... não. Tinha irmãs, que nunca estimei, nem me estimaram. Tinha uma filha...

— Morreu?

— Morreu.

O conde de Gondar apertou as mãos do homem, que prezava, porque sabia que lhe via as lágrimas; e murmurou:

— Vê? Estes olhos não tem luz, tem o sangue do coração. Olhe que eu sou o mais castigado e desgraçado homem que nasceu debaixo do Sol. A sepultura repele-me há cinqüenta anos, porque eu morri então. Morri então, senhor...

E estreitava convulsamente ao seio as duas mãos do cavalheiro.

— Está bom... — prosseguiu ele com satisfação. — Estou melhor... desafoguei... Sinto-me tão bem!...

Quem pudera chorar uma hora em cada doze de tonturas...

— Já vê vossa excelência quanto lhe seria consoladora uma família... Foi fatal o perdimento de sua filha.

— E vossa excelência sabe que a perdi?

— Sei por ter tido a honra de o ouvir há pouco dizer ao senhor conde..

— Ah! Fui eu?...

— Sim; disse-me vossa excelência que sua filha tinha morrido.

— Viva ou morta... morreu. Nunca ouviu falar dela?

— Não, senhor.

— Esqueceram-na todos! Ninguém aqui em Ponte... nem os Abreus lhe falaram dela?

— Não, senhor conde.

— É porque ela empobreceu... é porque eu a repeli... Desprezaram-na todos, e não curaram de saber se eu tinha razão, ou se ela tinha infâmias para ser desprezada... E por isso... morreu!

O flaviense não formava da intelectualidade do conde um juízo satisfatório para uma certidão de sanidade. Não acabava de entender se a filha do conde era viva ou morta; nem ousava protrair indagações irritantes da torvação mental do velho.

Calou-se, aproveitou o ensejo oportuno de despedir-se, e foi indagar o mistério de tal filha.

Os informadores disseram-lhe concordemente que em verdade o conde tivera na sua mocidade uma filha natural de uma célebre fidalga do seu tempo; mas que essa menina se havia perdido em libertinagens como sua mãe.

O cavalheiro entendeu então o que era morrer, e condoeu-se profundamente do pai da perdida.