Batia alvoroçado o coração de Ângela quando ao longe tilintava a guisalhada da liteira, em que entrava nas Boticas o conde de Gondar. Joana e Vitorina, pasmadas da casualidade, faziam considerações muito religiosas sobre o caso.

Francisco saíra à extrema da aldeia para guiar o liteireiro. O cego, sabendo que o doutor o viera esperar, mandou parar o veículo, para apertar a mão do "segundo criador da sua luz", dizia ele.

Caminhou Costa de par com a portinhola, e tomou o velho nos braços, quando a liteira parou ao portão do quinteiro.

Ângela e as outras espreitavam das janelas. Vitorina benzia-se, murmurando:

— Ai! Como ele está acabadinho! Quem viu este senhor há quarenta anos!

Ângela retraiu-se da janela para limpar as lágrimas.

Subiu o conde pelo braço de Francisco os poucos degraus que levavam do quinteiro à saleta destinada.

A melhor alfaia de assento era uma preguiceira almofadada a toda a presa por Ângela e Joana com um colchãozinho de lã e chita escarlate, e dois travesseiros com suas fronhas de folhos engomados.

— Queira vossa excelência sentar-se, e reclinar-se, senhor conde — disse o facultativo. — Convir-lhe-ia melhor uma poltrona; mas não a tenho.

— Isto é magnífico! — disse o general. Encostando-se confortavelmente. — que ar de frescura tem esta casa! Parece que a felicidade tem um aroma particular, primo Pizarro! — ajuntava o general voltado para onde se lhe figurava estar o fidalgo de Chaves. — Onde vossa excelência me trouxe!... Como isto me há de parecer o céu, quando eu puder ver a casa e os bem-aventurados que vivem nela!... Ainda me não deu a honra de me apresentar a sua senhora, a seu filhinho e a sua irmã, senhor Costa.

— Eu chamo-os: são os criados de vossa excelência que eu apresento. Maria e Joana, venham oferecer os seus serviços ao senhor conde.

Entraram as duas senhoras, e Vitorina com um menino de ano e meio no colo.

O conde fez menção de levantar-se, quando sentiu frêmito de vestidos.

— Não se levante vossa excelência — susteve Francisco. — Aqui estão minha mulher e minha irmã.

— O cego estendeu as mãos, tomou as das senhoras.

— A da esquerda qual é? — perguntou ele.

— É minha mulher.

— Parece-me, notou o conde, que a presença de um ancião cego a comove sensivelmente, minha senhora!... Vossa excelência tem a sua mão tremula e ardente... Se tem compaixão desta velhice em trevas, deixe estar que seu marido lhe há de dar a satisfação de me abrir outra vez o mundo diante destes olhos.

— Deus o permita... — balbuciou Ângela.

— Pouco hei de viver — tornou o conde -; mas eu queria ainda ver o Sol, um dia que fosse, o céu que não vejo há dois anos, contados noite por noite, porque eu nunca mais distingui o dia das trevas. Vossas excelências ser ao testemunhas da minha doida alegria... Ouço a voz dum menino que chama sua mãe... É o seu filhinho, minha senhora?

— É sim, senhor conde.

— Deixe-me beijá-lo, se ele me não tiver medo.

A criancinha foi facilmente aos braços do velho, deixou-se beijar, e ficou a olhá-lo no rosto com infantil fixidez.

— Eis aqui a florinha que desabrocha sobre uma sepultura... — disse o velho. — Que mavioso grupo, não é? Foi em França, não sei em qual palácio de Carlos X, que eu vi assim uma pintura, e uma legenda que dizia: Aurora que alumia um túmulo... Ora vá, vá, anjo, que deve estar admiradinho de se ver entre as tristes ruínas duns setenta anos!... Aqui o tem, senhora D. Maria...

Ângela bem queria esconder o seu pranto do fidalgo de Chaves, que a contemplava como espantado de tamanha sensibilidade; mas a comoção vencia a infundado receio de denunciar-se.

— Senhor conde — disse Pizarro — razão tinha vossa excelência para supor que a senhora D. Maria estava compadecida. Ela aí está com o rosto coberto de lágrimas.

— Obrigado à sua compaixão, obrigado mil vezes, minha senhora! — agradeceu o cego com a voz tremente.

— Maria — disse Francisco — dá ordem a que venha um caldo para o senhor conde.

— Eu não tenho vontade; mas o meu dever é obediência ao médico — condescendeu o conde.

— E vossa excelência jantará um pouquinho mais tarde — continuou Costa, dirigindo-se ao parente do conde.

— Eu vou retirar-me porque me esperam em Monte Alegre, e almocei para jantar à noite. Voltarei aqui, se me dá licença, de três em três dias.

— Sempre que vossa excelência queira honrar-me. Depois de amanhã há de ser operado o senhor conde.

Mandei chamar um ajudante a Chaves, e só então aqui estará.

Retirou-se o flaviense, felicitando o primo pela ventura de ter achado o seio de tão carinhosa família.

— Quando aqui estiver três dias, cuidarei que é a minha — disse o cego tomando o caldo das mãos de Ângela, enquanto Joana lhe aconchegava as almofadas para encosto dos braços.

E, no correr deste lance, Vitorina, com as mãos postas, e os beiços chegados às pontas dos dedos, e a cabeça um pouco inclinada, não desfitava os olhos absortos da cabeça de Simão de Noronha.

Estava ela comparando o gentil capitão de cavalaria, o mancebo de olhos negros e tez morena, o fragueiro caçador que ensinava cavalos a galgar penedias, enfim, o galhardo amante de D. Maria d’Antas. E, quando a idéia da velha tropeçava neste nome, como num túmulo, queria ela ver, à beira do ancião, o espectro terribilíssimo duma mulher estrangulada. ..............................................................................................................................

Ao outro dia, o cirurgião foi ver os seus enfermos no circuito de algumas léguas, recomendando à esposa:

— Sê o que deves ser, minha filha. Sopesa o coração, se o sentires mais pusilânime do que eu desejo.

— Conta comigo, Francisco. Ele não me vê chorar.

As duas senhoras sentaram-se em frente do canapé, costurando nas faixas e panos necessários para o curativo. Antoninho agatinhava à preguiceira, e passeava amparando-se à beira do estofo ou aos joelhos do cego, que nunca o deixava passar sem um beijo. A criança ria às guinadas, quando vingava iludir o velho, que se fingia zangado com o engano.

Quem seis dias antes tivesse visto no palacete de Ponte o solitário cego, de fronte abatida para o peito, braços pendidos, ou agitados, a espancar as trevas interiores em busca de um lampejo que lhe deixasse entrever a vida de além túmulo! Quem agora o visse na casinha das Boticas, a brincar com um menino, a rir das criancices que não via, a folgar que Joana lhe descrevesse as cabanas da aldeia, os trajos das barrosãs, a sua maneira de dizer, as bagatelas com que pessoas alegres costumam aligeirar as horas!...

Esta incongruente transfiguração quem a operou? A esperança da luz? O contato da família feliz? A influência misteriosa do que há aí sem nome, e sem idéia nos atos da Providência?

Tudo isto, e o mais que possa ocorrer às almas inteligentes de espiritualismo, não nos dá a causa de tão capital mudança.

Eu ousaria explicar tudo em pouco. A palavra Deus abrange o incógnito de céu e terra, o incompreensível da alma, e o insondável liame de coisas que a razão natural, de pouco alcance mas inflexívelmente orgulhosa, capitula de paradoxos. Deus. Por que não?

Se Simão de Noronha delinqüíra, o açoute da justiça não lhe estalava, desde o instante da ira, nas fibras do corpo? Não se lhe apagou primeiro lá dentro a lâmpada da fé? Não lhe tirou Deus o amor paternal para o privar da ternura da filha? Não lhe fez odiosa a sociedade para o infernar bem dentro de si mesmo?

Pois se é racional reconhecer a Providência na expiação de tão longo prazo, será absurdo reconhecer-lhe a misericórdia naquele dilúculo de contentamentos, após quarenta anos de noite, de ira, de tédio, de ateísmo, de remorso, e de inferno?

Alegremente, pois, dizia o conde:

— A senhora D. Maria fala muito pouco. A senhora D. Joana é mais conversadora.

— Eu falo pouco, senhor conde?... Tenho um gênio melancólico... — disse Ângela.

— Ainda lhe não disse, minha senhora, que o seu metal de voz desperta-me recordações tristes; e, não obstante, consolo-me de a ouvir. Conheci o timbre da sua voz não vulgar em duas pessoas...

Ângela e Joana entreolhavam-se suspensas dos tardos dizeres do conde. Ele, porém, recolheu-se, abateu o rosto caído e como subitamente macerado.

— Está tão triste, senhor conde! — disse Joana. — Não queremos vê-lo assim!... Não pense no passado. Lembre-se só de que vai recuperar a sua vista...

— Para ver sepulturas, e ver também onde hei de abrir a minha...

— Para ver as pessoas que lhe desejam muitos anos de alegria, e uma é minha imã... Maria, outra sou eu, e meu mano... Aqui tem já vossa excelência três pessoas que lhe querem muito...

— E eu sei quanto pode a comiseração em suas excelentes almas, minhas senhoras... Os incômodos que eu tenho já dado para me não faltar nenhuma destas niquices de velho, e de cego... A pobre Vitorina toda a noite, assim que eu gemia, estava ao meu lado... Penso que era ela; que duma ou duas vezes quem me falou foi a senhora D. Maria, não foi?

— Fui, senhor conde. Eu estava ainda a pé nas minhas rezas, e mais minha irmã.

— Peçam a Deus por mim, virtuosas senhoras.

— Pedimos, pedimos, senhor conde — disse Joana.

— O doutor por lá anda a moirejar na vida de cabana em cabana... — disse o conde.

— É verdade. Tem dias que sai ao romper de alva e recolhe alta noite — respondeu Ângela.

— Que voz a sua, minha senhora! — repisou o cego bamboando a cabeça. — Faz-me sentir espantosas alucinações!...

— Mas eu queria que a minha voz o não mortificasse, senhor conde...

— Não me mortifica; enche-me o coração de...

— Saudades? — perguntou Joana com susto, enquanto Ângela lhe fazia sinal para não insistir em tais indagações.

— Saudades... e agonias sem nome... Hei de dizer a verdade a vossas excelências... Na minha mocidade amei uma dama, cuja voz era a da Sr.ª D. Maria; e tive uma filha, que também assim falava... Agonias e saudades... é o que me resta de ambas... Está bom... — suspendeu-se o conde sacudindo a cabeça. — Está bom!... Ora que nem aqui me deixam estas funestas memórias!... Eu estava a dizer que dei muito incômodo esta noite... Amanhã deve aí chegar o meu escudeiro, um criado que tem quarenta e tantos anos de casa, que me tem aturado muito, e que ficará ao pé da minha cama para vossas excelências e a sua criada poderem dormir descansadas.

Ângela, olhando para Joana, abriu a boca em atitude de susto, quando ouviu dizer que vinha o escudeiro. João Pedro reconhecê-la-ia logo, e com qualquer palavra de espanto perturbaria o ânimo do pai.

— Seu marido é natural do Porto, Sr.ª D. Maria? — perguntou o cego, após longa pausa.

— Sim, senhor — titubeou Ângela.

— E vossa excelência também?

— Sim, senhor.

— Queria-lhes fazer uma pergunta; mas bem conheço que é ociosa...

— Que era, senhor conde? — insistiu Joana.

— Se tiveram alguma vez notícia de existir no Porto um brasileiro de Barrosas, de quem me não lembra o nome, casado com uma senhora chamada Ângela, que depois enviuvou, e casou segunda vez...

Ângela fez à cunhada um sinal negativo.

— Nada, não conhecemos, nem ouvimos falar...

— Logo vi. Vão lá saber em terra tamanha...

— Mas, se se pedissem informações... — lembrou Joana.

— Já as mandei procurar...

— E não soube nada?

— Soube o que disse, minhas senhoras: que Ângela enviuvara, casara segunda vez, e saíra não se sabia para onde.

— Vossa excelência mandou há muito saber? — perguntou Joana.

— Há três meses o meu escudeiro; por lá andou cinco dias.

— E essa senhora... — balbuciou Ângela.

— Seria parenta do senhor conde? — interveio Joana.

— Era uma infeliz, filha dum homem que tinha sido bom, e infortúnios grandes desvairaram e perverteram. Afinal, esse homem, como se tinha sepultado vivo, perdeu nas trevas, onde se abismou, alma, coração, honra e tudo. Deus, que o precipitara, levantou-o um dia, não sei se para lhe acrescentar o suplício, renascendo-lhe o coração e sentimentos de amor a sua filha. Procurou-a então; mas... tarde.

Escutaram-no silenciosas e estupefatas as duas senhoras.

A conversação foi interrompida pela entrada do cirurgião; porém, o conde, azado o ensejo, prosseguiu:

— Sr. Costa, eu quero dever-lhe uma grande fineza!

— Mande-me vossa excelência.

— Estas senhoras já me ouviram com muita paciência e compaixão falar duma filha que tive...

Francisco olhou com assombro para ambas.

Simão de Noronha continuou:

— Hei de pedir-lhe que empenhe as suas amizades e relações no Porto para descobrir-se o destino de uma senhora, de nome Ângela, casada que foi com um brasileiro, já falecido, e casada depois com não sei quem. O meu escudeiro, que chega talvez amanhã, pode dizer a vossa senhoria o nome do brasileiro, com o qual a indagação nos levaria a descobrir a paragem de minha filha.

— Prontamente escreverei a pessoas que hão de conseguir o que for possível — disse Francisco, sensivelmente perturbado. — Tenha vossa excelência esperanças; mas que não venham alvorotar-lhe o espírito. Precisamos de toda a sua placidez nervosa, e de completa inação de espírito. Depois que vossa excelência estiver no gozo da sua vista, buscaremos tudo que possa impressioná-lo alegremente. Se sua filha existir, ela será também comigo portadora de luz; eu, a dos olhos; ela, a da alma.