Francisco José da Costa foi chamado urgentemente para visitar um senhor conde hospedado em Monte Alegre.

— Conde de quê? — perguntou Ângela, curiosa de saber que titular subia as montanhas de Barroso em busca de seu marido.

— Conde de Gondar — disse o enviado.

— De Gondar? — observou Ângela ao marido. — Cuidei que só havia o Paço de Gondar de meu pai!

Ora, Francisco não lia gazetas, nem sabia que o general Noronha passasse a titular. Não ponderou por isso a observação da esposa, nem inquiriu a procedência do conde.

Chegou à casa nobre de Monte Alegre.

Levaram-no à presença dum ancião cego, de aspecto cadavérico e tocantemente amargurado.

Costa examinou-o em breve espaço, e perguntou:

— Senhor conde, há que tempo começou o seu padecimento de olhos?

— Há nove anos. Estava eu em Paris a tratar-me de nevralgias de cabeça.

— E quando cegou completamente?

— Há dois anos, tendo voltado a Paris para consultar de novo os especialistas.

— Disseram a vossa excelência que era catarata negra a cegueira?

— Juntamente; mas era intempestiva a operação. Depois, cá em Portugal, dois facultativos que consultei não votaram pela operação: um deles pendia a crer que a minha cegueira fosse paralisia.

— É catarata negra — disse Francisco Costa.

— Pode operar-se? — perguntou o conde, agitado.

— Pode, senhor conde.

— Vossa senhoria tem esperanças?

— As que pode ter-se em operatória.

— E espera dar-me vista?

— Espero, creio que vossa excelência verá.

— Feliz hora em que este amigo que está a meu lado me levou a Ponte do Lima a notícia de vossa senhoria! — exclamou o conde.

— O senhor conde de Gondar — disse o cavaleiro de Chaves ao operador — é o bem conhecido general Simão de Noronha.

Costa fitou o semblante do cego, e baixou maquinalmente a cabeça.

O apresentante prosseguiu:

— Eu tinha visto dois prodígios de vossa senhoria, e assim que soube dos padecimentos de sua excelência, animei-me a solicitar a sua vinda com grande confiança na perícia do senhor doutor.

— Agradeço a vossa excelência a confiança imerecida com que honra o pouco que sei e valho. Onde quer ser operado o senhor conde?

— Se fosse possível, na terra onde vossa senhoria reside — respondeu o cego.

— Nas Boticas não creio que haja casa capaz — observou Pizarro.

— Há — contradisse o cirurgião.

— Sim? — acudiu o conde.

— É a minha — tornou Costa. — Se vossa excelência quiser...

— Quero, meu Deus, quero; nem posso querer outra coisa, e desde já lhe aperto as mãos com o mais sentido reconhecimento — disse o velho com alegria.

— Não pode hospedar-se melhor — confirmou o parente.

— A casa é de aldeia — tornou Costa, sorrindo — mas, enquanto o senhor conde for cego, dispensa o luxo dos ornatos; e, depois que tiver vista, irá para sua casa. O essencial é que vossa excelência tenha um leito, um cirurgião a ponto, e pessoas que o sirvam. Isso lhe ofereço.

— Não ouso dizer a vossa senhoria que remunerarei o que é remunerável — disse o conde -; mas o maior número dos seus favores não se retribui a dinheiro.

— O dinheiro nestas aldeias, senhor conde — volveu Francisco — não é extremamente apetecível, porque faltam cá, ainda bem, as tentações que o encarecem.

— Não sei — refletiu o general — como um facultativo de tanto merecimento se aclimatou em Barroso!

— À procura duma subsistência parca, bastantíssima à felicidade doméstica.

— Então é aqui feliz?

— Mais do que dizem que se pode ser neste mundo.

— É o primeiro homem que me responde isto! — maravilhou-se o general, volvendo a cabeça para o lado onde sentia gente. — Nunca foi infeliz?

— Fui apenas infeliz trinta e um anos.

— E quantos tem?!

— Trinta e três, senhor conde.

— Então a sua felicidade é recentíssima! Encontrou-a aqui?

— A perfeita, a inexcedível encontrei-a em Barroso.

— Tem família?

— Mulher, um filho e uma irmã.

— São as delícias da sua vida!... não são?

— Certamente... — respondeu Costa, espantado do tom dulcíssimo com que abemolara aquelas palavras a selvagem índole do pai de Ângela, e do amante de Maria d’Antas.

— Eu também fui casado — tornou o cego — e amei extremosamente minha mulher, que morreu de dor instantaneamente quando me viu ferido de morte em batalha. Compreendo esse sublime e sagrado amor de marido...

— E de pai?... Não tem vossa excelência a boa fortuna de ter filhos?

— Não... não tive... — balbuciou secamente o conde, e declinou a direção da prática, perguntado:

— Quando quer vossa senhoria que eu vá para a sua hospedeira casa?

— Amanhã, querendo vossa excelência. Hoje mando dar algumas ordens ao aposento que o senhor conde vai honrar.

— O senhor doutor!... beijo-lhe as mãos. E poderei chamar um escudeiro que me trata há muitos anos?

— Pois não! Esperarei vossa excelência, a menos que me não dê ordem de o acompanhar desde aqui...

— Não senhor — atalhou o fidalgo flaviense — eu acompanharei o meu amigo.

— Recebo as ordens de vossas excelências — disse Francisco José da Costa, e saiu.

— Este homem pareceu-me extraordinário! — considerou o conde. — Tem uns ares altivos, não tem?

— E mais vossa excelência não lhe viu a gravidade imponente do rosto! As maneiras são de boa sociedade, e o olhar tem uma penetração de águia. Eu estava a gostar de o ouvir.

— Também eu! Muito lhe devo, meu amigo! De mais a mais deu-me um operador simpático, com uma família que me há de aligeirar as horas? Muito lhe devo!

Entrou com tranqüila aparência o cirurgião em casa.

— Que tinha o conde? — perguntou Ângela.

— É cego, filha.

— Oh, coitado! E cura-se?

— Cura.

— Deus o permita. Vais operá-lo?

— Vem ele aqui operar-se.

— Às Boticas?

— A nossa casa.

— O conde vem para aqui!... Ai que casa esta!...

— Não te disse que ele é cego, menina?

— E que quarto lhe dás?

— O nosso.

— Então seja o meu — disse Joana.

— O nosso é melhor — tornou Francisco. — Cedes o teu quarto ao conde, Ângela?

— Pois sim, meu amor. Ele que homem é?

— Tem setenta anos.

— Tão velhinho! E vais operá-lo?

— Vou.

— De onde é ele?

— Veio de Ponte do Lima.

— De Ponte do Lima? De que família?

— Dos Noronhas Barbosas.

— Então é meu parente.

— É; é muito teu parente; é teu pai.

— Meu pai?!... Estás brincando, Francisco?

— O cego conde de Gondar que vem para tua casa é teu pai, Ângela: é o general Simão de Noronha.

— E ele sabe?... — exclamou Ângela, ofegante. — ele sabe...

— Para onde vem? Não nem quero que saiba depois que estiver cá. Desde que ele entrar, tu perdes o teu nome, e chamas-te?... como hás de chamar-te? Maria. Se sentires expansões de filha, hás de reprimi-las. pede-to o teu plebeu, o filho do sacristão honradíssimo que amou seus filhos com ternura, e se apartou deles prometendo-lhes vigiá-los do céu. O conde de Gondar aqui dentro é um doente que se trata. De comum entre nós há apenas operado e operador. Tu és a esposa de um, e a filha repulsa e abandonada do outro. Que te diz o coração, Ângela?

— Que ele é meu pai... e mais desgraçado que eu...

— Pois compadece-te, ama-o, mas não me impeças o restituir-lhe a vista. Quando ele te vir, há de ser tarde; mas podes vê-lo e falar-lhe contanto que imediatamente à operação, e mudados os apósitos, ele te não veja.

— Mas, logo que me veja, é provável que me reconheça...

— Se assim for, a tua dignidade te aconselhará. Sobretudo, é preciso que atendas aos créditos do cirurgião. Se sobrevierem febres em resultado de comoções violentas, perderei o prazer de mostrar ao conde de Gondar uma família feliz sem brasão no portal nem ouro nas arcas. Quando o conde souber em casa de quem está, desejo muito que a senhora de casa se faça tão-somente conhecer por filha de D. Maria d’Antas.

De onde se prova que as singulares utopias no amor dos dezoito anos semelhavam muito em Francisco Costa, aos trinta e três anos, umas singulares utopias de dignidade humana.