Conceda-se agora um olhar sobre o passado...

Era uma dessas belas noites de inverno dos países tropicais, onde, para vencer o frio, é de sobra o movimento e a lã.

A cidade do Rio de Janeiro estava em suas horas de poesia. A modesta fada do vale tinha sobre sua cabeça a lua cheia e graciosa que a inundava de luz; o orvalho noturno molhava-lhe as tranças; em redor dela animava-se a sua na­tureza opulenta e variada; e a seus pés dormia tranqüilo, ressonando apenas, seu mar de águas verde-claras, que simulava então um lago de pirilampos.

A natureza estava em festa. Os homens tinham também a sua. Ouvia-se o ruído de um sarau; mas não era no centro da alegre cidade, era no mais mimoso de seus arrabaldes.

O que havia de mais belo, de mais primoroso e rico na cidade do Rio de Janeiro, tanto pessoal como material, se achava reunido em uma elegante casa em Botafogo. Dava-se esplêndida festa; importa pouco conhecer a origem dela; o essencial é saber que havia uma festa.

A casa brilhantemente iluminada, ostentando riqueza imensa e luxo desmedido, era, apesar de vasta, pequena para a multidão que a pejava.

O jogo, a dança, a música exerciam ali seu império em salas diversas, e sobre vassalos diferentes.

Aqueles a quem a idade ou o estado afastava do amor, e enfim os poucos de todas as idades e estados que eram es­cravos da mais terrível paixão, prestavam vassalagem ao jogo.

Os outros todos corriam para as salas de dança e música: lá estava a mulher.

Haviam sobre cem ainda muitas senhoras.

O estrangeiro curvava-se gostoso sob o poder dessas vistas ardentes jogadas pelos olhos negros das brasileiras. Ali o árabe lembraria baixinho suas canções aos olhos das ga­zelas...

Mas no meio dessas mulheres todas, entre mais de cinqüenta virgens belas em todo fulgor de verdes anos, com todo interesse de sua intacta pureza, de sua quase angélica inocência, ainda assim levantava sua cabeça de rainha uma senhora já casada, e que não se podia dizer menina como as outras.

Alta, elegante, extremamente bem feita, de cabelos e olhos negros, cor morena, lábios grossos e belos dentes, ostentava uma beleza especial. Havia em seus modos uma mistura de segurança e nobreza que impunha respeito e admiração; de voluptuosidade e ardor, que desafiava lascivos desejos. Era uma beleza como que selvagem e perigosa. Essa mulher tinha sobretudo um olhar insolente, uma voz melodiosa, e um andar provocador.

Trazia ela os cabelos primorosamente penteados e ornados com uma preciosa borboleta de brilhantes; rosetas das mes­mas pedras nas orelhas, e o colo cor de jambo, nu, para melhor ostentar sua perfeição; seu vestido era de seda cor de Isabel, e adivinhavam-se enfim dois pequenos pés presos em sapatinhos de cetim. Tinha na mão direita um ramalhete de violetas, e na gola do vestido, mesmo junto da axila, um cravo rajado, que exprimia um não sei quê de provocadora graça.

Não era uma incógnita: a assembléia toda conhecia o seu nome e respeitava-o. Tão encantadora como honesta, contentavam-se com admirá-la.

Formara-se defronte, mas um pouco longe dela, um círculo de mancebos que faziam por mil maneiras o seu elogio, depois de haverem discutido e concedido a coroa de rainha daquela festa à bela senhora:

— É um homem verdadeiramente feliz, disse um deles, o marido de uma tal mulher.

— Feliz por todas as razões, acrescentou um segundo.

— Como por todas as razões?... perguntou terceiro man­cebo.

— Oh! pois será preciso explicar-me?...

— Bem entendido, se for de sua vontade.

— Pois bem: feliz porque possui uma mulher formosa.

— Convenho.

— Dotada de bastante espírito.

— Tenho ouvido dizer.

— Que é fiel aos laços que a ligam.

— Devo crê-lo.

— Que ama a seu marido exclusivamente.

— Quem sabe?

— Agora, meu caro, sou eu que tenho o direito de pedir explicações.

— Estou pronto para dá-las.

— Vamos, pois.

— Digo que estou fatigado de ouvir falar na pureza e lealdade daquela senhora. Oh!... chamar-me-ão dissoluto... dirão que tenho a moral pervertida... pode ser; mas confesso que no ostracismo de Aristides votaria como o camponês que o desterrava por se achar cansado de ouvi-lo chamar — o justo.

— Com efeito!...

— E ainda mais: eu respeito muito as leis da natureza. Creio firmemente que todos podemos ser escravos do erro, e que portanto se a interessante senhora, que segundo creio, faz parte do gênero humano, ainda não errou, pode errar.

— Mas ao menos ainda não errou.

— Dá-me às vezes vontade de tentar... eu daria metade da minha riqueza para ser uma verdadeira tentação!

Alguns sorrisos aplaudiram o leviano; um só dos que estavam no círculo moveu-se com sentimento de reprovação e disse:

— Senhor, sou amigo do marido da senhora de quem se trata e me penaliza que com tanta ligeireza se fale dela em minha presença.

— Mas, meu Deus, ninguém a ofendeu aqui; eu falei somente no respeito que se deve às leis da natureza.

— Uma vida pura, senhor; um comportamento ilibado, merece alguma consideração. É uma mulher encantadora, convenho; ninguém contudo ousa lançar-lhe em rosto a mais passageira leviandade, nem a menor tendência para o ga­lanteio. Se tem algum crime, é o de ser bela.

— Devia ter mais uma virtude.

— E qual?...

— A de se deixar amar.

— Senhor, vejo que cumpre retirar-me. Defronte um do outro por mais tempo, poderíamos perturbar o prazer e harmonia desta assembléia; porque eu respeito a amizade, e o senhor insulta uma mulher, por saber que as mulheres não se vingam.

Dizendo assim, o mancebo travou do braço de um amigo, e retirou-se para o fundo de outra sala.

— Henrique! disse-lhe o amigo, tu estás pálido como a morte.

— É porque tenho uma morte no pensamento, Carlos.

— Como?... que queres dizer?

— Quero dizer que amanhã hei de bater-me com aquele insolente, a menos que ele sobre ser insolente, não seja tam­bém covarde.

— Estás louco, Henrique?

— É possível... e desde muito.

Os dois moços ficaram em silêncio alguns instantes. Finalmente, Carlos, com voz grave e solene, disse:

— Não te assiste o direito de vingar aquela senhora.

— Como?... não sou amigo de seu marido?...

— Sim; porém o tens ofendido dez vezes mais que o estouvado mancebo que falava há pouco.

— Ofendido?... eu?... de que modo?...

— Henrique, tu amas a mulher do teu amigo.

Henrique estremeceu vivamente, e depois respondeu em voz baixa, apertando a mão de Carlos:

— É verdade; mas sei amá-la em segredo.

No entretanto continuavam a gracejar no círculo que pelos dois jovens havia sido deixado.

— Pois bem, disse o leviano, vou vingar-me nobremente daquele assomado mocinho, que daqui saiu há pouco.

— E por que meio?...

— Trabalhando por tornar a nossa rainha um pouco menos merecedora de sua dedicação e entusiasmo.

— É uma empresa um pouco difícil.

— Eu a reputo bem simples.

— E então?...

— Vou requestá-la.

— Quando começa?...

— Boa pergunta... já!

— Para ser repelido.

— É provável que não; e para o mostrar... eis-me em campo. Adeus... rezem por mim...

— Uma palavra ainda...

— O que temos?...

— Uma concordata: se alcançar vitória, trar-nos-á uma vio­leta do buquê que ela cheira neste momento.

— Não; uma violeta é bem pouca coisa: trarei no meu peito aquele cravo, cujo pé deve estar fazendo cócegas terríveis na axila da nossa bela.

— Está dito.

— Adeus, pois... e outra vez rezem por mim.

O presumido mancebo foi direito até a cadeira em que se achava sentada a senhora morena.

— Minha senhora, disse ele, eu vinha declarar a V. Exa. que sou um consumado traidor.

— Sinto, senhor, não poder louvá-lo por isso.

— Estava ali com aqueles senhores falando mesmo a respeito de V. Exa.

— É possível.

— Julguei que V. Exa. estimaria saber o que dizíamos.

— Enganou-se; sou bem pouco curiosa. Se eram elogios, não sabendo deles, poupo-me a agradecimentos que às vezes me custam muito; se me desabonavam, furto-me ao desgosto de ouvir censuras que realmente, ainda quando justas, não agradam nunca.

— E se acaso se houvessem dito coisas que muito conviesse que V. Exa. as soubesse?...

— Pediria que as fossem referir a meu marido.

— E se o marido de V. Exa. não as devesse saber?... se mesmo cumprisse que ele as ignorasse sempre? replicou o mancebo.

— Não compreendo... mistérios tão assombrosos, mas que se tratam em uma sala de baile, ao compasso das contradan­ças, e em um círculo de moços, alguns dos quais devem ser bem levianos, são em verdade coisas muito incompreensíveis!

— Se todavia V. Exa. quisesse arrasar esses segredos, achar o fio desse labirinto ou decifrar essa charada...

— Senhor... sou tão pouco inteligente!...

— Eu me obrigaria a aclarar-lhe tudo, desempenharia meu papel de consumado traidor, com a condição de V. Exa. acei­tar o meu braço e dar comigo um passeio.

— Ah!... que tempo e que eloqüência que V. Sa. gastou para pedir-me um passeio!...

— E então?... V. Exa. será tão benigna que me não re­jeite?...

— Mas eu estou tão cansada!

— Vejo que é ser importuno insistir, mas insisto.

— Sinto que é ser incivil teimar, mas eu teimo.

— Teima em quê?...

— Em ficar sentada.

— Minha senhora, compreendo que para quem não tem a honra de ser de V. Exa. conhecido, eu já pretendo muito; mas pode V. Exa. estar certa que eu não seria capaz de ofendê-la.

— Oh! não é isso, creia que sou pouco medrosa.

— Há pouco eu juraria o contrário.

— Pois passeemos.

Um raio de alegria terrível brilhou nos olhos do mancebo. Guardou silêncio por alguns momentos, e quando se achou fora da sala da dança, começou dizendo:

— Quer V. Exa. que eu comece a ser traidor?...

— Ah! pois deveras temos uma história?...

— E no fim um verdadeiro mistério.

— Eu lhe escuto.

— Verá que vou trair a mim mesmo.

— Diga... diga.

— Sustentava-se, no círculo em que eu me achava, que V. Exa. era encantadora; todos concordaram e eu também.

— Só isso?...

— Engraçada; convieram todos, e eu também.

— Mais nada?...

— Espirituosa; todos apoiaram, e também eu.

— E que mais?...

— Inconquistável; todos o afirmaram, menos eu.

— Menos o senhor?!

— Sim, minha senhora; eu declarei que não havia mulher de quem algum homem se não pudesse fazer amado.

— E disse bem, porque eu amo meu marido.

— Perdoe-me; é que eu me não referia ao marido de V. Exa.

— Ah! senhor!... isso agora...

— Minha proposição foi geralmente combatida.

— Fizeram-me justiça.

— Mas eu fui por diante; sustentei quanto havia dito e jurei demonstrá-lo.

— E como, senhor?...

— Fazendo-me amado de V. Exa.

A senhora morena olhou espantada para o insolente que assim lhe falava e encontrou fitos em seu rosto dois olhares frios, mas impassíveis.

— Senhor!... disse ela com voz alterada.

— Jurei, prosseguiu o mancebo, que conseguiria isso hoje mesmo.

— É incrível tanta ousadia!...

— E que em sinal de minha vitória levaria no meu peito o cravo que está aí ornando o de V. Exa.

— Eu tenho pena do senhor, porque realmente me parece um pobre louco.

— Pena tenho eu de V. Exa., disse o mancebo apertando o braço da senhora. Porque eu hei de daqui a pouco aparecer com esse cravo no meu peito; e daqui a pouco V. Exa. há de na sala que deixamos, pelo menos, fingir-se dócil a meus cumprimentos e grata a meus extremos.

— Cometi uma imprudência em aceitar o braço de um fátuo que não conhecia, respondeu com nobre altivez a senhora; mas o senhor vai já levar-me a meu lugar, se não quiser ver retirar-me só, e dizer em voz alta que qualidade de homem se atreveu a oferecer-me o braço.

— Tanta fereza!...

— Senhor... tornemos à sala... aliás...

— Pois bem... V. Exa. ouvirá primeiro duas palavras, e depois... veremos.



No fim de meia hora os dois entraram na primeira sala.

O cravo que ornava o peito da senhora, tinha passado para o do mancebo. Ele estava radiante; ela muito pálida.

Henrique quando viu o cravo rajado no peito do atrevido moço, deixou-se cair em uma cadeira, como fulminado por um raio.

Depois, passada uma hora, ergueu-se, e Carlos chegou-se a ele.

— Então, Henrique, pretendes ainda bater-te amanhã?...

— Não Carlos; mas parto para França no primeiro navio que der à vela.



Esta cena ocorrera no meado do ano de 1843.



A senhora morena que se havia tornado pálida, chamava-se Mariana.

O nome do mancebo fátuo que se fizera radiante, era Salustiano.