Em conseqüência das relações que com seus vizinhos entabulara inesperadamente, Cândido teve de modificar esse correr de vida a que se havia condenado. Se o emprego de seus dias era ainda como dantes todo votado ao trabalho, parte de algumas de suas noites já ele passava fora do velho sótão.

O convite de Anacleto não fora simples fórmula de civilidade. Duas noites depois da tarde em que os moradores do "Purgatório-trigueiro" fizeram sua visita de agradecimento à "Bela Órfã", Cândido recebeu um bilhete de Mariana, no qual, da parte de seu pai, o convidava para passar algumas horas no "Céu cor-de-rosa".

De então por diante, força foi repetir a miúdo essas noites de serão, porque, ou novos convites de Anacleto vinham lembrar-lhe e chamá-lo para esse gozo, ou Irias o instigava a ir procurar a sociedade de tão bons vizinhos, mais que tudo porque contava que assim se poderia melhor destruir aquela acerba melancolia de seu filho adotivo.

E Cândido, que parecia abandonar-se a uma como que obediência passiva; que sempre mostrava corresponder de má vontade aos convites de Anacleto; que nunca deixava de resistir às instigações da velha Irias; que quando transpunha o alpendre do "Céu cor-de-rosa", parecendo querer desculpar-se ante sua própria consciência, dizia entre si "não é voluntariamente, é só por condescendência que aqui venho"; Cândido, se não tivesse até então receio de estudar a fundo o estado de seu coração, sentiria o como lhe palpitava açodado, ao ele subir a escadinha da habitação da "Bela Órfã".

Cândido estava na situação daqueles que, tendo o espírito mergulhado na dúvida e o coração nadando na verdade, mentem a si mesmos sem querer... sem sentir.

E todavia os serões do "Céu cor-de-rosa" deviam agradar ao jovem melancólico. Ali não o podia turvar nem o peso de uma multidão ruidosa, nem o cansaço de uma vigília prolongada. Os convidados eram poucos, escolhidos, e sempre os mesmos; e à meia-noite todos se retiravam. Até à meia-noite conversava-se, jogava-se, e quase sempre o domínio dos serões era exercido pela dança e pela música.

O papel de Cândido era contudo muito limitado nos serões do "Céu cor-de-rosa". Ele nunca jogava; dançara à força uma ou outra vez, conversava quase sempre com Anacleto, e a respeito de música se desculpara como pouco entendedor da matéria.

Apesar, porém, de sua completa inação, era Cândido muito bem tratado no "Céu cor-de-rosa". Anacleto o distinguia da maneira mais positiva; há um mês apenas que vira esse mancebo e já parecia votar-lhe decidida e forte amizade. Mariana o cercava de atenções e cuidados; Celina o tratava com angélica doçura. E a sociedade que costumava reunir-se no "Céu cor-de-rosa", acompanhava ou fingia acompanhar os donos da casa nos sentimentos que pareciam nutrir por Cândido.

Um só homem do mancebo se afastava; um só homem ali concorria, que mostrava desestimar o pobre mancebo: era Salustiano.

Também de sua parte, Cândido pagava com extrema gratidão aquelas demonstrações de estima.

Ao pé de Anacleto seu coração se abria todo a esse nobre e expansivo sentimento que se chama amizade; sentimento elevado e belo, que um vil interesse não mingua e acanha, nem a baixeza do ciúme tolda e degenera.

Contemplando Mariana, a acerbidade de sua melancolia se aplacava, se mudava quiçá em doce tristura; ele achava naquela mulher um encanto poderoso, que o convidava a amá-la não com esse extremo ardor com que se adora uma amante, mas com a afeição sossegada e benigna que se tributa a uma irmã... a uma boa amiga.

Seguindo algumas vezes com os olhos a "Bela Órfã", ele sentia... mas era esse o sentimento que ainda Cândido não ousara classificar. Ele olhava de relance apenas; ouvia-a com indizível enlevo; tinha de cor o eco de suas pisadas; mas não se atrevia a dizer a si próprio o que sentia por Celina.

Ao resto da sociedade pagava Cândido cumprimento por cumprimento, delicadeza por delicadeza.

Um só homem havia ali de quem o mancebo se afastava: era Salustiano. Antipatia inexplicável tinha entre eles dois levantado uma barreira, ou cavado um abismo.

Por conseqüência, devemos concluir que, apesar da presença de Salustiano, o coração de Cândido agradavelmente se dilatava naqueles serões?... Antes de assim concluirmos, cumpre primeiro lembrar-nos de que Cândido era um moço pobre e sem nome, e em seguida estudarmos a fisiologia do coração do pobre, e a fisionomia da sociedade em que ele vive; sociedade geralmente pervertida, que repele sem discutir a pobreza e o desvalimento.

Estudemos, pois, e comecemos pela sociedade.

Pois que na vida moral e física do universo é tudo mais ou menos compensado, cumpria que, em paga de seus mil dissabores, provasse o homem pobre uma feliz compensação. Ele, que de tantas coisas carece na triste vida que vive; ele, verdadeiro Tântalo, que vê no mundo um mar de gozos, e a nenhum desses gozos pode tocar com os lábios; ele devia achar na sociedade daqueles que mais têm, uma hora de esquecimento daquilo que em vão deseja.

Mas o que é que todos os dias estamos vendo?...

Nós não queremos falar do homem intrometido que, pobre ou não, em toda parte aparece, arranca à força o seu quinhão em tudo, não querendo ver a cara má que lhe fazem, nem querendo ouvir a indireta insultante que se lhe atira ao rosto. Falamos, criamos para dele falar, o pobre cheio de mérito e de pudor, que vê, que ouve, que observa, e que sente.

O que é que lhe dá a sociedade?... o que é que dá a ele, tão escondido por sua modéstia, que precisa de uma mão que o levante para aparecer, e ser visto?... o que é que lhe dá?...

Quereis ver como a semelhante respeito se caracteriza a sociedade?... Pois bem.

O pai de família segue esse homem com os olhos, e quase que se incomoda se ele olha para uma de suas filhas, porque o pai de família tem medo desse olhar do pobre; do pobre que não pode sustentar o peso de uma carteira, onde se jul­gue seguro o porvir de uma mulher.

O mancebo não procura, foge antes do jovem pobre, porque receia que sua amizade pesada lhe seja; que ele o ocupe alguma vez... ele, que nada tem para poder servi-lo um dia.

E aqueles que não são pais de família, nem mancebos, e que contudo são ricos, olham para o homem pobre por sobre o ombro, envergonhar-se-iam de lhe dar o braço num passeio, e quase que têm pejo de o considerar de sua mesma espécie.

A mulher... oh! mas em honra da verdade digamos aqui: a mulher é apenas que ainda retém alguma generosidade e nobreza no meio desta nossa perversão tão grande; a mulher está aí no jogo de altas inspirações e sentimentos elevados, envergonhando o homem todos os dias. Mas pode ir o pobre até a mulher?... como? se para chegar até ela é preciso vencer essa barreira de gelo, essa massa imunda que a pren­de como, se adiante da mulher está o homem?...

E quereis saber o que se pretende e se consegue com isso?... que uma linha divisória separe os filhos de Deus; que o mundo pobre faça seu ninho muito à parte, e não vá cons­purcar o céu da riqueza, que a casa do rico não seja empestada pelo hálito do pobre!...

Erga-se embora o pai de família, e diga que nós mentimos; brade o mancebo, e jure que insolente aleivosia lhe levan­tamos. Realmente um ou outro pai de família, um ou ou­tro mancebo desmente essa regra; mas o gênero humano aí está em totalidade demonstrando-a na prática de um modo abominável.

Será que o gênero humano esteja assim todo, todo pervertido?... não. Em regra geral, cada homem individualmente tomado, cada um de per si repele a teoria infernal, mas vai realizá-la na prática; porque cada um de per si diz que não é ele que há de emendar o mundo, e, em uma palavra, porque esse ente abstrato, pervertido, degenerado, imundo, a nossa sociedade enfim, aceita, abraça a teoria, e, como já dissemos, horrivelmente a pratica.

É por isso que a sociedade não discute entre o rico estúpido e o pobre instruído: a vitória cabe sempre ao primeiro.

É por isso que ela, sem pudor, deixa a um canto a pobreza honrada, e festeja, lambe os pés da riqueza, mesmo indignamente adquirida.

É por isso que a porta que se não abre ao pobre modesto e nobre, se escancara ante o milionário imoral, cuja presença em uma casa é ás vezes o anúncio da desonra.

É por isso... mas basta. E se a sociedade disser que mentimos, nós a mandaremos olhar para si mesma; e ela há de por força corar de vergonha, observando-se.

Ainda se o caminho da fortuna e da riqueza se facilitasse a todos os homens... mas não; uma porta de ferro a fecha, e o pobre não pode vencê-la, porque não tem a chave que abre todas as portas... o dinheiro.

E agora pensareis que por isso maldizemos a sociedade geral?... que sobre os ombros lhe lançamos a pesada culpa de tanta miséria?... Não, mil vezes, não!

Não deve ser maldita a sociedade geral; sê-lo deve somente a sociedade que governa.

Aí está o poeta nacional que brada:

"Nasce de cima a corrução dos povos".

E aí está a sociedade que governa, justificando o bradar do poeta:

Com a impunidade espantosa do rico.

Com o patronato, o escândalo, e a servidão vergonhosa que se presta ao rico.

Com a preferência inaudita que em tudo se dá mil vezes ao rico sem mérito algum, sobre o homem que, sendo embora distinto, é todavia pobre.

O que queríeis que fizesse a sociedade geral?... ela hoje, como sempre, arremeda a sociedade que governa.

É o governo quem desmoraliza quem tem desmoralizado o povo; o erro vem daqueles a quem cumpria mostrar o bom caminho, caminhando eles mesmos adiante.

Mas seja de quem for a culpa, o resultado é sempre o mesmo. A sociedade, geralmente pervertida, repele a pobreza o desvalimento.

E agora compreendei conosco o homem pobre lançado aí no meio da sociedade que o rejeita. Entrai conosco dentro do seu coração para poder bem sentir o que se passa nele.

Em conseqüência desse constante sofrer, em conseqüência da inabalável firmeza com que a sociedade desenvolve o nefando programa da onipotência da riqueza, resulta que profundas e terríveis convicções se imprimem no coração do pobre. Ele se acha convencido que nas relações políticas não se dá jamais igualdade de lei entre rico e pobre, quer se deva "proteger", quer "castigar". Há iniqüidade sempre; porque para o pobre não há proteção, mas há castigo, e para o rico há proteção, há patronato, e há impunidade.

Nas relações domésticas, em conseqüência dessa depravação pública, tributa-se um culto espantoso à riqueza, e o homem pobre acha quase sempre naqueles que mais têm, ou desprezo, ou um esquecimento involuntário, que dói ainda mais, porque é a demonstração viva da própria miséria.

Sabeis qual é, e qual será o resultado de tudo isto?...

É que hoje o pobre não tem amor às instituições, nem confiança no governo; porque as leis servem somente de puni-lo, e o governo não cura de protegê-lo.

É que amanhã o pobre terá em desprezo a lei, e há de desconfiar da sociedade que governa; e depois de amanhã... e no futuro, num dia enfim que felizmente bem longe está ainda, o povo pobre que é muito mais numeroso do que o dos povo rico, perguntará àqueles que estão de cima — se ainda não é tempo de minorar-se o peso de sua cruz, se o seu calvário não se acaba de subir nunca.

É que hoje o pobre indiferente e sofredor, carrega o seu peso silencioso como o camelo, e um dia mais tarde, — ai de nós se ele chegar! — levantará a cabeça, orgulhoso como o leão, e terrível como o tigre.

Não se diga que o mundo é hoje como fora ontem, e como será amanhã; não! No mundo tudo sobe e desce gradualmente, e neste caso é preciso convir que a perversão e a imoralidade tem ido subindo de grau em grau. Deus permita que também a paciência dos que sofrem não tenha ido igualmente de grau em grau subindo; porque então, quando o termômetro terrível marcar o último e mais alto grau de perversão, marcará também o último e mais alto de paciência.

E essa repulsão, esse desvalimento, o homem pobre encontra por toda a parte. No corpo abstrato que representa a grande família, no alto corpo social recebe ele esses golpes terríveis e mortais, que ferem seus direitos naturais e civis, que destroem a igualdade do gênero humano, que dividem os filhos de Deus em dois bandos: — protegidos e repelidos.

E na pequena sociedade das famílias dos ricos, o homem pobre se atira a um canto; vê rir, vê brincar, vê gozar, vê ser feliz; e quase nunca ri, goza ou brinca, e jamais é feliz. Algumas vezes desprezado, quase sempre involuntariamente esquecido, ele fica ao canto com a convicção de sua miséria. Na pequena sociedade de que falamos, ele sofre pequenos mas repetidos golpes. Pequenos, mas que lhe doem muito, porque lhe vão ferir esses pontos mais dolorosos da sensibilidade.

E essa convicção da própria miséria, e de seu imenso desvalimento, tem tão grande influência no homem pobre, que às vezes mesmo em um círculo excepcional, mesmo na sociedade de alguns poucos que abominam a máxima diabólica, que sendo ricos não sabem esquecer involuntariamente o pobre, este não se anima a tomar para si um papel igual ao dos mais que ali estão, porque embora excepcional seja esse círculo, o pobre tem na alma a convicção de sua miséria e de seu desvalimento, e por isso se entorpece ou receia... acanha-se.

Era esta última a posição de Cândido nos serões do "Céu cor-de-rosa".

Que importavam as demonstrações de amizade de Anacleto, as atenções e cuidados de Mariana e a doçura angélica de Celina?... que importava a atmosfera pura e leve que no "Céu cor-de-rosa" ele respira, se dentro de seu coração lhe estava pesando a profunda convicção da miséria do pobre?... portanto, ele se deixava ficar escondido em um canto da sala... do seu lugar... no lugar que geralmente na casa daquele que muito mais tem, se deixa ficar o que muito menos tem.

Mas aí mesmo, aí nesse retiro vinha esmagá-lo o peso do seu infortúnio. Daí ele via Celina cercada e lisonjeada por mancebos que podiam sorrir para ela, ouvia lhe dizerem baixinho o elogio de sua beleza, e depois irem cantar com ela duetos apaixonados; mancebos enfim, que podiam merecê-la; e ele via esses sorrisos, ouvia o murmúrio dessas palavras ditas de súbito... e não podia fazer outro tanto, porque, quem sabe se por única resposta a seus cumprimentos, Celina lhe perguntaria: — Quem és tu?...

E suponhamos que, graças à sua virtude e urbanidade, nada lhe dissesse Celina, não poderia essa menina perguntar dentro de si mesma: — Quem é ele?...

E não basta simples suposição para fechar a boca do homem pobre e desconhecido, que tem no coração um pouco desse orgulho sagrado que todo o homem de honra se ufana de ter?...

Portanto, os serões do "Céu cor-de-rosa" não ofereciam a Cândido o encanto imenso que em outras circunstâncias lhe ofereceriam. A razão disso estava nele mesmo.

Mas, enfim, um pouco à força dos convites de Anacleto, e das instigações da velha Irias, e um pouco à força dos convites e das instigações de seu próprio coração, Cândido era um dos mais assíduos freqüentadores do "Céu cor-de-rosa".