Em lugar de ir com as duas amigas para o toilette, que era mesmo no primeiro andar, a "Bela Órfã" guiou-as para o segundo, e entrou com elas em seu quarto.

Anacleto, levando sempre pela mão a Cândido, subiu também a escada, e entrou pé ante pé com o mancebo no quarto de Mariana.

As duas câmaras eram apenas separadas por uma delgada parede, e uma portinha as comunicava pelo fundo. A portinha estava simplesmente tapada com um leve reposteiro, ou melhor, com uma cortina de seda cor-de-rosa debruada de fita azul.

O velho levou o moço ao fundo da câmara, e com precaução e cuidado correu a cortina. O quarto de Mariana não tinha luz. No de Celina ardiam três velas em um candelabro de bronze.

Cândido viu primeiro um leito virginal defendido por cortinados de cassa branca, e através deles três moças encan­tadoras, cujas elegantes formas se desenhavam ainda na sombra.

E não pôde ver mais nada, porque Celina começava a falar.

A "Bela Órfã" pronunciou algumas breves palavras; mas olhando para as duas amigas e lendo-lhes no rosto a curiosi­dade com que estavam, corou, e hesitando, disse:

— Ora... é uma puerilidade... um sonho de criança, que parece loucura contar.

— Não, não, d. Celina; conte sempre.

— Há de ser por força muito bonito.

— Sem dúvida; pois que além de tudo, é um sonho com flores.

Celina, com os olhos pregados no colo, principiou a contar a história do botão de rosa.

— Foi no dia em que eu fiz treze anos: jantaram e passaram a noite comigo duas companheiras de colégio, ambas dois anos mais velhas do que eu. D. Luisinha e d. Leopoldina. Leopoldina era viva como você, d. Felícia; Luisinha mali­ciosa como você, d. Mariquinhas.

— Obrigada pelo elogio, disse esta.

— Deixe-a falar, acudiu Felícia.

Celina continuou.

— Três moças que se conhecem desde a infância, que brincaram juntas, e juntas estudaram, têm sempre tantas coisas para se dizer, que a certa hora nós nos escapamos da sala, e fugimos para conversar sem testemunhas, escondidas no meu quarto. Foi neste mesmo quarto! disse a moça, cortando com um suspiro sua narração.

— Neste mesmo quarto! murmuraram como admiradas daquela coincidência, as duas ouvintes.

— Passamos muito tempo, prosseguiu a "Bela Órfã", a rirmo-nos muito, lembrando-nos do passado e de nossas travessuras; e depois misturamos com essas alegrias tantas saudades... tantas... e tão grandes, que estivemos a ponto de chorar. Depois sonhamos também com o futuro, e nossas cabeças de meninas o iam desenhando sempre tão bonito... tão bonito!... enfim tivemos vontade de falar no presente, e Luisinha deu-me um beijo e me disse:

— Já estás moça, Celina!

— É verdade, disse Leopoldina; já estamos todas três moças; e, continuou ela rindo-se, aqui para nós, somos bonitas.

— E como é bom ser moça, quando se é bonita, tornou Luisinha; os velhos nos admiram, as outras senhoras nos invejam, e os moços nos amam.

— Antes todos nos amassem, disse eu.

— Como ela é!... exclamou Leopoldina rindo-se muito.

Eu fiquei admirada daquele tanto rir, que me parecia muito fora de tempo.

— Em parte também eu sou assim, tornou Luisinha; não amo a ninguém ainda; mas quisera que todos bebessem os ares por mim. Quando eu passo junto de um homem, a quem vejo mesmo pela primeira vez, e ele me olha de certo modo e acompanha com a vista, ou me segue, eu gosto... confesso que gosto.

— Oh! sim, disse Leopoldina; mas é tempo de fazermos um ajuste.

— E qual? perguntei.

— Logo que uma de nós amar, di-lo-á em confidência às outras.

— Eu comecei então a pensar que havia algum grande mistério na vida, que essa palavra — amar — queria dizer.

— Pois bem, tornou Luisinha, eu estou pronta... é um belo ajuste; porque eu nunca terei vergonha de o dizer. Quando amar, hei de amar bem, e a quem bem o merecer.

— Sim!... e também eu, disse a outra.

— Não há de ser com seu ouro e suas riquezas que poderá um homem agreste, frio, e sem espírito, comprar o meu coração.

— Oh! sim!... exclamou Leopoldina.

— Nem há de ser o velho que poderia ser meu pai, quem, a preço de suas carruagens ou de sua brilhante posição na sociedade, de suas comendas ou de seus palácios, ganhará a minha mão.

— Oh!... sim!...

— Há de ser um moço... bem moço, pouco mais velho que eu... bastam quatro ou cinco anos; um moço bonito, com cabelos anelados, olhos brilhantes, dentes claros, sorrir gracioso, e mãos finas; com espírito cultivado, gênio alegre, e...., não precisa ser rico.

— Ora! para que dinheiro?... acudiu Leopoldina.

— E tu que dizes, Celina?... indagou Luisinha, dirigindo-se a mim.

Eu fiquei em silêncio por algum tempo. Mas enfim, corando muito de minha ignorância, perguntei:

— O que é amar?

Minhas duas amigas começaram a rir tanto... tanto... que por fim lhes causou piedade a perturbação em que me punha a hilaridade que eu provocara.

— Pois não sabes o que é amar?...

— Amo a meus pais, a meus parentes, a minhas amigas, e aos amigos de meus pais. O mais não sei.

— Coitada! murmurou Leopoldina.

— Pobre criança!... acrescentou a outra.

Eu me achava realmente confundida.

— Luisinha, explica-lhe o que é amar, disse Leopoldina.

Então Luisinha tomou uma de minhas mãos entre as dela, e me falou assim:

— Celina, eu vou dizer-te o que é amar um homem que não é nosso pai, nem nosso irmão, nem nosso amigo; escuta. Nem sempre pertencemos a nossos pais. Chega um dia em que a nossa vida começa a correr de outro modo, e deixando aqueles que nos deram a existência, passamos a ser a eterna companheira de um homem, que nos deve amar e trabalhar para nós, que reparte conosco seus prazeres e seus pesares; que forma com sua companheira um ente só; que é o nosso melhor amigo, e mais do que nosso irmão. Ora pois, esco­lher, mesmo sem se querer, sem se sentir, mas escolher com os olhos e com o coração entre mil, entre todos um homem, ao qual desejamos pertencer desse modo; pensar nele de dia, sonhar com ele de noite, estar triste em sua ausência, tremer de alegria e de pejo a seu lado, resistir às ordens de um pai, que manda esquecê-lo, e lembrá-lo ainda mais depois disso, jurar ser dele ou de ninguém, e sofrer tudo por ele: eis aqui o que é amar.

— Ah! Celina! exclamou Mariquinhas interrompendo-a; a tua camarada tinha aproveitado muito no colégio!...

— Não a interrompas, disse Felícia.

Celina continuou:

— Eu fiquei pensativa e admirada. Nunca me tinha vindo ao pensamento que se pudesse amar assim a um homem estranho.

Luisinha ainda se dirigiu a mim:

— E agora, que já sabes o que é amar, Celina, é preciso que subscrevas ao nosso ajuste; que, nunca sejas a compa­nheira de um homem a quem não tenhas amor; e que, final­mente, logo que chegues a amar, no-lo digas em confidência.

— Mas quem sabe se chegarei a amar desse modo? respon­di eu.

Minhas duas amigas começaram a rir de novo; e Luisinha replicou:

— Hás de chegar, Celina; o amor vem quase sempre contra nossa vontade e ainda contra nossa vontade se deixa ficar em nossos corações.

— E como sabes isso, Luisinha?...

— Ora! tornou-me ela; achei uma boa amiga que me deu as explicações que agora te estou dando.

— Quem nos diz que ela ainda não ama?... disse Leopol­dina.

— Ainda não. Mas vamos ao nosso ajuste. Tu subscreves a ele, Celina?...

— Subscrevo, respondi hesitando.

— Vamos jurar! exclamou Leopoldina.

Fizemos um juramento de moças. Juramos por nossa amizade e selamos o nosso pacto com beijos.

Descemos e entramos na sala, onde todos notaram que eu estava pensativa e um pouco melancólica.

Às onze horas da noite retiraram-se nossas visitas. Daí a pouco meu pai abençoou-me, e eu subi de novo para meu quarto.

Deitei-me. Minha mãe entrou, dirigiu-se a meu leito e como costumava fazer todas as noites, beijou-me e disse:

— Dorme bem, Celina.

Achei-me só.

Começaram então a ferver em minha cabeça aquelas idéias que eu tinha pela primeira vez concebido. Foi-me impossí­vel dormir durante muito tempo; julguei que delirava; pen­sei que ia ficar doida, porque às vezes me parecia ver ao re­dor de mim meninos louros e travessos, que corriam, saltavam, chegavam-se a meus ouvidos, diziam baixinho — amar! — e fugiam de novo correndo, saltando, e rindo-se muito; outras vezes era uma mão invisível, que estava escrevendo pelas paredes de meu quarto, e com tinta de fogo, essa mes­ma palavra — amar!...

Enfim, adormeci.

Mas o pensamento, que me governava acordada, não me deixou dormindo. A pesar meu, a idéia única que me ocu­pava até no sono, era essa mesma que me tinham feito con­ceber na palavra — amar.

Sonhei.

Eu estava em um vale coberto de verde grama: defronte de mim erguiam-se dois montes altos e povoados de lindas palmeiras; por entre eles prolongava-se um lago profundo, mas de águas tão límpidas que se lhe via perfeitamente o leito de areias de ouro.

O lago, que se continuava por entre os montes, vinha terminar-se no vale, e a poucas braças de um outeirinho, onde eu estava sentada debaixo de um caramanchão natural.

Não era dia nem noite; era a hora do crepúsculo.

De repente soou uma música doce e maviosa, como eu nunca tinha ouvido; e uma multidão de meninos semelhan­tes aos que eu imaginara acordada, todos eles lindíssimos, louros, muito claros e rosados, vieram com cestinhas de ro­sas nos braços dançar ao redor de mim.

A música soava sempre... sempre... e parecia que vinha do céu.

No fervor de sua dança começaram os meninos a lançar flores sobre mim; derramou-se na atmosfera um imenso perfume... deleitoso... embriagador... e a música soava sempre tão doce... tão bela, que eu me senti adormecer entre perfumes e harmonias.

Mas era um sono de encanto, no qual eu via tudo quanto se passava no vale...

Então o mais formoso daqueles meninos tirou dentre os cabelos, que eram fios de ouro, uma seta pequenina, porém muito aguda, chegou-se a mim, e rasgando-me o peito, ar­rancou-me o coração.

Eu não senti dor, nem correu sangue; a ferida de meu peito fechou-se de repente a um beijo que nela deu o me­nino; e não ficou cicatriz.

A música cessou imediatamente, esvaeceram-se de súbito os perfumes; os meninos bateram palmas e soltaram grandes risadas, e eu, despertando ao ruído delas, comecei a chorar muito por ver o cruel roubador levar o meu coração.

A poucos passos de mim o menino cavou a terra com a seta, lançou na cova que fez, o meu coração, e cobriu-o com a mesma terra que havia tirado.

E os outros que me viam chorar muito, vieram com as mãozinhas aparar minhas lágrimas, e foram com elas regar o meu coração que estava plantado.

Chorei ainda, e enquanto chorei eles regaram a terra; quando o meu pranto cessou vi ir nascendo um arbustinho no lugar onde o meu coração fora plantado.

Os meninos, mal perceberam que o arbustinho vinha brotando, correram para os montes batendo palmas e rindo muito.

Desceu então do céu um belo anjo, que veio voar à roda de mim, e depois pousou entre flores sobre o caramanchão. Esse anjo tinha o rosto de minha mãe, e olhava para mim tão piedoso!...

E o arbustinho foi crescendo... foi crescendo... era uma roseira. Começou a florescer e botou três botões: um do lado esquerdo, outro da parte direita, e o terceiro em cima.

Quando os botões estavam completamente desenvolvidos, eu vi um batel que vinha saindo dentre os dois montes e navegando pelo lago.

O batel era lindíssimo, as cortinas eram de franjas de ouro, as velas de seda, os marinheiros tinham cintas marchetadas de esmeraldas e diamantes; e o dono do batel vestia com riqueza tal, que só se vê em sonhos, e que não se pode ex­plicar em desperto.

O dono do batel saltou no prado, e apesar de sua magnificência, tive medo de seu olhar, que era feroz, de seu sorrir, que era medonho, de suas mãos, que eram de desmesurada grandeza.

E ele veio vindo... veio vindo... até que parou defronte da roseira.

Eu levantei a cabeça, olhei para o meu anjo, e vi-o tremendo de susto, e me olhando com expressão de dor tão profunda, que desatei a chorar desolada.

O dono do batel não quis ver as minhas lágrimas...

Com ar pretensioso, com passo firme, aproximou-se da roseira, e colheu o primeiro botão. .. era o do lado esquerdo.

Mas quando o quis levar aos lábios para beijá-lo... o botão se foi mirrando... mirrando... mirrando... até que se sumiu de todo, e se esvaiu em um sopro, que simulou um suspiro.

O meu anjo soltou um grito de prazer, e o batel e seu dono desapareceram inopinada... inexplicavelmente.

Tudo mais ficou como estava; e a roseira com os dois botões que lhe restavam.

E logo depois eu vi, não um batel, mas um carro que vinha saindo dentre os montes e navegando pelo lago.

O carro era todo de prata e puxado por grandes cavalos negros, riquissimamente ajaezados, que bufando, nadavam, como se fossem peixes. Os criados venciam em magnificên­cia e luxo aos marinheiros do batel. Outra vez riqueza e brilhantismo; mais riqueza ainda do que há pouco.

E saltou no prado o dono do carro de prata. Vinha co­berto de vestes muito ricas e muito lindas e tinha o peito cheio de brilhantes medalhas; mas apesar disso eu vi que seu olhar estava amortecido, seu rosto pálido e rugoso e suas mãos já trêmulas: era um velho.

E ele veio vindo... veio vindo... até que parou defronte da roseira.

Eu levantei a cabeça, olhei para o meu anjo e vi-o tremendo de susto e me olhando com expressão de dor tão profunda que desatei a chorar desolada.

O dono do carro de prata não quis ver as minhas lá­grimas...

Com ar também pretensioso, mas com passos mal seguros, aproximou-se da roseira e colheu o segundo botão... era o do lado direito.

Mas quando o quis levar aos lábios para beijá-lo... o botão se foi abrindo... abrindo... abrindo... as pétalas de rosa se foram uma a uma transformando em penas de mil cores, até que todo o botão se metamorfoseou em passarinho, que se escapou das mãos trêmulas do velho, e voou direito para o céu.

O meu anjo soltou um grito de prazer, e o carro e o velho desapareceram como o batel e seu dono.

Tudo mais ficou como estava. Somente a roseira é que tinha dois botões de menos.

Só restava o terceiro botão.

Veio vindo enfim por entre os dois montes e navegando pelo lago, não um batel, nem um carro de prata puxado por cavalos negros, mas uma grande cesta formada por um belo tecido de rosas, e conduzida por formosas garças que traziam suas asas brancas fora d’água.

Soou de novo a música maviosa e doce, e as garças exalaram por seus bicos aromas deleitosos... mas dessa vez eu não adormeci entre os perfumes e as harmonias.

E saltou no prado um mancebo tão bonito... tão bonito... com seus cabelos negros e ondeados, e um sorrir que era todo meiguice e ternura!... não havia nem riqueza, nem magnificência: havia graça e beleza.

E ele veio vindo... veio vindo... até que parou defronte que da roseira.

Eu levantei a cabeça, olhei para o meu anjo, e o vi como nadando entre a dúvida e a esperança, e olhando ora para mim, ora para o mancebo, com ternura tanta, que eu fiquei também ansiosa e anelante, olhando ora para o meu anjo, ora para o belo mancebo, que eu já temia ver passar sem colher o botão de rosa, que único restava.

O moço da cesta florida pareceu adivinhar minha esperança e sorriu com um sorrir tão meigo!...

Com ar gracioso e leves passos aproximou-se da roseira e colheu o terceiro botão...

Mas quando o quis levar aos lábios para beijá-lo, o botão se foi abrindo... abrindo... abrindo... até deixar patente todo o seu seio... Não havia pétalas de rosa... lá estava o meu coração...

O anjo, que tinha o rosto de minha mãe, bateu as asas, e baixando o vôo, veio beijar-me nos lábios... e voou de­pois para o céu...

E o mancebo correu a mim para beijar-me também; porém eu tive medo, muito medo desse beijo e soltando um grito... despertei.

Era dia.

Fiquei ainda uma longa hora na cama, pensando no meu sonho...

E desde então eu amo os botões de rosa sobre todas as flores; não quero nenhuma outra flor no meu cabelo. Tenho por eles uma espécie de culto. Porque sempre me parece estar vendo o meu coração encerrado em um botão de rosa.