A noite estava bela, a lua clara e brilhante e brisas suaves e frescas faziam esquecer a calma abrasadora de um dos primeiros dias de dezembro, que acabara de passar.
Um grupo de curiosos e amadores tinha-se formado defronte das janelas do "Céu cor-de-rosa" e aplaudia os cantos agradáveis que ali eram entoados.
Um velho guarda-portão estava sentado à porta do alpendre da casa feliz.
Jacó e Helena observavam de suas janelas o que se passava e o que se dizia.
Dentro do "Céu cor-de-rosa" reinava a felicidade e borbulhava o prazer. Cerca de trinta pessoas entre senhoras e homens, gozavam o serão daquela noite.
Mariana estava radiante porque defronte dela, e com os olhos embebidos em seu rosto, Henrique parecia crer-se ditoso.
Salustiano não se mostrava ressentido disso, e fazia a corte exclusivamente à "Bela Órfã".
Cândido, um pouco afastado das senhoras, não parecia alegre nem triste; ia, a pesar seu, bebendo a largos tragos o terrível veneno dalma que se bebe pelos olhos e se concentra no coração. Sem o sentir, ele ficava às vezes em êxtase, contemplando Celina do mesmo modo que pelo pensamento se prendia à vida dela inseparáve1, como a sombra de seu corpo. Longe da "Bela Órfã", receando aproximar-se, esquecia-se de si próprio em aéreas meditações; ou outras vezes despertava cruelmente sacudido pela mão espinhosa do ciúme, que lhe mostrava um jovem conversando a sós com Celina, ou sorrindo para ela.
Os sinos tocaram nove horas.
— Oh! bem, disse Mariana. Há uma hora que cantamos; deixemos descansar aqueles que nos ouviram, conversemos também.
— A comandante das moças deu a voz de — liberdade! — ao seu batalhão, disse um homem de meia-idade, que se supunha muito espirituoso.
— Então hoje não se dança aqui, d. Celina? murmurou ao ouvido da "Bela Órfã" uma interessante mocinha.
— Eu sei, d. Felícia! se você quer dançar, eu vou dizer a minha tia.
— Deus me livre!
— Mas por quê?...
— Porque aqueles senhores haviam de pensar que eu morro por dançar.
— Que tem isso? pensavam a verdade.
— Sim... sim... porém pensariam também que eu gosto de dançar por causa deles... para conversar... para ouvi-los dizer muitas coisas...
— E não é por isso?... perguntou Celina sorrindo.
— Qual?...
— Então por que é, d. Felícia?...
— Ora, é porque a gente sempre gosta de se mostrar.
— Bravo, d. Felícia, exclamou outra moça, que se sentava perto de Celina.
— Ah! você estava ouvindo, D. Mariquinhas?... pois olhe, é muito mal feito vir escutar o que se está falando em segredo...
— Obrigado pela repreensão, minha senhora, disse um mancebo que delas se aproximava nesse momento; eu a recebo, porque, na verdade, a mereço.
— Oh! não; não era a V. Sa. que eu me estava dirigindo.
— É o mesmo; talhou uma carapuça que me serve às mil maravilhas.
— Pois então sirva-se, disse Mariquinhas.
— Eu confesso que morro por saber um segredo de moça... há sempre tanta graça nos inocentes mistérios de um coração que tem só dezesseis anos!
— Ah! tornou Mariquinhas, e se o senhor soubesse então dos mistérios de um coração como o de d. Felícia, que tem só dezessete anos e meio!
— E desgraçadamente, nem ao menos nutro a esperança de poder sabê-lo um dia!
— E que mistério... era um desejo imenso de...
— D. Mariquinhas! exclamou Felícia.
— Veja como ela cora... não.... não digo. Uma coisa espantosa... que pode produzir conseqüências tão desagradáveis...
— Deveras, minha senhora?...
— O senhor é de segredo?...
— Muito.
— Pois bem: d. Felícia...
— Diga.
— Quer dançar.
O moço não pôde deixar de rir.
— Pois que pensa, minha senhora?... disse ele; mesmo isso é um mistério: quem sabe a razão por que ela quer dançar?...
— Não é por nada, interrompeu Felícia. Eu não disse, eu não desejei coisa alguma; o que me parece é que d. Mariquinhas está doida por uma contradança.
— Lá isso também é verdade...
— Pois é fácil satisfazer seus desejos; eu vou tocar.
O moço dirigiu-se ao piano.
— Ah! d. Mariquinhas! tornou Felícia; você sempre está com disposição para gracejar!...
— Mas agora não foi gracejo, foi cálculo. Eu queria dançar. Olhe, está vendo aquele moço de óculos verdes?... pediu-me uma contradança no último serão e devo pagar-lha neste...
— Como anda você tão adiantada!...
— Qual! pelo contrário, atrasada... estou carregada de dívidas... em três bailes não pago o que devo.
— Bom, lá se tocam os compassos de prevenção... d. Leocádia já está bulindo na cadeira... que maldito costume tem aquela moça!
— Coitada... é com razão. O exercício... o movimento a torna um pouco menos amarela.
As moças foram interrompidas por alguns cavalheiros que a elas se chegaram pedindo contradanças.
Mariana acabava de aproximar-se de uma janela. Salustiano foi ter com ela.
— Uma contradança... a que se vai dançar, minha senhora...
— Esta não é possível, já tenho par.
— A seguinte?...
— Também já a prometi.
— Ao mesmo cavalheiro da primeira, sem dúvida... disse sorrindo Salustiano.
— É verdade, respondeu Mariana sem hesitar.
— O sr. Henrique?...
— Ele mesmo.
— Bem, tornou Salustiano mudando de tom: hei de logo pedir-lhe um obséquio de outra ordem.
Henrique veio dar a mão a Mariana, lançando um olhar de desprezo a Salustiano, que o pagou com seu costumeiro sorrir sarcástico.
Salustiano passou ainda pelo desgosto de achar Celina engajada para lª, 2ª e 3ª contradanças; eram tantas quantas se costumavam dançar em cada serão.
A dança começou. Cândido não se tinha levantado, e conversava então com a velha Irias.
Anacleto chegou-se a eles.
— Que faz aqui, sentado e triste como um velho de setenta anos, este moço que não tem mais de vinte?...
— Estava repreendendo-o por isso, respondeu Irias. É uma cabeça cheia de teias de aranha; sabe cantar, e não se deixa ouvir; dança com graça, e o estamos vendo sentado.
— Pois ele canta?...
— Não o sabia, sr. Anacleto?...
— Disse-nos que pouco entendia de música.
— Olhem só que mentiroso! exclamou a velha: canta, e tem excelente voz.
— Minha mãe, disse Cândido, para que me há de estar comprometendo?
— Canta, sr. Anacleto: o sujeitinho canta...
— Deixe-o estar, que o tomo de agora por diante à minha conta.
Terminara a primeira quadrilha.
— Venha cá, meu caro senhor, disse Anacleto tomando o braço de Cândido, venha cá, e fique sabendo que não gosto de caras tristes em minha casa.
O velho levou o mancebo até junto de sua neta. Cândido sentiu um calafrio geral coar-lhe por todo corpo.
— Celina, disse Anacleto, apanhei este maganão em um crime: é mentiroso, é hipócrita, e tudo quanto há de mau neste mundo. Sabe cantar excelentemente, e veio aqui dizer-nos que nada sabia de música.
— É, senhor, que eu... realmente...
— Adeus, meu caro, já não creio em suas desculpas. Celina, fazes anos daqui a quatro dias; tomaremos sem dúvida chá com nossos amigos na noite desse belo dia: não queres pedir alguma coisa ao sr. Cândido?
A "Bela Órfã" entendeu o pensamento do velho, e disse ao moço:
— Peço-lhe que nessa noite nos dê o prazer de se deixar ouvir cantar.
— E agora?... responda, meu cavalheiro.
— Cantarei, minha senhora, respondeu o mancebo a tremer.
— Tinha-se formado um círculo à roda de Anacleto, Cândido e Celina.
— Bem, bem, tornou o velho esfregando as mãos; mas resta que de tua parte agradeças de antemão ao nosso mentiroso o sacrifício que vai fazer por teu respeito.
— Mas eu não sei que espécie de agradecimento...
— Sabes o que ele me dizia há pouco? que desejava ardentemente dançar contigo a próxima quadrilha...
— Senhor... balbuciou Cândido.
— Homem, não me venha com novas mentiras; fale, quer ou não quer dançar com minha neta?...
— Minha senhora, disse o mancebo dirigindo-se a Celina; ouso pedir-lhe essa graça...
A moça hesitou primeiro, e enfim respondeu:
— Com muito prazer.
Depois, levantando os olhos, viu diante dela Salustiano, a quem um quarto de hora antes tinha negado a mesma quadrilha que acabava de conceder a Cândido.
Desfez-se o círculo que estava formado defronte de Celina. Salustiano retirou-se sem dirigir-lhe uma só palavra. As moças ficaram de novo livres da companhia dos homens.
— D. Celina, perguntou Felícia, por que é que aquele moço tremia tanto quando te falava?...
— Eu sei! é talvez por ser naturalmente acanhado.
— Restava sabermos se ele tremeria do mesmo modo falando a qualquer de nós outras, acudiu a maliciosa Mariquinhas.
— Por quê?...
— Porque se não tremesse, tiraríamos uma bela conseqüência.
— Ma1iciosa!... disse Felícia, enquanto Celina fazia-se um pouco corada.
O piano chamou os pares à sala.
— Nunca houve piano que tocasse mais a propósito, tornou Mariquinhas. Celina estava me contando, sem querer, umas poucas de coisas no rubor de suas faces.
— Ah! d. Mariquinhas!...
— Cuidado comigo... não hei de tirar os olhos de você, enquanto dançamos.
Dançou-se a segunda quadrilha.
Era a primeira vez que Cândido dançava ao lado de Celina. Uma mistura de prazer e de acanhamento, de satisfação imensa e de como dúvida do gosto de tão grande ventura, dava ao rosto do mancebo uma expressão nova, bela e interessante.
Acrescente-se a isso a perturbação de Celina, que se sentia devorada pelos olhos curiosos de Mariquinhas, e conceber-se-á a sensação que experimentavam os dois quando suas mãos se encontravam, quando se viam dançando defronte um do outro, esses dois jovens, uns dos quais não sabia dizer se amava, e o outro não compreendia ainda talvez o que era amor.
Em silêncio ambos, debalde uma e outra vez tentou Cândido encetar alguma conversação. Tudo se terminava em breves monossílabos pronunciados a tremer por qualquer dos dois.
A segunda quadrilha terminou; e no correr da terceira teve princípio um episódio que ocupou por alguns momentos a atenção da sociedade.
Em um passo mais rápido que Celina devia fazer, caiu-lhe do cabelo um botão de rosa, que foi a tempo apanhado pelo seu cavalheiro de vis-à-vis.
Terminada a quadrilha, o cavalheiro dirigiu-se à "Bela Órfã", e mostrando-lhe o botão de rosa, disse:
— Na Inglaterra, minha senhora, os grandes fidalgos quando jogam, desprezam o dinheiro que lhes cai no chão, e que enfim fica pertencendo ao criado mais feliz que primeiro o apanha. Levantei este botão de rosa que lhe caiu quando dançava; e dar-me-ei por extremamente venturoso se dispensar a flor que rolou a seus pés.
— Oh! é impossível! exclamou Celina com voz apaixonada; o meu botão de rosa!.. não... de modo nenhum...
— Devo crer que a minha pouca ventura...
— Não deve crer em nada... pouco ou muito feliz, teria sempre de ouvir a mesma coisa.
— Ah! compreendo: não quer dar flores a moço
— O meu botão de rosa?... nem a moças.
— A sua melhor amiga...
— Não conseguiria arrancar-mo.
— Portanto este botão de rosa...
— É a flor... do meu coração.
— Feliz a mão que da roseira o colheu!
— Foi a minha.
— Pode ser... devo crê-lo... no entretanto preciso é que me sujeite ao sacrifício de entregar-lhe um tesouro que eu poderia guardar impunemente.
— Faria uma ação má...
— Bem, minha senhora; eis aí o seu talismã... Deus lhe conserve o valor e as virtudes.
O cavalheiro entregou o botão de rosa, talvez com má vontade, e retirou-se.
Cândido, quando viu a pequenina flor passar do peito do moço para o cabelo de Celina, sentiu entrar-lhe a vida no coração.
— Oh! bravo, d. Celina! acudiu Mariquinhas; eis aí um botão de rosa que deve encerrar o mais interessante mistério.
— É certo.
— Foi dado?
— Não; colhi-o.
— Quem plantou a roseira?...
— Não sei.
— Mas então como se explica esse ardor com que há pouco pedias o teu botão de rosa?...
— É que eu amo os botões de rosa; tenho predileção por eles, como você tem pelas violetas e d. Felícia pelos cravos brancos.
— Nada... aí há coisa.
Celina esteve algum tempo pensando, e enfim disse:
— Talvez.
— Oh! pois então conta-nos. Eu sou louca por histórias em que entrem flores.
— Porém é uma tolice de criança...
— Não faz mal... conta.
— Aqui não.
— Vamos ao toilette.
— Pois bem... vamos... vem conosco, d. Felícia.
As três moças saíram da sala.
Anacleto, que tinha podido apanhar algumas palavras do que elas acabavam de falar, chamou de parte Cândido, e levando-o para dentro consigo, disse-lhe:
— Vamos devagar... pregaremos uma peça àquelas três sujeitinhas, ouvindo contar uma história de rosas, que sem dúvida não terá pés nem cabeça, mas que enfim poderá servir para divertir-nos.
— No entanto Salustiano tinha achado ocasião de falar a sós com Mariana. Chegou-se a ela e disse:
Depois de amanhã pelas cinco horas e meia da tarde, terei a honra de visitar a V. Exa. Conversaremos durante meia hora sobre objeto tão importante, que eu tenho a certeza de que V. Exa. achará na riqueza de seu espírito meios de sobra para afastar daqui todas as pessoas que nos possam ser incômodas durante essa meia hora.
— Senhor!...
— Depois de amanhã, às cinco horas e meia da tarde.