O crime mesmo, quando parece triunfar ou poder fugir ao castigo dos homens, envolto nas sombras dos mistérios, é ainda assim mil vezes mais desgraçado do que a inocência, que sucumbe.

A inocência é sempre bela, sempre pura, sempre anjo aos olhos de Deus, que vê tudo, que vê o bem e o mal. A inocência espezinhada pelos homens, ou com nobreza os despreza, ou chora doída de suas injustiças; mas seu coração se volta para o céu, e suas esperanças voam para a eternidade. Lá em cima o juízo dos homens é nada.

A inocência é a virgem encantadora amada por Deus. Ele lhe paga cada lágrima com um triunfo. A glória que a es­pera é tanto mais subida quanto mais doloroso foi o seu martírio cá embaixo.

E o crime?...

O crime é sempre duas vezes formidavelmente castigado, sem contar com as penas e tormentos a que o podem con­denar os homens.

É castigado uma vez cá em baixo, e outras lá em cima. A sentença não tem apelação, nem na terra nem na eternidade; porque quem sentencia é o juízo seguro, justo e se­vero de Deus.

Os castigos inventados pelos homens são nada. A que se reduzem esses castigos?... aos tormentos físicos, à dor. Tornam-se ineficazes, ou por momentâneos, ou porque o hábito de os sofrer os nulifica.

O que é a forca ou a guilhotina?... Uma hora de terror, e um momento de dor. O que e a prisão com trabalhos?... Perguntai aos galés se no fim de um ano lhes pesam os ferros como no primeiro dia; se no fim de dez anos os seus sofrimentos são os do primeiro ano?...

E depois, contra a polícia e vigilância dos homens tem o crime os ermos e as noites; e tem mil vezes, para vergonha da humanidade, uma proteção escandalosa, que o torna im­pune, embora em casos tais essa proteção deva ser conside­rada um outro crime... igual talvez ao primeiro.

Mas, graças a Deus, aí está sobre os homens, vigilante sempre, o olhar luminoso da Providência.

Não há ermos para esse olhar; os bosques sombrios, as cavernas, as altas penedias aparecem diante dele lisos todos como a superfície de um quieto lago.

Não há noite, não há trevas, não há mistério: esse olhar é o sol

Não há proteção possível; perante o alto juízo, quem protege um delinqüente é o delinqüente mesmo com o arrependimento sincero e profundo; com a prática de nobres e puras ações.

E esse juiz severo e justo castiga duas vezes. Cá... e lá. E os tormentos não são destinados ao corpo. O pó fica desprezado, quem sofre é a alma.

O juiz severo, justo e onipotente castiga lá... Em sua infinita sabedoria — ele sabe como. — Nós, míseros insetos diante dele, não podemos compreender esse castigar da oni­potência.

E cá, ele criou na alma do homem a consciência. A consciência é terrível!... a sabedoria de Deus fez cada homem juiz de si mesmo, e cada criminoso algoz de si próprio.

A consciência castiga com os remorsos. O corpo continua sempre desprezado. Os tormentos são ainda e sempre votados ao princípio que peca.

O ladrão não dorme o sono que regenera as forças; dorme um sono que fatiga; porque ele desperta cem vezes ouvindo o tinir do ouro que roubou, e outras tantas vezes vendo diante de si a imagem do carrasco.

O assassino ainda mais. Esse homem que, mercê da noite e da solidão, matou impunemente o seu semelhante, que enterrou seu cadáver às escondidas no deserto, e que vos parece viver sossegado e impune porque a justiça humana ignora o seu crime; esse homem... sofre mais do que sofreu sua vítima no momento terrível, em que viu erguido sobre o seu peito o punhal mortífico. Esse homem vela sempre... de dia e de noite um fantasma o persegue e maldiz; sua som­bra tornou-se um espectro. Ele vê a cada passo a sepultura que abriu; vê o cadáver que enterrou; escuta o som do soquete com que calcou a terra... E vê erguendo-se da cova vingativo e formidável o esqueleto do morto.

Sabes quem é o pintor que prepara esse quadro formidável?... É a imaginação escravizada pelos remorsos. Os remorsos não são outra coisa mais do que o castigo que Deus impõe ao crime aqui na terra.

A infinita sabedoria de Deus quis que o homem se punisse a si mesmo; e o homem, com efeito, a si próprio se atormenta com esse aparelho de horríveis torturas, a que se dá o nome de remorsos.

A desgraçada filha de Anacleto estava sendo a prova viva desta verdade eterna.

Mariana era uma mulher enormemente criminosa. Não tinha ainda comparecido como ré diante de nenhum tribu­nal da terra; mas o castigo de Deus torturava a mísera.

Tinha remorsos.

Como havia essa mulher sido levada à perpetração de um crime horroroso? Ela, filha de um homem bom, irmã de um homem virtuoso, tendo diante dos olhos constantes exem­plos de piedade e religião?... Como?... Ah! não pre­cisais ir pedir uma resposta ao péssimo da natureza humana, com que erradamente pretendeis explicar os efeitos das paixões que não foram combatidos desde o berço.

Quereis saber por que Mariana ousou tanto?... Per­guntai à vaidade.

A filha de Anacleto, lindo anjinho na infância, encantadora moça depois, bela senhora ainda então, cheia de graças e de espírito, havia sido criada sempre no meio de uma atmosfera de fatais lisonjas. Respirou um ar de mentiras desde o princípio. Com esse ar habituaram-se os seus pulmões; a verdade que fosse um pouco menos lisonjeira seria capaz de sufocá-la. Objeto de um amor extremoso e cego da parte de seus parentes; objeto de culto e de adoração dos estranhos, Mariana julgou-se a princesa da formosura, empunhou orgulhosa o cetro da beleza; ergueu a cabeça acima de todas as suas contemporâneas, e, cheia de vaidade, queria fitos em si todos os olhos, absortos diante dela todos os homens, e curvos a seus pés todos os amores.

Perder essa posição seria morrer.

Mas ela amou. Amou, e foi fraca. Amou, e um dia viu que o seu trono ia ser despedaçado; que o cetro ia escapar de suas mãos; que os cultos e as adorações tinham de desa­parecer para ela; que ao muito ela seria daí por diante objeto de comiseração e piedade; porque enfim, ela tinha amado e sido fraca; tinha murchado em seu rosto a mais bela das flores, a flor da inocência, e a natureza falava em voz alta dentro de seu seio...

A mísera lembrou-se então desse mundo encantador que a adorava como rainha, e que bem depressa se ergueria rebelado e furioso para arrancar-lhe o cetro de rosas...

Que partido havia a tomar?

Um meio lhe sugeria o espírito; um meio que a livrava das humilhações. Era um meio extremo... e desesperado; era o suicídio. Mas o mundo se mostrava a seus olhos tão belo... tão feiticeiro!... e ela tinha apenas quinze anos de idade!... qual é a moça de quinze anos que não ama loucamente um mundo que sorri de joelhos a seus pés? morrer, não. Aos quinze anos Mariana não se achou com bastante força para matar-se.

Que outro partido restava?... A resignação.

Ainda há pouco, tinha falado o amor do mundo para repelir a idéia da morte. Agora, contra a idéia da resignação, ergueu-se o amor de si mesma levado a excesso; ergueu-se a vaidade. Resignar-se a quê?... a passar de rainha a vassala?... não ganhar nunca mais um só desses olhares ardentes e puros que corações anelantes dardejam sobre o rosto da inocência?... resignar-se-ia, quando passasse pálida e dolorosa, ouvir dizer — coitada! — quando ela estava acos­tumada a escutar — formosa!... oh! era muito para Mariana. A mulher vaidosa escolheria antes a morte que a resignação.

E com efeito, a filha de Anacleto não se quis resignar ao triste papel que lhe marcavam as conseqüências do seu erro. Primeiro esperou que o homem que a iludira a salvasse; quando não pôde mais esperar nada desse homem, esperou do tempo... ela mesma não sabia o quê; mas esperava sempre.

Quando porém o tempo correu tanto que tinha já corrido bastante... Mariana despertou assombrada ante o espectro sinistro de uma desgraça iminente.

Falou outra vez a morte... falou outra vez a vaidade... a resignação ficou sempre vencida. As paixões triunfaram sempre.

A mísera teve um dia de desespero, de febre... um dos mais fatais demônios que tentam perder o coração humano, a vaidade, soprou um pensamento horroroso... abominável na alma da desgraçada mulher; esse pensamento era uma infâmia... era um crime... mas realizou-se.

Foi um infanticídio.



Mariana era sempre rainha.

O segredo de sua honra tinha escapado aos olhos do mundo. Os homens não podiam julgá-la criminosa...

Mas o olhar de Deus estava sobre ela terrível e severo.

Mas a lei eterna da Onipotência se estava cumprindo à risca. A delinqüente se punia a si mesma; a mãe desnaturada era o algoz de si própria.

Mariana tinha remorsos.

No movimento belo, encantado, estrepitoso de um baile, quando tudo era prazer, perfumes e flores; ao som dos instrumentos, que executavam a música viva de uma valsa; ao som das doces lisonjas que dez cavalheiros murmuravam a seus ouvidos, Mariana via a imagem de uma criança recém-nascida, que jazia morta no meio da sala. Ouvia a natureza exalando um gemido pungente... e ouvia maldições e pragas, que mil bocas invisíveis estavam proferindo con­tra ela...

Depois vinha um menino louro, travesso e belo brincar a seu lado... então ela se lembrava!... e essa lembrança era terrível; era um punhal de lâmina envenenada... era o cas­tigo de Deus.

A sua vida foi sempre assim, sempre triste e fria dentro do coração, embora os lábios sorrissem obedecendo ainda à vaidade, que os mandava sorrir. Era uma vida partida em duas bem distintas uma da outra: uma, a vida exterior, que era a mentira, que lhe brincava no rosto; outra, a vida interior, que era a verdade, que lhe roía o coração. Resumidas e combinadas ambas essas vidas, davam em resultado a pior de todas: a vida de desgosto de si mesma.

Ao menos, porém, estava no meio de tudo isso, triunfando, a sua vaidade.

Ela era sempre rainha.

Mas uma noite... em uma dessas noites de festa, de ardor, de prazeres fugitivos, um mancebo se apresentou junto dela, deu-lhe o braço, e aproveitando um passeio, pronunciou a seus ouvidos duas palavras somente.

O terrível mancebo sabia tudo!...

A rainha caiu do seu trono... uma palavra só daquele mancebo a podia tornar objeto de sarcasmos e de maldições...

E a vaidade ainda triunfou. Mariana ainda se não quis resignar; e para continuar a ser incensada naquele mundo, que era tudo para ela, sujeitou-se a representar daí por diante o triste papel de escrava de Salustiano.

O resultado de tudo isto já não se ignora. Mariana estava sofrendo também o castigo de seu crime, imposto pelo poder de um homem.

E o seu destino tocava um terrível extremo. A hora fatal batia.



A desgraçada filha de Anacleto havia ficado em seu quarto pasma e aterrada logo depois que seu pai a deixou só.

Agora é o começo da tarde.

Mariana havia descido, e achava-se sentada no sofá, na sala de visitas do "Céu cor-de-rosa".

Tinha vindo esperar Salustiano. No entretanto meditava.

O aspecto da triste viúva trazia em si um não sei quê de sinistro. Seus supercílios, bastos e negros, estavam dolorosamente enrugados de modo que quase se confundiam um com o outro. No entretanto, e apesar disso, seus olhos brilhavam, mas não com o fogo da vida... todas as suas feições se achavam contraídas, e quando ela falava, notava-se em sua voz alguma coisa que se não podia explicar, mas que produzia uma impressão sobremodo desagradável.

Estava toda vestida de branco, mas trazia cingindo-lhe a cintura uma fita negra, cujas pontas caíam até o chão. Essa fita era lúgubre.

Conservou-se muito tempo na mesma posição, imóvel e indiferente a tudo. Parecia haver medido perfeitamente o fundo do abismo aberto debaixo de seus pés, e como que penetrada da certeza de não poder salvar-se dele. Não es­tava sossegada, estava inerte.

Mariana tinha tomado todas as medidas para não ser incomodada por testemunhas importunas naquelas horas. Seu pai deveria voltar bem tarde; e a rogos dela, Celina prometera não descer ao primeiro andar senão quando fosse chamada.

E, portanto, ela esperava somente uma pessoa; esperava Salustiano... a morte.

Depois de algum tempo de sinistra imobilidade e mudez, a viúva levantou a cabeça que tinha um pouco inclinada, e, como se falasse a alguém, murmurou com voz pausada:

— Eu lhe disse um dia, que ele se não lembrava de que se os homens sabem matar, as mulheres sabem morrer.

Sorriu terrivelmente, e disse:

— Provar-lhe-ei.

Sorriu de novo, e ainda mais terrivelmente; depois tirou do seio um pequeno embrulho de papel; abriu-o com mão firme e olhou; o que havia dentro era um pó branco.

— Arsênico!... balbuciou a mísera com ironia amarga e despedaçadora: arsênico!... o único amigo que nesta crise me acompanha e me salva é um pouco de arsênico!...

Guardou de novo o embrulho no seio, e depois prosseguiu:

— Vejamos se ainda me lembro do que li.

Ela pareceu recordar-se de alguma coisa, e foi repetindo compassadamente.

— Sabor acerbo e metálico... constrição de garganta... soluços... síncopes... resfriamento do corpo... sede... vômitos... prostração... delírio... convulsões... morte!...

Passado um instante perguntou a si mesma:

— E depois?!

E respondeu a si mesma com um tom horrivelmente lú­gubre:

— Depois, a eternidade.

E estremeceu da cabeça até os pés.

Ficou por algum tempo muda, e como que aterrada; mas enfim começou a dar um livre curso a seus pensamentos.

— O suicídio!... o suicídio!... que quer dizer o suicídio? Quer dizer que um homem ou uma mulher tem horror de si mesmo, julga-se demais na terra, acusa-se perante si pró­prio, sentencia-se, condena-se e executa-se!... Oh! tenho eu o direito de matar-me?... Dizem que não; mas o mundo não tem também o direito de cuspir-me no rosto.

— Mas a religião proscreve o suicídio... e o que faço eu?... troco um martírio horrível por outro mais horrível ainda... troco os martírios da carne pelos tormentos da alma... troco o mundo pelo inferno!

A mísera soltou uma risada nervosa.

— Ainda bem! prosseguiu; ainda bem que o sei... o inferno me pertence.

O rosto de Mariana tomou uma expressão medonha... ela murmurou no meio de uma dilatação de lábios, que não era riso, que era quase uma convulsão horrorosa:

— Eu sou um demônio... eu matei meu filho!...

Respirou dolorosamente e continuou:

— O suicídio! oh! sim! este é o meu segundo suicídio; pois então? não matei eu a carne de minha carne?... não derramei o sangue do meu sangue?... sim; esta é a segunda vez que eu mato; ainda bem que é a derradeira. E eu devo realmente desaparecer do mundo; onde me havia esconder amanhã? entre os homens?... quem?... eu?... a infanticida?... oh! os homens lançariam sobre mim os cães... eu não sou da sua espécie... eu não tenho alma, ou então tenho alma negra!... deveria ir ocultar-me nas brenhas?... oh! também não... lá os tigres amam seus filhos; eu sou mais feroz que os tigres.

"O que me resta é bem claro; neste mundo resta-me um sepulcro... no outro espera-me o inferno.

"Este mundo dar-me-á mais do que devia; porque o ca­dáver da mãe que mata seu filho há de tornar estéril a terra onde se enterrar. O outro mundo dar-me-á o mais que pode... o que eu mereço.

"Ah! eu me amaldiçôo a mim mesma!

"É preciso que eu morra; sim... esta mão, que deveria estar mirrada, ia tocar a destra de Henrique... a mão pura de um mancebo honesto e honrado; oh! o crime é conta­gioso... eu ia infectá-lo... o meu amor é hediondo; eu sou para as feras mais sanguinárias o que as feras mais sanguinárias são para os homens.

"É preciso que eu morra.

"E meu pai?!"

A mísera arrancou das entranhas um gemido pungentíssimo; desenhava-se a seus olhos a figura dolorosa do pobre velho, morrendo, a chorar ajoelhado sobre sua cova.

— Meu Deus! meu Deus! exclamou, de joelhos e com as mãos levantadas. Meu Deus! não me perdoeis embora os horríveis pecados, que tenho em minha nefanda vida come­tido; mas perdoai-me, senhor da minha alma, perdoai-me as lágrimas que meu pai tem chorado e vai ainda chorar por mim; perdoai-me, meu Deus, os desgostos de que tenho en­chido aquele amoroso coração! meu Deus! meu Senhor! valei a meu pai na dor imensa que ele vai sofrer!

Depois ela ergueu-se, e como se devesse estar vagando de tormento em tormento, como se tivesse antes de chegar o termo fatal, a morte, de passar por mil torturas, Mariana apertou as mãos contra o seio, e murmurou chorando:

— E meu filho?...

E prosseguiu por entre soluços:

— Meu filho, que hoje deveria ser um belo mancebo, que me levaria pelo braço à igreja e aos passeios, que me consolaria em minhas aflições, que me defenderia... que daria a vida por sua mãe!... oh! para que fui eu fazer-me a mais infeliz de todas as criaturas?!

"Meu filho! meu querido inocente!... meu belo anjinho! ah! se ele vivesse, ver-me-ia eu hoje reduzida a tanta miséria?... louca... criminosa que fui; troquei a vida de meu filho por um pouco de arsênico! crime duas vezes... demônio sempre!

E apertando a cabeça com as mãos, a mísera, tendo os cabelos já caídos desordenadamente, começou a vagar a largos passos pela sala, exclamando de um modo horroroso:

— Eu o matei! eu o matei!

Finalmente pareceu serenar. Veio sentar-se de novo no sofá; mas quem lhe visse o riso estúpido, que lhe enfeava os lábios, quem lhe notasse os movimentos sucessivos, rápidos e inconseqüentes, compreenderia que um excesso de dor punha em desarranjo as idéias daquela infeliz mulher.

Ela sentou-se, pois, e daí a pouco com uma espécie de alegria que era capaz de fazer chorar, disse baixinho:

— Ninguém o sabe... ninguém o sabe; só ele.. o mau; porém ele me verá morrer e guardará segredo; ainda bem... ainda bem... ninguém o sabe.

— Eu o sei, senhora! disse uma voz rouca.

Mariana ergueu-se convulsa, lançou-se sobre a porta da sala e perguntou desesperada:

— Quem está aí?

A porta da sala abriu-se.

Apareceu o velho Rodrigues.