Mariana, com os cabelos eriçados e os braços estendedidos para diante, recuou espavorida, como se lhe tivesse aparecido um espectro.

O velho Rodrigues entrou vagaroso e sossegado.

— Quem é?... perguntou a viúva aterrada. Quem é o senhor?

— Sou o guarda-portão do "Céu cor-de-rosa", senhora.

— E ouviu tudo?... balbuciou a mísera.

— Não, respondeu o velho. Eu não precisava ouvir nada. Desde vinte e um anos que eu sei tudo.

Mariana deixou-se cair quase desfalecida sobre o sofá.

Rodrigues vivamente comovido aproximou-se da infeliz mulher, e repetiu:

— Eu sei tudo,

A viúva sacudiu dolorosamente a cabeça, e murmurou

— Não... não... é impossível!

O velho, em pé diante de Mariana, descansou a mão sobre o encosto da cadeira e disse:

— Mulher! tens sofrido muito.

— Oh! sim!...

— Vaidosa, tu és ferida na tua vaidade.

— Oh!... sim!...

— Rainha, tu te tornaste escrava.

— Oh!... sim!..

— Caráter forte, intrépido, e até insolente, tu te rebaixas hoje, tu te revolves no pó, tu tremes de palavras que se di­zem em segredo.

— É verdade!

— Mulher destemida, tu és hoje a mais covarde entre todas.

— É certo.

— Tão covarde que te queres despojar da vida!...

— Oh!...

— Cristã, tu olvidas as leis de Cristo!

— Oh!...

— Aí, no teu seio, tu escondes um instrumento de morte.

— Senhor!...

— Eu tinha os olhos sobre ti, mulher; eu vi tudo. E sabes o que te acovarda?... sabes o que te leva ao desespero? sabes o que te empurra para o túmulo? oh! tu o sabes, tu o sentes... é a consciência do crime.

— Meu Deus!..

— Não há véu bastante denso para esconder de todo os delitos. Tarde ou cedo... tudo se descobre; e muitas vezes um homem que cometeu um crime abominável, e que se julga impune, porque acredita que todos ignoram a ação nefanda que praticou, vai passando pela multidão com a cabeça levantada, sem saber que outro está apontando para ele e dizendo: "Ali vai um malvado!"

— Oh! é verdade!

— Mulher, desde muito que eu sei a tua história. Eu a sei mesmo muito melhor do que tu; vou repetir-ta... escuta.

— Não... não...

— É preciso que me ouças; quem sabe se dentro em pouco não estarás de joelhos a meus pés? escuta.

Mariana escutou com o rosto abrigado entre suas duas mãos.

O velho Rodrigues começou:

— No fim do ano de 1822, a cidade do Rio de Janeiro vivia a vida do entusiasmo e das festas; a independência estava proclamada, os ferros coloniais tinham sido quebrados com desprezo; o congresso nacional, a assembléia constituinte ia em breve reunir-se, e trabalhar na execução da grande obra; levantar o majestoso monumento. O povo entusiasta da liberdade festejava a liberdade; os saraus seguiram-se uns aos outros; o prazer estava em toda a parte.

Mariana exalou, involuntariamente talvez, um suspiro de saudade.

— E no meio de mil formosas donzelas, que davam vida a essas festas, havia uma jovem senhora, uma moça que acabava de sair da infância, e que fazia o orgulho das sociedades e o martírio das outras moças.

Mariana sentiu apertar-se-lhe o coração.

— Era uma jovem extrema e perigosamente encantadora; era morena, tinha os cabelos e os olhos negros e brilhantes, e o rosto cheio de viveza e malícia, o pescoço garboso como o de um cisne. E toda ela era bem feita; formosa e bem feita, que arrebatava. E tinha um olhar magnífico, fixo e ardente como o do tigre, um sorrir meigo e carinhoso que enfeitiçava; uma voz harmoniosa e tocante, e, finalmente, um andar que provocava. Era uma mulher perigosa e terrível... era capaz de ser o anjo da salvação, ou o demônio da perdição de um homem. Essa mulher imensamente encantadora chamava-se Mariana.

E Mariana suspirou de novo.

— Objeto de todas as atenções, os mancebos a rodeavam e festejavam de mil modos; os pais davam parabéns ao pai da feliz moça; e as moças a invejavam; e as casadas tinham os olhos fitos em seus maridos por causa dela; e as mães a malqueriam por causa de suas filhas; porém Mariana, orgulhosa de seus encantos, passeava por entre aquelas senhoras, e por entre todos aqueles homens, como o sol que faz o seu giro no espaço, escurecendo as estrelas e espalhando sua luz por toda a parte.

E a viúva suspirou ainda uma vez.

— Ídolo de tantos, ídolo de todos os homens pelo menos, a indiferença de um era insulto para essa moça tão bela como vaidosa; era um insulto de que ela sabia vingar-se, trabalhando por prender maniatado ao seu carro o insolente que se esquecera de vir queimar incenso aos pés da princesa das festas. Essa moça queria escravos adoradores, e presunçosa aceitava todos esses cultos, concedendo às vezes um olhar a este, um sorriso àquele, uma palavra meiga àquele outro, mas não dando o seu amor a nenhum.

— Foi assim, murmurou a infeliz.

— Todavia apareceu nas sociedades um homem que não se lembrou e correr aos pés de Mariana, não era uma criança, nem um velho; ninguém lhe daria menos de vinte e seis anos nem mais de trinta; estava livre, tinha coração; e portanto devia pretender agradar à bela moça; esse homem não curou disso. Melancólico e abatido, sempre vestido de luto, parecia tão ocupado com suas mágoas passadas, que não tinha tempo de admirar a beleza do dia. Esse foi a princípio julgado uma fera bravia por Mariana, e portanto indigno de suas costumadas vinganças; depois, ela mudou de opinião; entendeu que era um montanhês mal-educado; depois acreditou-o insolente e orgulhoso; e depois...

— Provoquei-o!... balbuciou Mariana.

— Provocou-o, repetiu o velho. Leandro (era o nome desse homem) despertou às provocações da bela moça; viu... viu então, e observou pela vez primeira esse dilúvio de encantos e de graças, que a natureza tinha acumulado nessa mulher, e não pôde resistir à necessidade de admirá-la. O amor tinha algum tempo antes aberto no coração de Leandro profundas feridas, que ainda não haviam cicatrizado; e pois, ele fugiu de Mariana como de um perigo, de uma tentação, de um encanto insidioso.

— Ofendeu a minha vaidade!

— Sim, ofendeu a vaidade da mulher altiva; e ela jurou ser, a todo o custo, dona daquele coração. Desde o momento em que concebeu um tal propósito, Mariana esqueceu todos os seus antigos adoradores, e, sem o pensar, queimou incenso por sua vez aos pés de um homem...

— Amei-o!

— Sim; a vaidade de Mariana fé-la amar a Leandro. Todos os meios de sedução de que ela podia dispor foram postos em campo... o homem não resistiu; Mariana e Leandro amaram-se.

— Oh! foi assim mesmo!

— À primeira hora de declaração do amor, seguiram-se dias de embriaguez e de felicidade inconcebível, e seguiu-se uma noite de paixão delirante... de prazer feroz...

— Oh! basta.

— Teve lugar em um dos arrabaldes da corte uma brilhante festa campestre; havia um sarau no meio das flores... um jardim iluminado... um lago cercado de luzes... um bosque de arbustos floridos adiante... encanto em toda a parte. Leandro e Mariana acharam-se presentes à festa: dançaram juntos, e foram juntos passear pelo jardim. Esqueceram o mundo e os homens... lembravam-se unicamente de seu amor... e primeiro vagaram por entre as flores... depois conversaram espelhando-se nas águas sossegadas do lago... e depois entraram no bosque...

— Oh!

— O interior do bosque era sombrio; fora soava a música terna e maviosa; dentro exalavam-se embriagadores perfumes; mas... outra vez o bosque era sombrio... senhora! Leandro e Mariana perderam-se no bosque.

— Perderam-se!... balbuciou dolorosamente a viúva.

— Quando voltaram, para de novo tomar parte na festa, Mariana estava pálida, e Leandro mais que nunca apaixonado.

— Ele sabe tudo! disse a pobre mulher.

— No dia seguinte, prosseguiu o velho, Leandro foi visitar o pai de Mariana, e pediu-lhe a mão da bela moça; o casamento foi ajustado; deveria celebrar-se daí a um mês. No entretanto Leandro e Anacleto ligaram-se, como bons amigos.

— Ah!... por bem pouco tempo!

— É verdade; a intolerância política veio logo separá-los. Com efeito, o ministério da independência, o gabinete Andrada acabava de cair; homens acusados de simpatia pelo antigo sistema subiram ao poder; a população dividiu-se em dois campos inimigos, e a exaltação dominou em ambos. Anacleto extremava-se defendendo as velhas idéias, Leandro representava as novas, que pouco antes haviam triunfado. Um dia o velho e o moço encontraram-se defronte um do outro em completo antagonismo; o exaltamento de ambos inspirou-lhes palavras desabridas, e o pai de Mariana, estendendo o braço, mostrou ao noivo de sua filha a porta por onde devia sair para não tornar nunca mais à sua casa; ficaram inimigos irreconciliáveis.

— Oh! foi assim!

— Anacleto ordenou a sua filha que esquecesse para sempre o feroz republicano; e a desgraçada, que já não tinha o direito de esquecê-lo, não teve ânimo de cair aos pés de seu pai e de confessar-lhe que havia cometido um erro, e que sentia fortemente as conseqüências desse erro. Mais ainda; Anacleto fez-se perseguidor de Leandro, que se viu obrigado a viver oculto durante alguns meses dessa época tão calamitosa. No entretanto, senhora, tinham chegado do campo dois amigos de Leandro, dois amigos que não hesitaram em dar a vida por ele; o infeliz abriu-lhes o seu coração... contou-lhes tudo; e João e Rodrigues, os dois amigos, tomaram sobre seus ombros o encargo de observar Mariana, de velar por ela...

Mariana levantou um pouco a cabeça.

— Como lamentavas tu, mulher vaidosa, a desgraça do homem que te amava?... como choravas tu, mulher imprevidente e louca, a tua própria desgraça?... alegre e festiva, tu te embriagavas de novo com os prazeres da corte... os saraus... os passeios... a vida de loucuras continuava sempre!... parecias até esquecida de ti mesma. Ah! sim! mulher, a tua cabeça não se lembrava de teu seio.

Mariana tornou a esconder o rosto entre as mãos,

— O teu viver exasperava o infeliz Leandro, que não podia estar a teu lado, e que, escondido, via-te apenas pelos olhos de seus dois amigos. Ele compreendeu que não serias nunca uma esposa extremosa e devotada em corpo e alma a seu marido; e todavia o pensamento único que o ocupava, a idéia que lhe roubava o sono, era a dívida imensa que te ficara devendo. Suspirava pela liberdade para salvar-te; sabendo que sorrias no mundo, que sorrias, mulher, tu que devias chorar, o infeliz chorava em dobro... chorava por ti... e por si.

Mariana não disse nada; conhecia-se porém que estava sofrendo muito.

— No entretanto, prosseguiu o velho Rodrigues, o tempo corria... as perseguições continuavam, a assembléia constituinte tinha sido dissolvida... os mais extremados patriotas deportados. Leandro não podia ainda aparecer. Foi então que soubemos que Mariana havia deixado a corte para passar algum tempo com uma velha parenta estabelecida na roça. Compreendemos o fim da viagem, e um dos amigos de Leandro, eu, senhora, fui encarregado de seguir Mariana. Compenetrei-me da delicadeza de minha missão, e, decidido a tudo arrostar, tive uma conferência particular com a ve­lha parenta da amante de Leandro.

— Basta! balbuciou Mariana; vejo que nada ignora... nem do que falta... mas basta.

Sorriu tristemente o velho, e prosseguiu:

— Rodrigues e a velha parenta deram-se as mãos, e velaram de comum acordo; e queres saber, mulher, qual foi o primeiro resultado dessa vigilância?.. foi descobrir-se que havia em uma das gavetas do toucador de Mariana um frasquinho cheio de um líquido sinistro... a décima parte desse líquido contido no frasquinho sobejava para afogar uma criança... e a mãe dessa criança também.

— Oh!...

— Pois, passado um mês, Mariana fez a sua primeira experiência; bebeu a décima parte daquele líquido, e, contra sua expectativa, passou às mil maravilhas.

— Senhor...

— Passado outro mês... segunda tentativa; e o mesmo resultado ainda...

— Então...

— Ah! o outro mês era realmente para temer-se. A mulher louca e vaidosa empunhou o frasquinho, levou-o aos lábios, e esvaziou-o todo. Devia ser a morte o que ela tinha bebido.

— Meu Deus!...

— Ao anoitecer... dores... ânsias horríveis... no fim de algumas horas perda completa de sentidos... ficou como morta.

— Oh!... por que não morri, meu Deus?!

— Senhora, quando aquela mulher abriu outra vez os olhos, a natureza falou antes da vaidade. Ela abriu os olhos e exclamou com dor imensa: — meu filho!... — e a velha parenta, que a pouca distância a observava tristemente, respondeu: — nasceu morto.

— Ah!...

— Porém no dia seguinte, às onze horas da noite, senhora, a borrasca ribombava... a chuva caía... os elementos estavam desenfreados... e um homem envolvido em longa capa negra foi bater à porta de uma pobre casa na cidade do Rio de Janeiro. Dentro dessa casa estavam rezando aos pés de Nossa Senhora das Dores uma mulher velha e uma escrava. A porta foi aberta; o homem entrou, lançou a capa fora de seus ombros, e em nome da Santíssima Virgem Mãe de Deus, aquela mulher recebeu e adotou uma criança recém-nascida.

— E essa criança?... exclamou Mariana com um grito desesperado.

— Era teu filho, Mariana!

A viúva soltou um brado arrancado do âmago do coração, e caiu aos pés do velho Rodrigues.

— O licor do sinistro frasquinho havia sido trocado.

— Meu filho!... meu filho!... bradava a pobre senhora.

— Mas desde que Leandro soube que a alma de Mariana concebera o horrível pensamento de um infanticídio, e tratara de realizá-lo, aborreceu-a tanto quanto a havia amado.

— E meu filho?... onde está meu filho?... perguntava Mariana desesperadamente.

— Essa criança foi criada com desvelo e ternura; nada lhe faltou nunca... ao sair da infância partiu para a Europa...

— Educava-se lá quando seu pai morreu...

— E meu filho?

— Na véspera do dia de sua morte, Leandro fez sair todos de seu quarto, e ficou só com seus dois amigos. "João, Rodrigues, eu vou deixar-vos o meu filho. Eu podia fazer testamento, e reconhecer por meu filho esse pobre inocente, que ambos conheceis. Mas ele pode morrer antes de chegar à idade em que deverá receber a herança que lhe compete, e eu teria infrutiferamente publicado um erro de minha mocidade, e dado assim a conhecer a uma mãe desnaturada o filho, que ela pensa ter assassinado. Pensei melhor, quanto a mim." Leandro mandou-nos abrir na gaveta e tirar dela um papel que designou, uma carta que estava fechada. "Eis aqui, continuou ele, uma carta que fareis chegar cautelosamente às mãos da filha de Anacleto. Vai aí dentro toda a nossa correspondência do tempo de amor e de esperança. Agora este papel, meus amigos, é a última prova que vos dou da minha amizade. Este papel é o escrito de reconhecimento de meu filho, que vós ides assinar como testemunhas, guardar para depositar em suas mãos, quando ele fizer vinte e um anos." João e eu assinamos e guardamos então o escrito de reconhecimento de teu filho, mulher.

— Oh! exclamou Mariana; mas que me importa isso?... que tenho eu com essa história? ouviu, senhor, eu quero meu filho!

— Leandro morreu, senhora, continuou Rodrigues sem atender a Mariana; e ficaram seus dois amigos velando sempre sobre o pobre moço. Ele voltou da Europa, e eu tive o pensamento de trazê-lo ao teto em que morava a sua mãe.

— Oh! sim!... sim!... disse a viúva com as mãos postas.

— Para consegui-lo vim aqui pedir, como um pobre velho sem meios, o lugar de guarda-portão do "Céu cor-de-rosa. Dali, daquele alpendre, velei por teu filho, mulher! dali, daquele alpendre, concebi o projeto de trazê-lo para junto de sua mãe, fazendo-o esposo da mais bela das virgens, esposo de Celina...

— Oh!... bradou Mariana, em cujo espírito tinha brilhado um raio de luz.

— E agora, mulher, teu filho? teu filho já tem vinte e um anos... ama a Celina; e tu, mulher, queres matar a mãe do mísero mancebo, porque não pudeste conseguir roubar-lhe o coração da amada! sim, queres suicidar-te!

— Meu filho!... meu filho!... meu filho!... bradava Mariana andando como louca pela sala.

— Tu o enxotaste já uma vez para longe desta casa!

— Meu filho!...

O movimento que havia, e o ruído que se fazia na sala, impediu que Rodrigues e Mariana ouvissem os soluços de alguém que se achava escutando junto da porta.

— Mas enfim, mulher, continuou o velho, tu tens sido já bem castigada!... agora...

— Eu quero meu filho!

Mariana falava por entre lágrimas; seus cabelos estavam soltos, seu olhar brilhante, seu rosto enrubescido, e sua voz alterada.

— Escuta, disse o velho,

— Ouvi demais, exclamou ela com força. Não escuto nada... não quero... não posso. Eu quero ver meu filho... quero abraçá-lo... quero beijá-lo... quero... oh! meu filho é o anjo que me salva! meu filho é o perdão de meus pecados, que eu não merecia, e que Deus me concede!... ah!... não preciso que me guiem... eu conheço, eu sei quem é. Eu sei onde está meu filho! vou vê-lo, vou buscá-lo! meu filho!...

E, quase delirante, atirou-se para a porta.

Batiam nesse momento desesperadamente.

Rodrigues, com os olhos lavados em lágrimas, e soluçando fortemente, deu volta à chave.

A porta abriu-se, e ele entrou...

Mãe e filho caíram ambos de joelhos, e abraçaram-se um com outro chorando, e exclamando ao mesmo tempo:

— Minha mãe!...

— Meu filho!...

O filho de Mariana era Cândido.