Clemente, o filho unico da vigorosa matrona que tão desenganadamente fallava a Mauricio, era um sincero rapaz aldeão, de espirito pouco desenvolvido, mas de excellente indole.

Tinha uma physionomia vulgar, d'estas que fogem da memoria, porque nem as fixa um vislumbre de intelligencia que accentue alguma feição predominante d'ellas, nem o cunho de estupidez, que as assemelha a caricaturas.

Só na bôca e nos olhos é que havia um geito revelador da natural bondade d'aquelle caracter; o mais nada exprimia.

Clemente aceitára com certo desvanecimento o cargo de regedor, e exercia-o com a imparcial inteireza que deve ter o magistrado.

Não obstante o genio brando, de que era dotado, ousava arcar, no desempenho de seus deveres, com os privilegiados da terra, que ainda não haviam perdido de todo os habitos de sobranceria e de desprezo ás leis, adquiridos por seus ascendentes nos tempos das regalias feudaes.

Clemente era supersticiosamente acatador do codigo administrativo, e este fervor de funccionario dava-lhe coragem para a lucta, aliás muito contraria á sua indole pacifica e consiliadora.

Por vezes soffreu pelo seu muito amor de justiça. Julgou elle, com sympathica ingenuidade, que os superiores o conceituariam tanto melhor, quanto mais exacto e imparcial elle fosse no cumprimento dos seus deveres; com funda e amarga dôr de coração viu pois, que tendo arrostado com as sanhas de alguns fidalgos, cujas illegaes franquias procurára fazer cessar, o administrador, que sabia theorisar muito melhor do que elle sob o thema de emancipação do povo, dos direitos do homem e da igualdade perante a lei, mas que tambem sabia quebrar na pratica as quinas e os angulos agudos ás suas theorias, tomava o partido dos fidalgos, e censurava asperamente em officios o procedimento do regedor.

Estas injustiças sociaes principiavam já a inocular no animo leal e sincero de Clemente o scepticismo a respeito dos homens e a preparal-o talvez para vir a ser uma authoridade menos intractavel e de mais condescendente consciencia; e por consequencia mais ao agrado dos homens, não sei se diga praticos ou corruptos, que clamam contra a absoluta inflexibilidade dos principios.

Achava-se o bom Clemente n'aquella desconsoladora phase de transição, em que o funccionario novel principia a sentir que o deixa o ideal que concebêra da sua entidade civil, e que vae descendo pelo escorregadio pendor das condescendencias mundanas para o nivel, onde redemoinham as turbas, que ao principio fitára sobranceiro, de toda a altura da sua dignidade moral.

Triste época de desillusão e de desencantamento essa!

Clemente votava sincera affeição aos rapazes da Casa Mourisca, e sobre tudo a Jorge, a quem cedêra o seio de sua mãe.

Jorge nunca lhe dava motivo de collisão entre os seus deveres de regedor e os impulsos do seu coração.

Já não assim Mauricio, que não era de todo innocente de certas infracções de lei e de desprezo pelo codigo administrativo, com que não poucos somnos tinha afugentado ao honrado rapaz.

Clemente desculpava Mauricio, dizendo que eram as más companhias que o levavam áquillo, mas promettia não ceder a considerações, se o encontrasse em flagrante.

Fosse porém acaso, fosse quasi insciente proposito de amizade em não querer vêr, é certo que nunca tal contingencia se deu. Apenas por vagas denuncias lhe constava ter Mauricio uma ou outra vez quebrado o defezo da caça, tomado parte em alguma rixa nocturna, quasi sempre em companhia de seus primos, os fidalgos do Cruzeiro.

Estes sim, estes eram os mais rebellões d'aquelles arredores. Com elles era que as mais das vezes tinham logar serios conflictos, em que os cabos de Clemente nem sempre eram tractados com o respeito que para elles a farda pedia.

Os fidalgos do Cruzeiro viviam ainda á moda antiga, como senhores feudaes da terra, desconhecendo direitos de propriedade e calcando aos pés dos seus cavallos todos os codigos, com que tentassem conter-lhes os impetos nobiliarios.

Eram tres estes nobres senhores.

Um morgado e... morgado ás direitas; outro doutor... por ter andado dez annos em Coimbra para deixar incompleto um curso de cinco; o terceiro abbade, escorraçado pelo povo de uma freguezia que fôra mandado parochiar; ligavam-se todos tres, em temivel triumvirato, para invadirem as propriedades, esgotarem as tavernas, insultarem as mulheres e espancarem os homens d'aquelles sitios.

O povo ou por habito legado de submissão os deixava á vontade, contentando-se com praguejal-os pela calada, desforço dos opprimidos em todas as épocas da historia da humanidade, ou exasperado e descrendo da efficacia da lei, recorria á defeza propria, e procurava manter em respeito esses turbulentos vadios, que mais de uma vez sahiram mal feridos da refrega.

Jorge afastára-se cada vez mais da companhia dos primos, cujos asselvajados habitos lhe repugnavam; Mauricio frequentava-os ainda e era de facto a companhia d'elles, que ás vezes o impellia a passos reprehensiveis.

Clemente vinha agitado quando entrou em casa aquella manhã. Era evidente que o regedor se tinha encontrado em uma das collisões, a que a vida publica o sujeitava.

A mãe, logo que lhe lançou os olhos ao rosto contrahido e levemente purpureado, conheceu que tinha havido novidade e interpellou-o:


— Que tiveste tu lá por fóra, Clemente? Essa cara não é de quem vem satisfeito com a sua vida.

— Deixe-me, minha mãe, deixe-me — rompeu o irritado rapaz. — Com'assim emquanto não largar esta coisa da regedoria, não tenho um momento de socego.

— Então que foi?

— Que foi? Que havia de ser? O que foi hontem e que ha de ser ámanhã, e que ha de ser sempre, emquanto... Emquanto se não fechar os olhos e se der para baixo, seja em quem fôr. Parece impossivel que gente de educação, gente que devia ter vergonha, e ser a primeira a mostrar o exemplo, seja a que anda por ahi dando escandalo, sem fazer caso da authoridade, nem da lei, nem de coisa alguma! E um padre então! e um doutor!...

— Pelo que vejo temos os do Cruzeiro fazendo das suas?

— Pois quem senão elles? Essa sucia de libertinos, de...

— Olha que está alli um primo d'elles, Clemente — admoestou a mãe, sorrindo.

Clemente reparou pela primeira vez em Mauricio.

— Ah! desculpe, snr. Mauricio, que ainda agora o vejo. Mas isto é assim. Aquelles senhores cuidam... Eu sei lá o que elles cuidam? Cuidam talvez que isto hoje é como d'antes, e que elles hão fazer a sua vontade...

— Mas a final de que se tracta? — inquiriu Mauricio.

— D'esta vez deram-lhe para metter em casa um refractario do serviço militar, contra quem ha um mandado de captura, e com o maior descaramento o declaram por ahi. Temos outra como quando esconderam em casa o assassino do reitor de Fieiras, e lhe deram escapula para o Brazil. Mas eu não quero saber, a lei lá está que diz bem claro o que deve fazer-se, e o snr. administrador não é para graças.

— Fia-te n'elle! Olh'agora! — atalhou a mãe — É fresco! Vendo-te mettido em talas, só se não puder deitar a mão á caravelha para te atenazar inda mais. Não te lembras do que elle fez quando foi da prisão do morgado dos Codeços, por causa das pancadas na feira? Ora bem me fio eu n'elle! Todo collaço com o Lourenço do Cruzeiro, e companheiro de sucias d'elles todos. Sabes que mais, meu filho? deixa-os lá e não te consumas com isso. Olh'agora!

Estas eram as maximas que o scepticismo inspirava já a Anna do Védor.

Clemente encolheu os hombros.

— Ou hei de ser regedor, ou não hei de ser. Por isso é que eu digo que vou pedir a demissão. Para injustiças é que eu não sirvo. Não quero que se diga que quando um pobre homem faz alguma coisa já tudo são pressas para o prender e castigar, e lá porque uns senhores... Senhores? Melhor tratassem de pagar o que devem a meio mundo, e não andassem por ahi a fazer o que fazem.

— Vamos, Clemente, perdoa-lhes as rapaziadas, por que a final elles são teus amigos — interveio Mauricio.

— Amigos elles?! Muito agradecido; mas nem acredito na tal amizade, nem tambem a desejo; isto é para dizer o que é verdade.

Interromperam-n'o n'este ponto duas vigorosas vozes masculinas, que bradavam da rua:

— Mauricio! Ó Mauricio! que diabo fazes tu ahi dentro, com o cavallo prêso á porta? Eh!

— Tu tambem pões mão na fornada?

— Parece-me mais certo que ponha mão nas forneiras.

A ti'Anna foi a primeira que tomou a palavra:

— Fallae no ruim... São os do Cruzeiro.

E chegando ao limiar da porta, exclamou com os seus modos desempenados:

— Que é lá, que é, meus fidalguinhos? Que temos nós que dizer das forneiras? Em minha casa não ha monte para caçadas de galgos, como vocemecês. Entendem? Deixem socegado o Mauricio, que já não pouco mal lhe teem feito com os seus conselhos e companhia.

Mauricio appareceu aos primos, rindo do sermão da ama.

Clemente permanecia carrancudo no fundo da cozinha.

Os primos do Cruzeiro, o doutor e o abbade, vestiam} á maneira do campo, de jaqueta de alamares, faxa vermelha á cinta, chapéo de abas largas, de espingarda ao hombro, cães em redor, e as victimas das suas façanhas venatorias pendentes ao tiracolo, como tropheus de combate.

O padre respondeu á Anna do Védor:

— Ó mulher, guarde lá a sua lingua que não nos tira a sêde que trazemos, e dê-nos antes uma pinga do verde, porque o nosso pichel vae vazio de todo.

E com a maior sem-cerimonia entraram para o pateo, poisando as espingardas e os apparelhos de caça.

O doutor sentou-se nos degraus da porta da cozinha, o padre na pilha de lenha que havia no quinteiro.

A Anna do Védor, com as mãos na cinta, observava-os e proseguiu na objurgatoria:

— Com que então o snr. abbade, e o snr. doutor, e o snr. seu mano entendem que as leis d'estes reinos não foram feitas para vocemecês?

— A que vem agora essa cantilena, ó mulher? Dê-nos vinho — insistiu o padre.

— A que vem? — tornou a ti'Anna — ahi está o meu Clemente que melhor o póde dizer.

Os dois voltaram-se e viram Clmente que, pela sua vez, appareceu á porta.

— Ah! ah! snr. regedor!

— Pelos modos o homem está zangado comnosco por lhe escondermos o filho do soqueiro, queres tu vêr?

Mauricio tomou o partido de Clemente.

— Bem sabem que é da responsabilidade d'elle.

— Ora deixa-te de contos — atalhou o doutor.

— O peior é que, vistos os autos, não temos vinho — fez notar o padre.

— Está enganado, snr. abbade — veio-lhe á mão Clemente — fosse um criminoso que me pedisse de comer e de beber, quando passasse á minha porta, eu, com ser regedor, não lh'o recusaria. O que a minha casa não ha de ser, isso não, é escondrijo de ladrões, de malvados e de refractarios, nem sei que grande gloria venha d'ahi a quem tanto mal faz á sociedade, não deixando que se cumpram as leis. O vinho ahi está.

Effectivamente appareceram dois rapazes, empunhando cada qual uma caneca a trasbordar de purissimo vinho verde, que os dois caçadores esvaziaram de um fôlego.

— Ah! — disse o doutor, no fim da libação — Não te arrenegues, Clemente, que não és mau rapaz a final. Estás muito soberbo com a tua regedoria, mas isso ha de passar-te. Ora agora fica sabendo que na quinta do Cruzeiro, desde tempos immemoriaes, encontra asylo quem ahi se acolher.

— Mas o senhor sabe que a lei pune a quem der escondrijo a um refractario. Parece-me que um doutor não póde deixar de saber estas coisas.

— A lei diz muita coisa, que todos nós sabemos; mas deixa lá a lei, que está quieta.

— Mas se o snr. administrador ordenar uma busca na casa...

— Que veja se se mette n'isso — acudiu o abbade, sorrindo ameaçadoramente.

— Tem direito para o fazer — questionou Clemente.

— Pois que se contente com o direito.

Clemente ia-se irritando.

— Mas é preciso pôr côbro a isto, meus senhores. Não se póde soffrer que em tempos de leis e de authoridades, haja uma casa onde nem lei, nem authoridade entram.

— Pois tenta, ó Clemente; quando te sentires de pachorra, manda-nos lá o exercito dos teus cabos e commanda o assalto. Ah! ah! ah! Havia de ter graça!

— Pelos modos por que vejo irem as coisas, não direi que se não chegue um dia a isso.

— Hei de gostar de vêr.

— Pois eu não. Os meus desejos eram que todos vivessem em paz e socego. E o que me custa é que partam os maus exemplos d'onde deviam vir os bons.

— Ora sabes que mais, Clemente? — ponderou o padre. — Dou-te de conselho que não puxes de mais pelo fiado. O mundo é assim em toda a parte, rapaz; e é preciso fazer a vista grossa para certas coisas. As leis são boas, mas não ha remedio senão soffrer de quando em quando que as não cumpra, quem está no caso de ter vontade.

— Mas a vontade tira-se, se as authoridades forem o que devem ser.

— Viva, snr. regedor!

— Digo isto, snr. abbade, e...

— Um seu criado, snr. regedor!

— E um dia...

— Ás suas ordens, snr. regedor.

— Snr. regedor, sim! e honro-me d'isso muito. E emquanto fôr regedor, hão de me respeitar como tal. Já disse. O seu tempo já lá vae, snr. abbade, e hoje a justiça quando tem de entrar em uma casa, não repara no brazão que está á porta... ou não deve reparar. Ninguem tem direito de não respeitar a lei, e eu prometto-lhes, que já que assim o querem...

— Bem, bem — acudiu Mauricio, que receiou que a scena se tornasse mais azeda — não prosigamos n'esta contenda. Venham vocês d'ahi, que temos que conversar. Clemente, socega, que tudo se ha de arranjar. Adeus, Anna.

— Vamos lá, vamos lá — concordaram os dois primos, empunhando outra vez as espingardas — deixemos o snr. regedor que está hoje muito zangado.

E ao atravessarem o quinteiro o doutor e o abbade abraçaram, cada um por sua vez, uma das moças de Anna do Védor, que voltava da fonte com o cantaro de agua.

— Olá, olá, fidalguinhos! — bradou da porta da cozinha a patroa — já disse que isto aqui não é terras do Cruzeiro. Olhem se querem que eu os enxote como a rapozas do gallinheiro?

E quando a criada chegou ao pé d'ella, disse-lhes com aspereza:

— Tu não sabias chimpar-lhes o cantaro pela cabeça abaixo, minha maluca? Sempre vocês não sei para que querem a esperteza.

Os rapazes retiraram-se rindo.

Anna voltou a ouvir e a mitigar as queixas do filho.