Mauricio mandou para casa o cavallo, no proposito de seguir os primos a pé. Estes enviaram tambem para o Cruzeiro os cães, as espingardas e os mais petrechos de caça.

Os dois manos riram por muito tempo da prosapia do regedor e não se deram por satisfeitos, senão depois de terem conseguido fazer tambem rir Mauricio que, ao principio, tentou admoestal-os.

— Deixemos o assumpto — disse a final o padre — que destino levas?

— Nenhum.

— N'esse caso vem por nossa casa, que não te has de arrepender.

— Que ha lá?

— Vem e saberás.

— O José recebeu hontem do Douro uns cascos promettedores — explicou o doutor.

— Adeus, adeus; ahi estás tu a desfazer a surpreza. Deixa-o vir.

— Vou — respondeu Mauricio — mas havemos de seguir o caminho que eu disser.

— Mas por onde diabo queres tu ir?

— Temos empreitada?

— Tambem vos prometto que se não arrependerão — insistiu Mauricio.

— Ó rapaz, se são olhos pretos e cabellos fartos, dize, e vamos lá vêr isso — alvitrou o padre.


— Olhos, cabellos, dentes, gesto, riso, figura, tudo uma perfeição — ampliou Mauricio.

— Onde desenterraste essa maravilha?

— Chegou aqui ha poucos dias.

— Não ponhas mais na carta.

— Já sei — interveio o doutor — fallaram-me n'ella. É a filha do Thomé da Herdade.

— Exactamente.

— E então ella sempre é essas coisas?

— Só te digo que eu ando cada vez mais doido por a rapariga. Isto cá dentro está em imminente perigo de explosão. Que admira, se nunca até hoje vi uma belleza assim?

— Estás bem bom. Ó rapaz, o mais que posso fazer é casar-vos. Conjungo vós — disse o padre, cantarolando.

— Em uma palavra, para vocês imaginarem o estado d'isto, basta que vos diga, que me custou a conter a indignação quando ouvi ha pouco a Anna do Védor dizer-me que a Bertha era um bom casamento para o filho.

— Ai, para o snr. regedor!

— É verdade.

— Então s. exc.ª tenciona tomar estado?

— E vamos lá a saber — informou-se o doutor — a rapariga é arisca ou accessivel?

— Por ora parece-me desconfiada apenas, mas...

— Como disseste que se chama? Bertha?

— Sim.


O padre cantarolou:

Bertha, Bertha, meus amores,
Bertha do meu coração.
És a rainha das flores,
Trai lari lari larão.

E, cantando, trepava o muro de um pomar para colher laranjas que de lá o estavam seduzindo.

— Deixa lá as laranjas; anda d'ahi — dizia o mano doutor, que seguia á frente do rancho.

— A casa do cidadão é inviolavel — acrescentou Mauricio.

— Sim, senhor — tornou o padre, já a cavallo no muro — mas se me faz favor, nem isto é casa, nem um homem que móra na aldeia é cidadão.

E sahiu outra vez do muro com a sua colheita, e pôz-se a caminho, comendo as laranjas que roubára.

— Então dá cá uma — disse o doutor, voltando-se para traz.

— Ah! ah! já cubiças?

E o padre arremessou duas laranjas, que o mano destramente aparou nas mãos.

A companhia foi seguindo pelos accidentados caminhos da aldeia, cantando, saltando, pondo em confusão as lavadeiras moças que ensaboavam nas prêsas, abraçando á força na estrada as raparigas que, vergadas sob mólhos de herva ou de milho cortado, mal lhes podiam fugir; visitando todas as tavernas, fazendo correrias a gallinhas, porcos ou vaccas se se lhes deparavam na pastagem, calcando campos e escalando muros com o desassombro de senhores.

Mauricio imitava-os meio constrangido, mas imitava-os. Se ás vezes os seus melhores instinctos ou a influencia do tracto com Jorge o faziam conter, a reflexão maliciosa de qualquer dos primos, que ironicamente lhe celebrava a candura, impellia-o a vencer a primeira hesitação, e a final dava o passo que lhe repugnára.

Mauricio possuia um d'estes caracteres faceis de dominar; moveis, que cedem ao bem e ao mal e que tanto habilitam o homem a realisar heroicos feitos, como a perder-se. Tudo está na influencia que os rege.

Se teem faculdades para apreciar o gozo, que de uma acção grande e generosa resulta; se são capazes de a conceber e dão estimulos para a executar; tambem as seducções do vicio os enlevam, tambem a vertigem do abysmo os attrahe, e aproximam-se fascinados do precipicio, sem que a razão acorde para os suspender no progresso fatal.

Caracteres assim são instrumento poderoso do bem ou do mal, conforme a mão que d'elles usa, e a intenção que os dirige. São os que sentem a influencia das boas ou más companhias.

Dentro em pouco chegavam os tres rapazes á Herdade.

— Então a rapariga? — perguntou o padre, examinando as janellas vazias.

— Nem sempre apparece á janella — informou Mauricio.

— E de que meio te serves para chamal-a? tosses, cantas, assobias? — perguntou o doutor. — Qual é o teu systema?

— Eu não tenho systema.

— Então para que nos trouxe por aqui este innocente, não me dirão?

— Tu não tens entrada em casa?

— Meu pae não gosta que nós visitemos o Thomé.

— Ah! lá se o papá ralha...

— Este Mauricio tem coisas!

— Isto é mesmo uma menina innocente!

— Aqui não ha malicia alguma!

Estas observações dos manos estavam causando a Mauricio vergonha da sua propria candura.

— E então d'aqui? — interpellou o doutor.

— Então... — titubeou Mauricio.

— Segue-se dar meia volta á direita, e retirarmo-nos com caras de asnos, não é assim?

— Façam vocês o que quizerem — exclamou o padre — eu por mim, já que aqui estou, não me retiro sem vêr a pequena.

— Mas como? — interrogou Mauricio.

— Eu te digo já. A coisa é simples.

E dizendo, dirigiu-se a uma pequena porta que havia no muro da quinta e, sem a menor hesitação, impelliu-a com força e ella cedeu sem grande resistencia. O padre entrou primeiro, seguiu-o o mano doutor, e Mauricio, ainda que mais a mêdo, imitou-os.

Os do Cruzeiro caminhavam com a sem-ceremonia, que caracterisava todos os seus actos n'aquella terra, assobiando, cortando flores e fructas, e encurtando caminho por cima dos campos semeados.

De repente o padre, que ia adiante, parou, e voltando-se, disse em tom mais baixo:

— E ainda dirão que não sou bom caçador?

E, afastando-se para o lado, deixou-os vêr o objecto que elle designava, apontando para a extremidade da rua em que iam entrar.

Era Bertha.

A filha de Thomé da Povoa acabára de ajudar a pôr á cabeça de uma rapariguita aldeã o ultimo feixe de cannas de milho que os segadores haviam deixado no campo e ficára-a seguindo com a vista, tão attenta que nem deu pelos recem-chegados.

— Vejam que figura de fada — murmurou Mauricio para os primos. — É a Ruth da escriptura.

— Sim, a figura temos visto, agora quero vêr-lhe a cara — disse o padre; e acompanhado pelo mano bacharel, dirigiu-se para Bertha.

Mauricio, surprendido por este passo, que não esperára, seguiu-os para conter-lhes a brutal galanteria.

Bertha, ouvindo passos, voltou-se, e ao reconhecer os tres rapazes, não reprimiu um movimento de assustada surpreza, o qual porém se desvaneceu, reparando que Mauricio era um d'elles.

Todos se descobriram, cortejando Bertha.

O padre, fitando impertinentemente os olhos n'ella, principiou:

— Minha senhora, não repare n'esta invasão de territorio. Mas quem teve a culpa foi aqui o primo Mauricio. Fallou-nos com tal enthusiasmo da gentil filha do nosso velho amigo Thomé, que nós tomamos a resolução de vir admiral-a e cumprimental-a. E aqui estamos.

Bertha córou intensamente perante a grosseira sem-ceremonia do padre, e dirigiu a Mauricio um olhar, em que se fazia uma interrogação e se formulava uma censura.

Mauricio respondeu a este olhar, dizendo em tom de irritado:

— Desculpe, minha senhora, as maneiras pouco delicadas de meu primo. É um javali silvestre que não sabe amaciar as sêdas.

O mano bacharel soltou uma gargalhada, quasi tão grosseira como a apresentação do padre, e apimentou-a com a expressão de igual delicadeza:

— Ora toma! apara lá esse peão á unha! Ah! ah! ah!

O padre olhou espinhado para Mauricio, e redarguiu:

— Ora não querem vêr este senhor de salão, que se offende com as minhas sem-ceremonias! Javali! Tem graça! Quem o ouvir, ha de suppôl-o um cãosinho de regaço. Meu lindo priminho, esta menina não é nenhuma tola e sabe o que é o mundo; e escusas, para lhe agradar, de te apresentares como um galã choramigas. Ora é boa!

— Adeus, adeus, padre Lourenço, isso previa eu!

— Previas o quê? Então eu offendi alguem?

— De offender a ser menos delicado vae alguma distancia, mas...

— Dize tu que o que eu não sou é impostor e hypocrita, apesar de me terem feito padre. Eu disse o que era verdade. Nós, se estamos aqui, é por tua causa. Não é assim, Chico?

O mano Chico affirmou.

Bertha assistia a toda esta scena com visivel desgosto, mas sem interrompêl-a com uma palavra.

— Bertha, affirmo-lhe... — ia a dizer Mauricio para justificar-se da tacita arguição, que lia no olhar d'ella.

— Com licença — cortou-lhe o padre a palavra — se sou grosseiro e javali, hei de sêl-o até o fim. A coisa passou-se d'esta maneira. O Chico que o diga. Aqui o primo Mauricio parece que está perdido por a menina, e por tal modo nos fallou de si, tanto nos matou o bicho do ouvido para que lhe passassemos por a porta, que nós viemos. E como não estava á janella, nem elle tinha ainda combinado signal para a fazer apparecer, eu, para não perder o tempo e as passadas, abri brecha no reducto e entramos. Ora aqui está. Se isto é offensa...

Bertha respondeu, já serenamente:

— Creio que não é, porque não póde de certo haver intenção de offender-me, em quem entra em minha casa na companhia do snr. Mauricio. Elle bem se lembra de que eu fui em pequena a companheira de sua irmã Beatriz, de que sou a afilhada de seu pae, e n'aquella casa, a que elle pertence, julgo que ainda ha, como d'antes, muito respeito por este laços de familia e de amizade...

— Ha, Bertha, ha e tão sancto como em outros tempos . E ha mais, ha a firme resolução de os fazer respeitar aos outros, como lá se respeitam.

— Abranda-te, leão! Não estou disposto a luctar comtigo, apesar d'esses olhares ferozes. Esta menina far-me-ha mais justiça, reconhecendo que eu não a offendi...

— Não fallemos mais n'isso — acudiu Bertha friamente.

— Mas é um caso de consciencia — insistiu o abbade.

— Então ninguem tão habilitado para o decidir como um sacerdote — tornou-lhe Bertha, com desdem.

Gargalhada do mano bacharel.

— Chucha! Ora mette-te com ella, anda.

— Em coisas do coração — redarguiu o padre galanteadoramente — são melhores juizes do que os sacerdotes, as madamas.

Bertha contrahiu a fronte com desgosto e respondeu-lhe com maior severidade:

— Quando ellas teem um pae, podem elles tambem ser juizes. E o meu ahi vem.

Effectivamente chegava Thomé da Povoa.

O honrado fazendeiro, que tinha a sua opinião formada a respeito dos fidalgos do Cruzeiro, franziu o sobrolho, assim que os avistou com a filha.

Nem a presença de Mauricio bastou para tranquillisal-o.

Thomé conhecia de pequenos os rapazes da Casa Mourisca e sabia até que ponto se podia contar com o que em Mauricio havia de bom, e receiar do que n'elle havia de mau.

Depois a physionomia de Bertha denunciava que a conversação dos fidalgos não tinha sido demasiadamente apropositada.

Nem convinha á boa fama de uma casa, em que houvesse raparigas, a assiduidade de qualquer dos tres manos do Cruzeiro.

Tudo isto actuava no espirito de Thomé durante os instantes que precederam a sua introducção na scena.

— Olá! v. exc.as por aqui! Grande honra! grande honra!

— É verdade, Thomé — começou o padre a dizer — entramos, como rapazes de escóla, sem pedir licença ao dono da casa; mas confiamos que não se nos leve a mal...

— Ora essa! Levar a mal porquê? V. exc.as quizeram talvez vêr por seus proprios olhos como esta abençoada terra, que d'antes se definhava nas mãos de um fidalgo, medra agora nas mãos de um lavrador?

— Justamente. E depois tivemos a felicidade de encontrar a menina Bertha, que é a maravilha d'estes sitios.

— Ah! — disse Thomé, com um meio sorriso, e voltando-se para a filha, que instinctivamente se aproximou d'elle:

— É verdade. Agora me lembra! Olha que tua mãe recebeu já aquellas meiadas. Se queres ir vêl-as.

— Vou, vou já — respondeu Bertha.

E cortejando levemente os tres rapazes, afastou-se d'alli.

— Até outra vez, Bertha — disse Mauricio, com voz affectuosa.

— Snr. Mauricio — correspondeu-lhe Bertha, e desappareceu por uma rua da quinta.

E pensava comsigo mesma:

— Agora... agora... já não sinto mêdo d'elle... nem de mim.

— Na verdade, Thomé, a sua casa está um perfeito paraizo e nem os anjos lhe faltam — disse o mano bacharel, depois que Bertha se retirou.

— O que eu posso affirmar — insinuou o abbade — é que não faltarão tambem em volta d'estes muros enxames de namorados. Que te parece, Mauricio?

— Bertha é digna de todos os respeitos — murmurou Mauricio, confuso.

— Bem, bem, quem diz menos d'isso? mas...

Thomé interrompeu o padre.

— Eu lhes digo, meus senhores, Bertha é filha de uma familia, em que todos trabalham, e pouco tempo póde ter para apparecer a namorados. Quando algum homem de bem se me affeiçoar á filha, não serei eu que lh'a recuse, se o coração d'ella estiver para esse lado; pois para freira a não quero. Emquanto aos enfeitados, que andam por ahi a zunir aos ouvidos das raparigas e a fazel-as doidas, Bertha sabe bem o que elles valem... mas, se por acaso a importunarem muito... eu sei como se dá cabo de um vespeiro.

E fallando Thomé da Povoa não ficára immovel, mas pozera-se naturalmente em caminho da porta, e os tres seguiam-n'o, sem fazer observação alguma.

Só quando o viram parar no portão é que perceberam que o lavrador como que tacitamente os convidava para sahirem.

O padre não pôde deixar sem uma reflexão este procedimento.

— Agradecemos, Thomé, o incommodo que teve a ensinar-nos o caminho da porta para sahirmos.

— Os lavradores da nossa terra teem estes excessos de hospitalidade — secundou o doutor.

Thomé córou e respondeu com certa confusão:

— A minha cabeça!... Desculpem. Isto em mim foi distracção. Quando a gente não está bem em si, faz, sem reparar, coisas que muitas vezes lhe podem estar na vontade, mas que por delicadeza não faria, se pensasse melhor. Queiram desculpar.

— Está desculpado. Nós tambem não tinhamos mais que fazer aqui. O fim da nossa visita estava preenchido.

— Sim, tambem me quiz parecer isso.

— Adeus, Thomé — bradou o doutor — Deixamol-o entregue á sua vida patriarchal.

— E está um verdadeiro patriarcha, este bonacheirão do Thomé — disse o padre, batendo familiarmente no hombro do lavrador.

— Bonacheirão? — repetiu Thomé, encolhendo os hombros e com um meio sorriso — Isso é conforme. Ás vezes... Ahi está que, sendo eu amigo do mestre-escóla, como sou e ha tantos annos, estive ha mezes para o esmagar. E sabem porquê? Porque passava eu por a escóla e ouvi chorar uma criança, e pareceu-me que era o meu pequeno; não me socegou o coração sem que me affirmasse se era elle ou não. Entrei e vi o desalmado do Zé Domingues que m'o desancava sem dó nem piedade. Escureceu-se-me a vista, entrei furioso por alli dentro, e por um triz que não deixava o homem a pernear.

Os rapazes estavam já fóra da porta quando Thomé acabou de contar o caso, e acrescentou:

— Não que se tractava de meu filho, e isto de amor de pae e de mãe... É como nos animaes. Sabem aquella vacca malhada que eu tenho? Um borrego, com que uma criança brinca; pois haviam de vêl-a uma vez em que lhe tiraram a cria! Estava furiosa e arremettia como um toiro bravo. É preciso cuidado com isto de paes e de mães! — concluiu o fazendeiro, em tom sentencioso e emphatico.

E dando as boas tardes aos tres rapazes, fechou a porta, murmurando:

— O padre ainda não aprendeu com a corrida que levou da abbadia. E este Mauricio a acompanhar com elles! Valha-o Deus!

— Então que vos parece o snr. Thomé? — perguntou o bacharel cá fóra.

— Não está mau com a historia da vacca — disse o abbade, rindo.

Mauricio conservou-se silencioso.

— Tu a modo que vaes assim embaçado, ó Mauricio? — observou o bacharel.

— Estou arrependido de vos ter trazido commigo aqui — confessou Mauricio.

— Ora não sejas parvo! querias talvez que fizessemos muito gasto de excellencias com a filha do Thomé da Povoa?

— É uma rapariga de educação, e o pae... — ia a dizer Mauricio.

— E o pae — atalhou o padre — anda-me chiando muito alto, mas bom será que tenha mais cuidadinho comsigo.

— As ultimas palavras d'elle cheiraram-me a uma ameaça — observou o doutor.

— Eu nem dei por isso — respondeu o mano.

E os tres retiraram-se de mau humor.