Jorge, que ultimamente era menos assiduo em Casa de Thomé, sem que este pudesse atinar com a razão do facto, recebeu, na tarde d'aquelle mesmo dia, um bilhete do fazendeiro, pedindo-lhe que o procurasse na Herdade ás horas do costume. Jorge não faltou.

Thomé da Povoa recebeu-o com modos menos desenleiados do que os que lhe eram habituaes, e com ares de mysteriosa preoccupação conduziu-o a um gabinete mais retirado da casa, serrando a porta depois que entraram, com excepcional cuidado.

Jorge seguia-lhe com estranheza os movimentos.

Thomé, com um gesto denunciador do esforço que n'aquelle movimento fazia sobre si proprio, entrou no assumpto com visivel repugnancia:

— Snr. Jorge — principiou elle — sei que é meu amigo, e que tem o juizo e a prudencia de um homem feito, apesar de novo como é; por isso vou fallar-lhe com a franqueza de um homem de bem e de um amigo.

— Nem o Thomé sabe conversar de outra maneira. Diga.

— Pois bem. A coisa é esta... Eu antes queria não fallar n'isto, mas... emfim... se o negocio ha de ir a mais... e succeder por ahi alguma desgraça... emfim... a tempo é que é evitar o mal; quanto ao depois...

— Mas de que se tracta?

— Snr. Jorge. É um pae que lhe falla. Tenho uma filha e emfim preciso de vigiar por ella, emquanto não tem marido que a zele e proteja... não é verdade?

Jorge não pôde ouvir sem se perturbar estas palavras e, interiormente inquieto, sem bem saber porque, murmurou:

— De certo, mas...

— Ora bem. O snr. Jorge é rapaz sisudo e pacato, mas emfim sempre ha de saber o que são dezoito, dezenove ou vinte annos, hein? Pode-se ter o juizo muito claro, vêr as coisas como ellas são, mas... isto de sangue novo... parece que ferve e depois é como uma doença, e como uma febre, a cabeça desarranja-se e não ha conselhos que a concertem. Pois não é assim?

Jorge córou ouvindo estas considerações de Thomé, que lhe pareciam dirigidas, olhou para elle com desconfiança e respondeu confusamente:

— Talvez seja; porém...

— Ora então segue-se que o melhor é livrar-se a gente de trabalhos e fugir das occasiões, para que depois se não diga: «Ai, porque se eu soubesse; ai, porque o que eu devia ter feito era...» Entende-me?

— Entendo, Thomé, mas, a final a que quer chegar? — interrogou Jorge, cada vez mais sobresaltado.

— Ora eu lhe digo. A minha Bertha é uma rapariga de juizo.

A confusão de Jorge redobrou. O rosto tingiu-se-lhe de rubor, em que Thomé não reparou.


— É — proseguiu o fazendeiro — tenho a certeza d'isso, mas é rapariga, e emfim teve uma educação bem bonitinha; e Deus me perdoe se fiz mal em lh'a dar; ora eu, com quanto seja um rustico, sei o valor que teem certas coisas, e que quem se costumar a ellas com ellas sonha. Isso é que é verdade! E nem eu me admirava de que a pequena tivesse sua inclinação para rapazes da cidade. Era natural, já digo. Mas aqui não veem elles, os da terra são assim meios... meios... emfim rapazes de lavoura, como eu fui; muito bons para raparigas como era a minha Luiza. Ora agora o que por ahi ha, são, e perdoe-me dizer-lhe isto, uns fidalguinhos que não teem que fazer, e que passam o seu tempo a inquietar as raparigas da terra. D'esses é que eu tenho mêdo! E se quer que lhe falle a verdade, cá em relação á minha pequena, ha um sobre todos de que eu muito me receio.

— Quem é? — perguntou Jorge, ainda não senhor de si.

Thomé hesitou por algum tempo, mas a final, como tomando uma resolução, respondeu:

— É seu irmão Mauricio.

— Mauricio! — repetiu Jorge, contrahindo a fronte. — Pois acaso tem elle dado já motivos para suspeitar?...

— Poucos; isto em mim é mais mêdo do que outra coisa. Hoje porém já me não agradou o que elle fez.

E Thomé narrou a Jorge a scena da manhã, acrescentando:

— Ora dos do Cruzeiro não tenho eu mêdo. Bertha conhece-os e é o que basta para ficar livre de perigo; mas com o snr. Mauricio já não é assim. Apesar das suas doidices, não se póde deixar de se gostar do rapaz, porque o fundo é bom e generoso, e depois... conhecem-se ha muito... e elle é estouvado e um rapaz bonito... e ella... ella tem dezoito annos... Emfim, snr. Jorge, isto anda-me cá a pezar, e por isso pedia-lhe que visse se obrigava seu irmão a deixar-me em paz a rapariga, porque nada de bom póde resultar d'aqui.

Jorge sentia apertar-se-lhe o coração ao ouvir aquella confidencia. Era pois certo que Bertha amava já Mauricio!

— Thomé — respondeu elle, sem trahir a sua agitação — socegue. Eu fallarei a Mauricio. Não creio que elle fizesse com intenção o que me diz; mas em todo o caso concordo em que é preciso evitar a tempo peores occorrencias. Faço justiça a Bertha; mas quero que meu irmão seja o primeiro a respeital-a. Eu lhe fallarei, creia.

— Muito bem — respondeu Thomé, apertando-lhe a mão. — Eu estava certo de que me daria essa mesma resposta.

Jorge acrescentou:

— Demais, Mauricio pouco se demorará aqui. Espero que em breve parta para Lisboa.

— Bom será. Talento tem elle para o poder aproveitar na vida, e aqui o que ha de elle fazer? Depois a companhia d'aquelles primos!...

Jorge separou-se de Thomé, sem que se occupasse n'aquella noite do assumpto habitual das suas conferencias.

Ao sahir, mais cêdo do que o costume, atravessou uma sala aonde Bertha costurava á luz de um candieiro.

Ao vêl-o passar, Bertha estendeu-lhe familiarmente a mão, dizendo com um sorriso affectuoso:

— Retira-se muito cêdo hoje; durou pouco a lição.

— Ás vezes é quando mais se aprende — respondeu-lhe Jorge, com mal disfarçada ironia.

— E até quando? — proseguiu Bertha, parecendo não attentar no sentido da resposta. — Ha já bastante tempo que não o viamos.

— Até... até cêdo.

— O snr. Mauricio vejo-o mais vezes... ainda hontem ahi passou.

— Sim — disse Jorge com um malicioso sorriso — Mauricio tem essa habilidade, de ser visto todos os dias por as mulheres bonitas da terra.

Bertha olhou admirada para Jorge; feriam-n'a aquellas respostas sêcas e sarcasticas, que não esperava ouvir-lhe.

— Então dá-se ao trabalho de se mostrar a todas? — perguntou ella sem desviar os olhos.

— Sim, provavelmente — tornou Jorge no mesmo tom — e parece que todas se dão ao trabalho de lhe apparecer.

— Ah!

E Bertha calou-se; fixou os olhos na costura e pareceu até esquecer-se da presença de Jorge na sala.

Este finalmente despediu-se, estendendo a mão a Bertha.

— Boa noite, Bertha.


Sem levantar os olhos da costura e portanto sem lhe corresponder ao gesto de despedida, Bertha respondeu:

— Boa noite, snr. Jorge.

— Offendeu-se — pensava Jorge ao retirar-se — então ha fundamentos para as apprehensões de Thomé. Juizo de rapariga a final! Cabeça doida, que não espera que o coração se declare e alimenta paixões com reminiscencias de romances. Pobre Thomé! É o que elle a final colhe dos seus sacrificios para a educar. Eu logo o suppuz...

As reflexões de Jorge succederam-se e encadearam-se n'este teor. Crescia n'elle mais do que nunca a sua irritação contra Bertha.

— Mas que tenho eu com Bertha? — reconsiderava elle — para me importar com isto? A final são pequenas fraquezas de rapariga e... Mas a amizade que consagro ao pae obriga-me a intervir. Mauricio é um louco, e ella já vejo que não tem mais prudencia do que outra qualquer rapariga da sua idade.

E esta ideia de Bertha ser sensivel aos galanteios de Mauricio era o que mais que tudo o incommodava.


E Bertha? Que ficou pensando, com a cabeça inclinada sobre a costura, mas com a mão parada e o olhar pensativamente fixo?

— Porque é esta severidade de Jorge para commigo? — pensava ella — Não posso já duvidar. Ha n'elle não sei que prevenção contra mim. Ou não me falla, ou falla-me d'este modo. Um motivo leve não póde ser, porque Jorge é, ao que dizem, um rapaz de tão bom senso, que de certo por uma insignificancia não me tractaria assim. Mas que faria eu? Nada; se em mim ha loucuras, ficam-me no pensamento e ahi quem as vae devassar?... E que fossem?... E que as achassem?... Eu podia dizer-lhes: Sim, estão ahi, mas eu bem sei que estão, e ahi mesmo as suffoco e venço. Não sou responsavel perante ninguem do que se passa em mim só. Entre mim e Deus é que essas coisas se julgam. Quando me revelar, quando me trahir, que me peçam contas então. A que vem estas severidades? Que fiz eu a este generoso rapaz? Imaginará elle que o galanteio de Mauricio me terá fascinado? É um caracter tão serio, que talvez por isso me condemne. Fascinar-me! Mauricio!!... Ao principio talvez; agora porém vejo que se vão desvanecendo essas phantasias de criança, nascidas e robustecidas nas minhas horas de solidão no collegio, e que senti alvoroçarem-se ao chegar aqui, e ao vêl-o. Mauricio não é o caracter de que eu me posso receiar. E ainda bem. Mas Jorge por que me quererá mal? Lembra-me que meu pae me disse que, se elle não fosse meu amigo, não me dizia que o era... E elle ainda m'o não disse.

Estas reflexões foram interrompidas pela entrada de Thomé, que, satisfeito pela promessa de Jorge, já não sentia nuvens a escurecer-lhe o pensamento.

Jorge chegou a casa antes do irmão.

Era noite de luar, tepida noite de outomno, languida e serena, como a podem desejar os mais exaltados devaneiadores. Havia uma limpidez no céo, uma quietação nos bosques tão completa, que parecia que a natureza toda parára em suspensão a contemplar o solemne progresso da lua pelo firmamento, que inundava de luz.

Era uma d'estas noites em que só a custo se troca o ar livre dos campos pelo ar confinado do gabinete, em que se hesita ao cerrar as janellas aos raios da lua que invadem a sala, para os substituir pela luz vacillante da lampada, que alumia as vigilias do estudo.

O proprio Jorge, habituado como estava ao trabalho, cedeu ás seducções d'aquella noite e deixou-se ficar sob as arvores da quinta. O peito precisava de ar livre que o desopprimisse.

Os carvalhos e castanheiros seculares temperavam a claridade da lua, coando-a atravez da folhagem, de que o inverno os não despira ainda. Uma luz mysteriosamente discreta penetrava no bosque; raros sons interrompiam aquelle silencio, além do rumor longinquo e monotono das fontes e cascatas.

O pensamento de Jorge perdêra a placidez habitual; como que despertavam n'elle os instinctos de juventude, povoando-lhe de visões o campo da phantasia, de ordinario occupado por mais severas imagens.

Os seus calculos, os seus projectos de futuro, os problemas de administração, que lhe absorviam o pensamento, cederam agora o logar a ideias menos positivas, a meditações vagas, a quasi devaneios, em que raras vezes a sua razão se deixava arrebatar. Primeiro dominou-o a magia do passado; evocou do silencio dos tumulos aquelles dos seus antepassados, que trouxeram com todo o esplendor o nome que hoje era seu, os que mais alto elevaram o ennegrecido brazão que honrava ainda a frontaria d'aquelle solar em ruinas. Depois, saudades mais pungentes, d'essas que ainda trazem vestigios de lagrimas, como restos da sua natureza de dôr, de que só o tempo as vae privando, occuparam-lhe o coração e o pensamento. A sombra da pallida e estremecida irmã, que a morte arrebatára quando mais seduzia com sorrisos e afagos, a sombra de Beatriz, que era a mais querida e mais dolorosa recordação d'aquelles rapazes e d'aquelle velho, parecia surgir ao mysterioso apello da noite, e vaguear, como uma apparição phantastica, por entre essas arvores que menina a viram e menina a protegeram do sol abrazador dos campos.

Jorge ainda não esgotára as lagrimas consagradas á memoria da irmã. Tinha-as nos olhos, quando a tinha no pensamento a ella.

Pouco e pouco, por uma insensivel transição, a imagem de Bertha substituiu a de Beatriz.

Differentes eram as impressões que esta nova imagem lhe produzia, differentes e indecifraveis quasi.

Já vimos que antagonismo de sentimentos havia no coração de Jorge em relação á filha de Thomé da Povoa.

dominou-o a magia do passado; evocou do silencio dos tumulos aquelles dos seus antepassados, que trouxeram com todo o esplendor o nome que hoje era seu, os que mais alto elevaram o ennegrecido brazão que honrava ainda a frontaria d'aquelle solar em ruinas. Depois, saudades mais pungentes, d'essas que ainda trazem vestigios de lagrimas, como restos da sua natureza de dôr, de que só o tempo as vae privando, occuparam-lhe o coração e o pensamento. A sombra da pallida e estremecida irmã, que a morte arrebatára quando mais seduzia com sorrisos e afagos, a sombra de Beatriz, que era a mais querida e mais dolorosa recordação d'aquelles rapazes e d'aquelle velho, parecia surgir ao mysterioso apello da noite, e vaguear, como uma apparição phantastica, por entre essas arvores que menina a viram e menina a protegeram do sol abrazador dos campos.

Jorge ainda não esgotára as lagrimas consagradas á memoria da irmã. Tinha-as nos olhos, quando a tinha no pensamento a ella.

Pouco e pouco, por uma insensivel transição, a imagem de Bertha substituiu a de Beatriz.

Differentes eram as impressões que esta nova imagem lhe produzia, differentes e indecifraveis quasi.

Já vimos que antagonismo de sentimentos havia no coração de Jorge em relação á filha de Thomé da Povoa.

Como luctavam a involuntaria attracção que por ella sentia, com a reflectida resistencia que lhe oppunha. Lidava por levantar obstaculos ao progresso do violento affecto que lhe ia tomando o coração, e a seu pezar via que esses obstaculos eram inuteis. Inventava defeitos que lhe desprestigiassem o caracter de Bertha, accusava-a de vicios de educação que ainda lhe não reconhecêra, fingia-se convencido da leviandade d'aquella pobre rapariga, e com toda a austeridade do seu caracter sisudo lavrava contra ella a sentença condemnatoria; mas no fim de tudo isto achava-se cada vez mais subjugado; revoltava-se-lhe debalde a consciencia contra esta fraqueza, em vão revelava com maneiras rudes e quasi hostis para com Bertha este desgosto de si mesmo que tava experimentando... o effeito era cada vez mais pronunciado.

O que tinha acabado de ouvir a Thomé augmentára-lhe aquella inquieta lucta de espirito.

A ideia de inclinação reciproca de Bertha e de Mauricio irritava-o e affligia-o.

Não eram as consequencias do facto que o assustavam. Jorge não acreditava na sinceridade das affeições de Mauricio; sabia quanto ellas eram fugazes e estava convencido de que a proxima partida do irmão bastaria para desvanecer essa paixão nascente.

E comtudo não lhe sahia do pensamento aquillo. Torturava-o aquella ideia, não lhe permittia repouso.

A consciencia de Jorge aventurava, muito a mêdo, a vaga explicação d'este enigma psychologico que se estava passando n'elle, mas Jorge recusava dar attenção áquella voz.

Ha casos assim, em que nem comnosco somos sinceros, em que se faz mais evidente do que nunca esta especie de dualidade unificada em todo o individuo, porque guardamos discretamente de nós um segredo nosso, e luctamos comnosco em opposição declarada.

A dominios tão intimos da consciencia seria porém irreverente levar a luz da analyse; aguardemos que a ulterior evolução de affectos melhor nos revele o segredo que ia no coração de Jorge.

Era já noite avançada quando chegou aos ouvidos do pensativo rapaz o ruido de uma porta que se abria; pouco depois passava Mauricio pela extrema do bosque, cantando distrahidamente:

Além, n'aquella avenida
De platanos e salgueiros,
Foi que em teus beijos primeiros
Bebi a primeira vida.

A luz do luar batia-lhe em cheio na figura e não o deixou passar incognito.

Jorge, reconhecendo-o, chamou-o em alta voz.

Mauricio parou surprendido.

— Quem me chama?

— Sou eu.

— Tu?! Jorge!

— Sim, pois quem havia de ser?

Mauricio caminhou ao encontro do irmão.

— Transportas-me de surpreza em surpreza! uns dias a seguir da janella do teu quarto o caminhar das nuvens, outros a errar á meia noite por entre as sombras dos bosques! Em que havia de dar a arithmetica!

— Cheguei ha pouco. Abafava lá dentro. Vim para aqui esperar-te, porque desejava conversar comtigo.

— O tom é grave e serio; é de crer que o assumpto corresponda.

— Não te enganas. É bastante serio o que tenho para dizer-te.

— Penetremos então na sombra druidica d'este bosque, para augmentar a solemnidade da scena.

— Peço-te que deixes para outra occasião as tuas observações joviaes; repito-te que é serio o que tenho a dizer-te.

— Pois aqui me tens serio como o assumpto. Falla.

Jorge guardou ainda por instantes silencio. Sob os passos dos dois irmãos ouvia-se estalar as folhas sêcas que alastravam o chão.

— Mauricio — principiou Jorge a final — Thomé procurou-me hoje para fazer-me um pedido.

— Hum! — atalhou Mauricio com meio riso — não me enganei, previ logo que se tractava d'isso.

— De quê?

— Fizeram-te queixa de mim, não é verdade? Pintaram-me como um lobo voraz rondando e assaltando o curral da tenra ovelhinha, creada com tanto mimo e recato? e tu, na tua inexperiente imaginação de rapaz serio, viste logo um drama pavoroso em tudo isso e distribuiste-me n'elle o papel de tyranno. Confessa que tudo isto é verdade.

— E estimaria bem que não fosse.

— É o que eu digo. Olha, Jorge, eu sou mais novo do que tu, mas, vivendo mais da vida commum da sociedade, não estou tão sujeito a vêr as coisas sob o colorido particular do prisma, atravez do qual as vêem os que, como tu, trazem quasi sempre o pensamento tomado por altas e abstractas especulações. Com a maior franqueza te confesso que Bertha me agrada, que todos os dias procuro vêl-a, que, se lhe fallo, não perco tempo a dizer-lhe que o anno vae bom para as colheitas ou que hontem esteve mais calor do que hoje; não tenho razões para suppôr que as minhas visitas a importunem. Esta é que é a verdade; mas d'aqui a realisar o typo de Lovelace ou D. Juan Tenorio, incumbindo a ella a parte de Clarisse ou de Elvira, vae muita distancia. Estas coisas, se tu não andasses tão alheado dos negocios terrenos, devias saber que são da pratica commum, em qualquer parte, onde se encontra uma rapariga bonita e um rapaz que se preza de saber apreciar o bello. Ora agora vê lá se ha motivo para o terror tragico que te infundiram.

— Não é terror tragico, é desgosto. Eu bem sei que são usuaes esses galanteios que dizes, essas falsas ostentações de amor, com as quaes se profana e desprestigia tudo quanto ha de mais sancto e respeitavel no coração do homem. Ás vezes succede, é verdade, que uma das partes interessadas, talvez por andar alheada dos negocios terrenos, como dizes, entra com a alma n'essas comedias sociaes, e quando a scena finda, muito a bel-prazer do outro actor e sob os applausos dos espectadores que riem, essa alma sente-se ferida de um golpe mortal. As illusões da mocidade, o suave perfume de um affecto virginal, as primicias de um amor casto, tudo se desvanece n'estas profanações, e não sei que haja espirito tão leviano que ouse tentar a representação d'estas comedias ridiculas e ao mesmo tempo perversas com uma pessoa a quem se devem affeições leaes e respeitos.

— Mas...

— Em uma palavra, Bertha é a filha de um homem honrado; Bertha era a amiga e a companheira de Beatriz e muitas vezes se sentou comnosco á mesa, a que presidia nossa mãe, que a abençoava, quando nos abençoava a nós. Não te lembras d'isso?

— Lembro, e por isso mesmo a amo. Não te disse que havia entre nós recordações de infancia?

— Amas! — exclamou Jorge com uma impaciencia, a que era pouco sujeito. — Que amor! Um amor de que fazes confidentes os primos do Cruzeiro, que sabes tractarem irreverentemente todos os amores, um amor que ostentas sem recato, chegando a sujeitar á apreciação cynica d'esses doidos a mulher que dizes objecto d'elle, um amor que não procuras occultar com aquelle casto e natural pudor de uma alma devéras apaixonada. Que amor esse que apregoas sem escrupulos nem reservas diante de quem quer que seja!

— Mas... como imaginas tu então que se ama, quando se ama devéras? O systema da publicidade applicado ás paixões não será antes uma garantia da boa natureza d'ellas?

Como se nem tivesse escutado estas palavras, Jorge, acelerando um tanto a rapidez dos seus passos, proseguiu com exaltação crescente:

— Nunca amei, nunca senti por uma mulher uma d'estas paixões unicas, dominadoras, exclusivas, a que se sacrifica tudo; mas ás vezes tenho pensado n'isto e julgo haver concebido o que seria para mim o amor, se o sentisse. Se eu um dia amasse, parece-me que procuraria esconder de todos os olhos essa paixão; desejaria que ninguem m'a suspeitasse nem por uma palavra, nem por um gesto, nem por um olhar. Ouvir estranhos fallar sequer na mulher que eu amasse, ferir-me-ia como uma profanação. Não escolheria confidentes, a ninguem revelaria esse segredo da minha alma. A mais alta, a mais casta voluptuosidade, que me produziria este amor seria o poder dizer, quando estivesse só, ninguem no mundo sabe, ninguem suspeita este mysterio do meu coração, senão ella. Para ella só, para essa mulher que eu amasse quereria reservar todas as manifestações dos meus sentimentos, as mais serias e as mais pueris, pertenciam-lhe; e permittir que outros as percebessem era profanar o culto. Só com ella, sim, todas as reservas acabavam; então no gesto, na palavra, no olhar revelaria inteira a minha alma, sem mysterio nem discrição. Aspiraria assim n'esses instantes todo o suave e delicado perfume do amor. Que o mundo, ao vêr-me frio e concentrado, pensasse: «Ahi está um homem de gêlo, este não sabe amar», e que ella só pudesse dizer: «Oh! eu é que sei de que extremos é capaz aquelle amor que ninguem suspeita.»

Mauricio estava maravilhado de ouvir Jorge, que parecia dominado por uma excitação nervosa, ao fallar assim, mais para si do que para o irmão.

Taes expansões eram raras em Jorge e esta era a mais vehemente e completa que o irmão presenciára.

— É singular! — notou Mauricio — N'esta vida tropeça-se a cada passo em uma maravilha. Quem te ouvisse agora não acreditaria que és aquelle rapaz serio, para quem as raparigas nem se atrevem a lançar um olhar furtivo, porque nunca uma phrase de galanteio ou um sorriso as animou a tanto. Estou admirado! e quasi me convenço de que a final sou apenas um simples curioso na arte de amar, cuja metaphysica transcendente tu professas como verdadeiro mestre. A minha sensibilidade é menos exigente, mas por essa mesma razão admiro a suprema delicadeza da tua!

Jorge como que voltou a si e estranhou a exaltação de que se deixára possuir. Rindo e fallando já em tom natural tentou attenuar a impressão produzida, e disse para o irmão:

— A lua tem decididamente uma influencia poderosa até nos animos mais fleugmaticos. Ahi está que querendo eu fallar-te de coisas serias, esqueci-me em uma divagação sentimental, que Deus sabe até onde me levaria. Deixemos isto. Vaes prometter-me, Mauricio, que desestirás de inquietar Bertha e tranquillisarás o espirito a Thomé!

— Ora que ridicula promessa exiges tu de mim! Deixa-me vêr de quando em quando aquella rapariga, que eu te afianço que não corre perigo algum com isso. Quanto mais que eu não posso assegurar que ella de facto me corresponda.

— Não anticipes juizos sobre o effeito incalculavel que póde produzir no espirito d'aquella rapariga a assiduidade das tuas attenções. Bertha é muito nova, tem habitos e gostos de cidade, e não é de crêr que possas ter na aldeia concorrentes que te offusquem. Por isso o melhor é acabar com esse galanteio perigoso para ella. Lembra-te das consequencias que póde ter um tal capricho da tua parte. Além do que parece que já te esqueceste da gravidade da nossa posição e das resoluções que ha dias tomamos.

— Não, não me esqueci; estou prompto para a primeira voz; mas, emquanto espero, desejo dar um adeus á vida de rapaz.

— Mas evita sahir d'ella, semeando remorsos que fructifiquem na tua vida de homem.

— Mas...

— Terminemos. Peço-te, em nome de Beatriz, que não continues galanteando Bertha. Promettes?

Mauricio acabou por prometter.

E horas depois voltavam a casa os dois irmãos.

A lua declinava já no arco esplendido que descrevia no céo.