Emquanto o sapateiro andava pelo Porto farejando o rasto de madre Paula, passavam-se em S. Martinho do Campo acontecimentos extraordinarios e verdadeiramente inesperados, tanto para o leitor como para os personagens d'esta singela narrativa.
Julio de Montarroyo e Aurelia de Magalhães, propellidos ao natural desafogo de suas mágoas intimas, encontravam-se a miudo, quer em curtos passeios, quer em reciprocas visitas, que semanalmente se faziam, sem ultrapassarem jamais os limites de uma estricta e rigorosa observancia das leis do decoro e do respeito devido á posição de cada um.
D. Aurelia, se alguma vez visitava o amigo de seu irmão, quando um ligeiro incommodo o retinha no leito, ia sempre acompanhada da sua criada de quarto e era recebida na presença da velha governante de Julio; e este, pela sua parte, quando visitava a amiga de Helena, tinha sempre todo o cuidado em escolher os dias em que D. Aurelia recebia algumas pobres viuvas que caridosamente soccorria com o excesso do rendimento de sua casa.
Ainda assim, e apesar do cuidado e escrupulo que ambos punham em não dar pasto á maledicencia da aldeia, sem duvida mais acerada e mais venenosa do que a das grandes cidades, não faltava quem esperasse, como coisa mais ou menos natural e proxima, a noticia de um enlace matrimonial contrahido entre os dois.
Ora convem dizer-se que entre D. Aurelia de Magalhães e Julio de Montarroyo se estabelecera esse mutuo e invisivel laço de sympathia que une e impelle irresistivelmente uns para os outros todos os grandes desgraçados, fazendo-os compartilhar, n'um sentimento de inquebrantavel fraternidade, as dôres intimas que os dilaceram.
Assim, Julio de Montarroyo sentia grande lenitivo á sua magoa quando podia referir á irmã de Gustavo toda a grande chaga incuravel que Helena de Noronha lhe abrira no peito; e a amiga de Helena tambem não se sentia menos feliz quando podia recordar, na presença de quem bem a comprehendia, todo o enorme thesouro de venturas que perdêra com o marido e com o filho, prematuramente mortos.
Julio de Montarroyo não occultara de D. Aurelia o encontro com o Tomba e a missão de que o encarregara na esperança de poder descobrir, com a existencia de madre Paula, qualquer indicio do destino que tomara a irmã Dorotheia.
— Uma coisa que extraordinariamente me preoccupa e mortifica, — dizia elle — não é tanto a ingratidão de Helena como é este mysterio que pesa sobre a sua existencia! Que ella sahiu de Portugal não resta duvida, pois que nem minha prima Lucilia nem nenhuma das educandas e noviças que com ella estiveram no Sardão ouviram mais noticias suas. Mas, sendo assim, como é que nem em Pariz nem em nenhuma das casas religiosas do estrangeiro, que todas percorri e visitei, eu pude descobrir indicios da sua passagem?
— As congregações religiosas — observou sensatamente Aurelia de Magalhães — ao que me consta, parece que teem o costume de mudar frequentemente o nome das irmãs; de modo que a que aqui se chama irmã Dorotheia, alem chama-se irmã Ephigenia, n'outra parte irmã Sophia, e assim por deante, tornando por esta fórma impossivel estabelecer a identidade de cada uma d'ellas. Quem nos diz a nós que, com Helena, não terá succedido o mesmo?
— Sim; e creio bem que succederia. Porém, ainda quando assim fosse, Helena não teria deixado de me reconhecer, se se encontrasse em qualquer das casas que percorri. Porque não me limitei a simples informações. Apparentando decidido amor pelas instituições jesuiticas, consegui, á custa de donativos, captar a confiança e a estima de todos os superiores e superioras, sendo em toda a parte recebido como um verdadeiro amigo e auxiliar valioso; isto é, como um jesuita de casaca.
D. Aurelia sorriu tristemente.
— E quem lhe assevera que, sob essa apparencia de estima e confiança, o senhor não era rigorosamente vigiado e a sua verdadeira individualidade absolutamente conhecida?
— Impossivel! Quem poderia denunciar-me, se ninguem estava na posse do meu segredo?
— Isto é apenas uma supposição que eu faço — apressou-se a dizer D. Aurelia. — Tenho ouvido attribuir aos jesuitas tanta sagacidade e astucia na defesa dos seus intimos interesses, que não seria para estranhar que elles pudessem illudir e annullar todos os esforços empregados pelo sr. Julio para encontrar Helena...
— Não, não! Helena morreu. Do contrario, eu teria tido noticias d'ella... Se o Tomba encontrar madre Paula, ella confirmará, estou certo, esta minha funesta previsão...
— E se, pelo contrario, Helena viver ainda?
Julio pareceu agitado por uma pilha galvanica.
— Oh! se fôr viva, tornarei a vel-a, ainda que para isso tenha de sacrificar os ultimos dias da minha vida!
Este dialogo passava-se em casa de D. Aurelia, ao cahir da tarde. A irmã de Gustavo, no intuito de proporcionar a Julio, seu vizinho e amigo de seu irmão, uma distracção que lhe aligeirasse as horas tristes das pesadas e longas noites de inverno, costumava tambem receber o parocho da freguezia, que não era já aquelle saudoso padre Luiz dos tempos de Norberto de Noronha.
Era todavia um homem amavel, bondoso e illustrado, de trato simples e affectuoso, tendo sempre um sorriso para todas as tristezas, uma palavra de consolação para todas as amarguras.
Repartia-se o bom do cura entre estes dois desgraçados, ora visitando Julio, ora visitando D. Aurelia, succedendo que raras vezes deixavam os tres de encontrar-se juntos e de, em commum, trocarem impressões sobre os acontecimentos que se succediam, quer na localidade, quer mesmo n'outros pontos do paiz, e cuja noticia lhes chegava pelos jornaes.
D'esta vez, o padre Manoel faltára á hora habitual da visita e entrava na sala, já tarde, com o ar de quem trazia um acontecimento grave a noticiar.
— Hão-de ter a bondade de me desculpar a demora — disse elle com o seu eterno sorriso bondoso — mas não foi culpa minha...
— Já cá estavamos sentindo a sua ausencia, sr. padre Manoel... — disse amavelmente D. Aurelia.
— Que quer v. ex.ª, minha senhora? Esteve em minha casa o Joaquimsinho de Thayde contando-me um caso extraordinario...
— Sim?
— É verdade. Imagine v. ex.ª que ha oito dias que se vê todas as noites na Senhora do Porto uma mulher desconhecida, prostrada com a face no chão, resando em frente á porta principal do templo e passando assim as longas horas da noite n'uma oração muda. De manhã, aos primeiros alvôres do dia, some-se e ninguem mais a vê!
— Isso, naturalmente, ha-de ser alguma das muitas phantasias dos invencioneiros das nossas aldeias — disse D. Aurelia sorrindo — É lá crivel que uma mulher possa passar assim oito dias prostrada á porta d'um templo e sumir-se como um demonio de magica, sem que se saiba o caminho que toma e o destino que leva?
— O Joaquimsinho de Thayde assevera que a viu de longe; mas não se atreveu a aproximar-se, apavorado pelo mysterio que cerca a desconhecida e que já vae formando lenda.
— Então ninguem se atreve a aproximar-se d'ella e a interrogal-a? — disse Julio.
— Ninguem. Como v. ex.ª sabe, esta nossa gente do Minho é temivel com um cacête nas unhas, fazendo frente ao adversario que se lhe apresenta de cara levantada, n'uma arremettida franca. Porém, desde que a sombra de um mysterio extraordinario lhe excita a phantasia, torna-se supersticiosa, fraca, timida, e foge do rugir de uma folha sêcca com a precipitação de quem foge do diabo. Por isso, não admira que, oito dias volvidos, sobre a extraordinaria apparição que a todos apavora, ainda até agora ninguem se haja atrevido a devassar aquelle estranho mysterio.
— Mas o que julgam elles que seja?
— As versões variam. Uns querem que seja a alma penada da D. Rita de Briteiros que anda pela Senhora do Porto a espiar os seus peccados, que eram muitos... Outros pensam que, embora aquelle mysterioso vulto apresente fórmas humanas, é comtudo um enviado do espirito das trevas para attrahir alli algum dos incautos habitantes de Thayde e leval-o em corpo e alma para o inferno...
— E vossa reverendissima o que diz? — interrompeu Julio.
— Eu digo que, se não é a sombra de alguma arvore, transformada pelos olhos medrosos dos aldeãos de Thayde n'um vulto de mulher sobrenatural, então é alguma desgraçada a quem o remorso afflige e que busca na solidão da noite e no balsamo da oração o allivio e perdão de suas culpas.
Julio ouvia a estranha noticia, trazida pelo padre, com grande curiosidade e interesse. Dir-se-hia que uma voz secreta o avisava de que aquelle facto extraordinario, apparentemente absurdo e inacreditavel, como tantos que a phantasia da gente das aldeias borda a capricho nas noites interminaveis do inverno, ao fogo da lareira, tinha relação intima com a sua triste historia, feita de amarguras e de esperanças perdidas.
— E acredita, padre Manoel — disse elle por fim — que a oração, por tal modo, constitua balsamo efficaz para as tribulações de uma alma alanceada de remorsos?
— Creio que a oração é sempre um balsamo consolador de afflictos — respondeu o padre. — Quando nas angustias do soffrimento volvêmos os olhos á roda de nós e não encontramos em nada do que os cerca um lenitivo á nossa dôr, então volvemos os olhos ao céo e, pondo em Deus toda a esperança, achamos o conforto e o allivio que nenhuma força humana póde dar-nos.
— Mas n'essa mulher, que os aldeãos de Thayde phantasiaram ou realmente viram na Senhora do Porto, não ha apenas uma alma crente, buscando na oração o balsamo suavissimo da esperança, que as coisas terrenas já não pódem dar-lhe: ha uma expiação, ha um rigor de penitencia, que revela a existencia de faltas, erros e talvez crimes, cuja lembrança aterra e apavora a propria creatura que os commetteu...
— Por isso eu disse a v. ex.ª — volveu o padre, com bondoso sorrir — que, a ser verdade o que se diz, não ha duvida que se trata de uma desgraçada, atormentada pelo remorso, pedindo o allivio e o perdão de suas culpas...
— Se a expiação corresponde ás faltas commettidas, devem estas ter sido muito grandes para que a propria culpada busque expial-as por semelhante modo.
— Só Deus lê no coração da creatura e só Elle póde julgar com justiça dos erros de cada um... Em todo o caso, o que é evidente é que estamos em frente de uma creatura desgraçada e como tal merecedora da nossa compaixão...
Julio calou-se por alguns instantes, parecendo meditar nas palavras do sacerdote.
— Ás vezes — concluiu por fim — a imaginação exagera em nós a gravidade de erros commettidos, avultando-os até os fazer tomar as proporções de crimes horrorosos que nos apavoram e mortificam... Póde ser que essa pobre creatura seja uma d'estas allucinadas que, por um excesso de sensibilidade doentia, se julgam culpadas de crimes que não commetteram...
— Tudo póde ser — tornou o sacerdote — Na minha opinião, toda a penitencia significa arrependimento e todo o arrependimento affirma a existencia de uma alma bôa, embora um momento transviada do recto caminho pelo diabolico poder das paixões... Alma feita para o mal e endurecida no crime não experimenta arrependimento. Póde simulal-o, é certo, por mêdo ao castigo, mas, em tal caso, não busca as sombras da noite nem a solidão dos logares desertos para exercitar o seu fingimento... Pelo contrario, ostenta-se publicamente á luz do dia, prostra-se nos templos, em face dos altares, aos olhos de todos aquelles a quem quer illudir... derrama lagrimas fingidas, bate murros no peito, grita que tudo, espera de Deus e tem o diabo a rir no coração. Não é d'esta natureza a mysteriosa penitente que traz sobresaltados os habitantes de Thayde, creio eu, porque desapparece e esconde-se, aos primeiros clarões da aurora, nas covas do monte, sem que ninguem conheça onde se occulta.
— O que é estranho — ponderou Julio — é que ninguem até agora se lembrasse de verificar se realmente se trata de uma creatura humana, ou se tudo isso não passa de uma absurda ficção de espiritos broncos... Porque não irá o proprio regedor com os seus cabos proceder a uma diligencia n'esse sentido?
— Disse-me o Joaquimsinho de Thayde que o regedor é o primeiro a recolher a casa ao cahir da noite, tomado de um terror supersticioso... Para aquella gente, é ponto de fé que se trata da D. Rita de Briteiros, morta ha dois mezes, com fama de ter envenenado o irmão e a cunhada para lhes herdar os bens. E o regedor de Thayde não quer nada com almas do outro mundo..
— O que me parece — opinou D. Aurelia — é que tudo isso não passa de uma grosseira invenção d'algum malevolo inimigo da D. Rita, que nem mesmo depois de morta quer deixar-lhe o descanço da sepultura... O sr. padre Manoel não ignora quanto é má e ás vezes profundamente perversa esta gente da aldeia, perseguindo com os seus odios, ainda além da campa, aquelles que em vida lhe não mereceram sympathias...
— Sim, é certo — concordou o padre Manoel — e creio bem que a sr.ª D. Aurelia tem razão em pensar assim, tanto mais que a D. Rita — Deus lhe perdôe! — era geralmente odiada, e supponho que com algum motivo...
— Devemos perdoar aos mortos — tornou D. Aurelia n'um tom de suave recriminação — pois não é justo que vamos revolver-lhes o pó da sepultura para desenterrar crimes de que a justiça humana lhes não tirou contas e que, affectos ao tribunal da justiça divina, só a Deus pertence julgar...
— Eu tambem concordo, minha senhora — replicou o padre Manoel — que devemos perdoar aos mortos e deixal-os repousar na eterna paz do sepulchro. Todavia, não deixo de reconhecer que esta deshumana e talvez impiedosa crueldade do povo para os que se finaram e que em vida não seguiram as normas do bem e da virtude, tem um alto fim moralisador, qual é o de dizer aos que ficam que os seus crimes nem mesmo depois da morte obteem o perdão e o esquecimento do mundo...
— Mas quantas abusões, quantos erros, quantos absurdos e quantas injustiças lançadas sobre a memoria de pessoas erroneamente julgadas pela opinião, sempre fallivel, do vulgo ignaro? — interrompeu Julio — O sr. padre Manoel não ignora decerto que, por via de regra, não são os peores aquelles que o povo aponta como maus...
— Vox populi, vox Dei... A voz do povo é a voz de Deus — argumentou o padre Manoel, repetindo o proloquio latino.
— Mas tambem vox populi, vox diaboli... — retrucou Julio — E mais vezes é a voz do povo a voz do diabo, do que a voz de Deus. Depois, vossa reverendissima bem sabe, argumentar com superstições absurdas, com apparições sobrenaturaes de almas penadas, é uma cobardia tão abjecta e repugnante, que só tem desculpa na estupidez do vulgo semelhante fórma de castigo infligido aos mortos!
O padre Manoel não insistiu, limitando-se a responder:
— Isto já vem assim do principio do mundo...
— E porque vem assim, devemos nós consentir que assim continue? Não me parece justo. Illustremos o povo, desfaçamos-lhe erros e abusões em que vive. Procuremos conduzil-o ao caminho do bem pela consciencia do dever e não por principios erroneos de superstição absurda. E, pois, que em Thayde não ha alguem sufficientemente sensato e honesto para dar um exemplo de dignidade humana, eu irei esta noite mesmo á Senhora do Porto investigar o que ha de verdade na mysteriosa apparição.
— Pois quer aventurar-se, por uma noite d'estas, a ir d'aqui á Senhora do Porto! — observou D. Aurelia, espantada.
— E porque não? — respondeu Julio — Conheço o caminho e o meu cavallo é seguro. Dentro de uma hora, estarei lá.
— É uma imprudencia! — reprovou o padre Manoel — V. ex.ª sabe que as nossas estradas são mal frequentadas de noite...
— Estou habituado a toda a especie de encontros. Na minha mocidade fiz muitas vezes o caminho, de noite, de Braga para Lanhoso, e era no tempo do Papa Assucar...
— A mysteriosa apparição — tornou o padre Manoel — póde mesmo não ser mais do que o pretexto para uma cilada.
— Uma cilada, a mim! — exclamou Julio — Não ha nada menos provavel... Quem poderia esperar que eu, vivendo em S. Martinho do Campo, me importasse com o que se passa de noite na Senhora do Porto?
— Não digo que seja uma cilada propositadamente armada para v. ex.ª. Mas é sempre um perigo ir a gente metter-se nas ratoeiras armadas para outros — aconselhou prudentemente o padre.
Julio sorriu desdenhoso.
— Seja como fôr — decidiu elle — irei certificar-me do que se trata. Se é um conluio de malfeitores que pretendem por esta fórma espalhar o terror no sitio e apavorar os credulos habitantes de Thayde, para mais á vontade effectuarem o assalto e o roubo, a auctoridade ficará sabendo com quem tem de se haver. Se, pelo contrario, é uma creatura infeliz, uma existencia desgraçada que busca na penitencia e na oração o remedio para as dôres da alma, é uma obra de caridade levar-lhe o balsamo da piedade e da compaixão como lenitivo a tanto soffrer.
E consultando o relogio d'algibeira:
— São 10 horas — disse elle — Vou partir. Se antes da meia noite não estiver de volta, amanhã de manhã poderá vossa reverendissima ouvir em minha casa a narração fiel do que tiver acontecido.
— Repare, meu amigo — tentou impedir D. Aurelia — que a noite está tempestuosa e que vae pôr em perigo a sua saude, bastante abalada.
— A minha existencia — replicou Julio com amargura — ha muito que decorre batida pelos vendavaes do infortunio. Que importa uma noite de chuva a quem traz a alma obscurecida n'uma perpetua noite de tempestuosas desgraças? Até amanhã! Nada receiem por mim, que eu vou preparado para tudo.
E sahiu, na resolução inabalavel de cumprir o que dizia.