No dia seguinte de manhã, D. Aurelia e o padre Manoel, movidos da extraordinaria curiosidade de saberem o resultado da audaciosa aventura de Julio de Montarroyo, correram a casa d'este com o fim de o interrogarem.

O excentrico apaixonado de Helena de Noronha estava no leito ardendo em febre.

Ao vêr entrar D. Aurelia e o padre Manoel, estendeu os braços para elles, exclamando:

— É horrivel, meus amigos, é horrivel!

— Como assim! Viu alguma coisa? — interrogou o padre com espanto.

— Vi... vi!...

— E então?

— Então... oh! não posso dizer-lhes o que vi...

— Malfeitores por certo... — aventurou D. Aurelia — teve de bater-se com elles...

— Não... não! — contradisse o doente com vehemencia — Não se trata de malfeitores... Ha effectivamente alli uma creatura extraordinariamente desgraçada, um ser mysterioso que tem alguma coisa de sobrenatural e phantastico, impossivel de reconhecer...

Padre Manoel e D. Aurelia trocaram um rapido olhar como se quizessem significar um ao outro que havia talvez motivo para duvidar da integridade mental do seu interlocutor.

Julio, com os olhos brilhantes e a face afogueada pela febre, n'uma grande agitação, proseguiu:

— Fui. A noite estava realmente tempestuosa e horrivel. Atravessei Quintella sob uma chuva violenta e, quando cheguei a Thayde, o temporal desencadeou-se n'um vendaval desfeito. Ainda assim, não parei. O meu fito era ganhar a Senhora do Porto e surprehender o mysterioso vulto no extasis da oração. Chegando ao sopé do sanctuario, apeei-me, prendi o cavallo a uma arvore e, envolto na minha capa, com o revolver engatilhado, fui subindo lentamente o escadorio, até á crista do monte onde se ergue o templo da Senhora... A treva era profunda e eu mal poderia divisar quem quer que fosse, por muito perto que estivesse de mim, se a luz dos relampagos, fendendo a miudo o espaço, me não illuminasse o caminho. No alto, tudo estava em silencio e tudo deserto...

— Não viu, portanto, pessoa alguma? — interrogou o padre Manoel.

— Quando cheguei, não vi. Mas, pensando que talvez a tempestade tivesse retardado a vinda á penitente, resolvi-me a esperar alli, até de manhã, para poder testemunhar com verdade até que ponto os terrores da gente de Thayde tinham fundamento, ou então que todas essas atoardas de uma phantastica apparição não passavam de grosseira patranha de torpes invencioneiros. Passei assim mais de uma hora, encostado á porta principal do templo, sem fazer um movimento, quasi sem respirar.

— Que estranha imprudencia a sua, sr. Julio de Montarroyo! — não pôde deixar de exclamar a irmã de Gustavo. — Se não estava ninguem no local, como pôde permanecer tanto tempo encostado ao templo, debaixo d'um temporal desabrido, provocando um arrefecimento que podia prejudicar-lhe a saude?

— Morrer hoje ou morrer amanhã, que importa, minha senhora, quando não sentimos o menor apêgo á vida? Eu tinha ido alli para desvendar um mysterio ou desfazer uma illusão de espiritos ingenuos e credulos. O meu dever era ficar e fiquei... Ainda bem que fiquei, porque, uma hora passada, os meus olhos, habituados á escuridão, viram mover-se na treva da noite um vulto que se aproximava lentamente do portico a que eu me encostava.

— Então sempre era certo! — exclamou o abbade triumphante.

— Certissimo. O vulto, que não suspeitava a minha presença alli, a semelhante hora, chegou junto do primeiro degrau do templo, ajoelhou e n'um grito lancinantissimo, implorou a morte á Senhora do Porto!

— A morte! — exclamaram a um tempo D. Aurelia e o padre Manoel.

— A morte, sim! — confirmou Julio — Era uma voz de mulher, lamentosa e dôce, e de tal modo parecida com... com outra voz que eu já tinha ouvido, que todo me senti estremecer e fiquei como que pregado á porta do templo! Essa voz repetia por entre gemidos, com a face collada no degrau da egreja: — «Senhora do Porto! Mãe Misericordiosa! ouve a minha supplica, dá por terminado o martyrio da minha existencia, leva para ti esta miseravel creatura!» —

Depois soluços e gemidos abafados seguiram-se a estas palavras...

— É singular! — disse D. Aurelia.

— E extraordinario! — accrescentou o padre Manoel.

— Não posso dizer-lhes, meus amigos, o que se passou em mim... Tomado do sagrado respeito que inspiram os grandes desgraçados que só ao céo dirigem as suas supplicas, permaneci por alguns minutos mudo e immovel como uma estatua. Todavia, cada um d'aquelles gemidos penetrava no meu coração como uma lamina de aço. Identifiquei-me de tal modo com aquella dôr, que cheguei a pensar que conhecia de ha muito tempo a infeliz creatura que alli jazia prostrada e que a minha presença devia ser-lhe como que o apparecimento de um irmão querido. Então, sem pensar no que fazia, recordei um nome, o nome de uma mulher que eu conhecia e que devia ser aquella mesma: «Helena!» — bradei-lhe — «Helena!» — e desloquei-me da porta do templo descendo um degrau. Ao ouvir este nome, a mysteriosa creatura soltou um grito de terror, levantou-se espavorida e fugiu... Corri em seu seguimento, mas a escuridão da noite e a incerteza do caminho não me permittiram alcançal-a... Sumiu-se. Procurei-a toda a noite chamando-a em altos brados, dizendo-lhe o meu nome, porém tudo foi baldado!

— Não pôde então conhecer quem fôsse a estranha penitente? — aventurou-se a dizer D. Aurelia.

— Os meus olhos não puderam distinguir-lhe as feições, mas o meu coração reconheceu-a. Era Helena, era a filha de Norberto de Noronha, a antiga herdeira d'esta casa, a penitente que eu surprehendi esta noite em Nossa Senhora do Porto!

— Talvez se enganasse, meu amigo... Se fosse ella, para que fugiria ouvindo que a chamavam pelo seu verdadeiro nome e que quem assim a tratava era por força uma pessoa amiga? — retorquiu D. Aurelia.

— De noite todos os gatos são pardos — philosophou plebeiamente o padre Manoel — Já uma noite, vindo eu das Caldas, vi debruçado sobre o muro da estrada um homem com uma fouce roçadoura na mão, como quem se preparava para me abrir a cabeça de meio a meio quando eu fosse a passar. Suspeitando que fosse algum ladrão, sustei a egua e disse ao meliante que sahisse d'alli porque queria passar. O vulto não respondeu e agitou com mais força a fouce roçadoura n'uma silenciosa ameaça. Eu então era rapaz. Desesperado por aquella insistente audacia, puxei de um revolver e intimei tres vezes o meu aggressor a retirar-se d'alli sob pena de lhe mandar uma bala. Não obedeceu e eu então dei ao gatilho — pum! pum! pum! — e mal vi que elle deixara cahir a foice com que me ameaçava, metti esporas á egua e cheguei n'um galope a casa. Ao outro dia fiquei muito admirado de não ouvir fallar do caso de apparecer algum homem morto na estrada e, depois do meio dia, montei a cavallo e lá fui eu muito disfarçadamente estudar o sitio onde tinha tido o terrivel encontro... Não lhes minto se lhes disser que fiquei envergonhado ao reconhecer que o malfeitor contra quem eu tinha disparado era um carvalho inoffensivo que bracejava para fóra do muro uma das suas vergonteas, a tal que eu tomára por uma foice roçadoura e que lá estáva cahida na estrada, cortada pela bala do meu revolver... De noite, a gente vê coisas extraordinarias, que não passam de ordinarissimas coisas, observadas de dia, á luz do sol...

— Sr. padre Manoel — protestou Julio, agitado pela febre e deveras irritado pela incredulidade insultuosa do padre — faça-me a fineza de acreditar que eu nem vinha das Caldas nem sentia a pesar-me no espirito o mêdo deprimente de uma foice roçadoura, quando vi aproximar-se de mim a penitente de que se trata. Estava tranquillo como v. s.ª o está agora e tinha o entendimento tão claro como v. s.ª o póde ter — logo de manhã, em jejum, quando vae para o altar dizer missa.

O padre Manoel, que não era tolo, inclinou a cabeça n'um sorriso bondoso e apressou-se a dizer:

— Não foi meu proposito pôr em duvida a veracidade da sua narrativa, sr. Julio de Montarroyo... Creio que v. ex.ª visse e ouvisse tudo o que diz, mas podia muito bem acontecer que, por uma illusão que a noite favorecia, tomasse como sendo a filha de Norberto de Noronha uma outra pessoa bem differente... Era simplesmente n'este ponto que a confusão podia dar-se...

Julio aquietou-se um pouco com esta explicação do padre.

— Tambem não affirmo que fosse ella — disse — mas tenho a convicção intima, profunda, de que não é outra.

— E agora o que tenciona fazer, sr. Julio? — perguntou D. Aurelia.

— Voltar lá. Procurei-a durante a noite até de manhã. Bati o monte em todas as direcções, observei-o em todos os recantos, e não pude atinar com o sitio em que ella se occultou. Todavia, é certo que ella se escondeu alli, porque nem teria forças para me fugir n'uma longa caminhada a pé, nem a vereda que seguiu lhe permittiria poder andar muito tempo a descoberto, sem que eu a encontrasse.

— Mas — observou D. Aurelia — se a mysteriosa penitente, surprehendida por v. ex.ª, fugiu, é que não quer ser vista; e sabendo que é conhecida a sua frequencia n'aquelle sitio, áquella hora, certamente não voltará lá com receio de ser novamente surprehendida... Mórmente se v. ex.ª acertou chamando-lhe pelo nome verdadeiro...

— Sim, é certo.. — concordou Julio — mas eu tenho de cumprir o meu dever que me manda procurar vêl-a outra vez, fallar-lhe e concorrer quanto possivel para pôr termo áquelle soffrimento.

— Tenciona, pois, voltar lá esta noite?

— Tenciono.

— Afigura-se-me trabalho inutil, sacrificio baldado.

— Porque?

— Pelas razões que já lhe disse. Se é realmente Helena de Noronha e não quer tornar conhecida a sua presença, esta noite evitará apparecer junto do templo onde sabe que é esperada pela pessoa que a reconheceu e lhe chamou pelo nome...

— O que devo fazer então?

— Esperar que ella, perdido o receio, volte a apparecer regularmente, e tomar todas as medidas para a seguir de longe até lhe descobrir o paradeiro.

— É o que se me afigura mais prudente e mais acertado — approvou o padre Manoel. — Demais, o sr. Julio de Montarroyo está n'um estado tal de excitação febril, que uma segunda noite passada como a primeira póde alterar-lhe profundamente a saude. Eu me encarrego, se v. ex.ª quer, de mandar vigiar o local, e saber se a penitente continua a apparecer lá...

— Com a condição, porém, de que não hão de perturbal-a na sua oração nem afugental-a d'aquelle sitio.

— A recommendação é inutil. Descance v. ex.ª que tambem eu e a sr.ª D. Aurelia estamos com verdadeiro interesse em saber quem é a mysteriosa creatura de que se trata. Prometta-me que não sahirá esta noite a expôr a saude a um verdadeiro perigo, e amanhã ficará sabendo com certeza se a penitente voltou ao templo.

Combinadas as coisas d'este modo, despediram-se os dois do doente, recommendando-lhe socego e promettendo voltar no dia seguinte a informal-o do que tivesse occorrido.

Já cá fóra, disse o padre Manoel á D. Aurelia:

— E que lhe parece a v. ex.ª este caso extraordinario que acabamos de ouvir?

— Parece-me — respondeu a irmã de Gustavo — que o nosso pobre amigo tem razão para estar bastante sobreexcitado com o que lhe succedeu.

— E v. ex.ª acredita que elle visse lá alguem?

— Acredito... Porque não hei de acreditar, se o que elle conta é a confirmação dos boatos de que v. s.ª se fez echo?

— Oh, minha senhora! mas repare v. ex.ª que: eu apenas contei como extravagante phantasia dos habitantes de Thayde o rumôr que corria entre elles de que apparecia na Senhora do Porto uma alma do outro mundo.. a alma da D. Rita de Briteiros.

— Mas v. s.ª não crê nas almas do outro mundo; e certamente não recusará acreditar que a estranha apparição tenha realmente um fundo de verdade, e que, em vez de ser uma alma penada, seja uma creatura em corpo e alma, como tantas que, batidas pela desgraça irremediavel, fogem dos povoados para habitarem os logares desertos, entregando-se á oração e á penitencia!...

— Custa-me muito menos a crêr que o nosso amigo, allucinado pela febre e pela estranha situação em que se encontrava, áquella hora e em semelhante local por uma noite tão tormentosa, foi victima de uma allucinação e julgou vêr o que não viu nem podia, vêr... Não reparou v. ex.ª que elle tinha as faces afogueadas e os olhos brilhantes da febre? Quem nos diz a nós que tudo aquillo não será o delirio da doença? O mais acertado parecia-me chamar o medico...

— Conhece Julio de Montarroyo e sabe a organisação nervosa e irritavel que elle é... Se lhe mandamos o doutor sem elle o reclamar, é muito capaz de não o receber e de se offender comnosco...

— Para tudo ha meio, minha senhora... Contamos ao doutor o que se passou e elle simulará um motivo qualquer para lhe ir fallar, sem ser o da doença... Por exemplo: pedir-lhe o seu concurso para qualquer obra de beneficencia... ou pedir-lhe informações sobre qualquer instituto medico das grandes cidades que elle percorreu... Qualquer pretexto serve. O que não devemos é deixal-o abandonado dos soccorros medicos, porque o pobre homem, se já tinha falha antes d'este caso, agora, com a mania de que viu a filha de Norberto de Noronha, é muito capaz de ensandecer de todo...

D. Aurelia intimamente revoltada contra esta apreciação do padre, teve bastante força em si para responder apenas:

— Durante o tempo que tenho tratado com o sr. Julio de Montarroyo, ainda não pude colher elementos que me auctorisassem a duvidar da sua lucidez de espirito e da perfeita regularidade das suas faculdades mentaes... Se agora me pareceu n'um estado de excitação febril, acho natural que assim succeda depois da noite tempestuosa que passou e do violento abalo que devia ter-lhe causado a apparição falsa ou verdadeira da estranha penitente que elle diz ter visto... Como quer que seja, sr. padre Manoel, a doença de que presentemente soffre o sr. Julio de Montarroyo não é d'aquellas que se curam com synapismos e xaropes receitados pelo medico.

— O que quer então v. ex.ª que se faça?

— Que v. s.ª cumpra o que prometteu... Que encarregue alguem de sua confiança para vigiar o templo da Senhora do Porto e vêr se realmente Julio de Montarroyo tem razão e os habitantes de Thayde tambem...

O padre Manoel encolheu os hombros:

— Pois v. ex.ª julga...?

— Julgo que ha de haver um motivo para que tal boato se espalhasse, como creio que o sr. Julio de Montarroyo era incapaz de vir affirmar coisas que não tivessem succedido, ou que pelo menos se lhe não tivessem affigurado... O nosso dever, pois, é tirarmo-nos de duvidas e esclarecer quanto possivel este mysterio.

— Está bem! Se v. ex.ª assim o deseja, mandarei o João Mil-homens, que é arrojado e valente, e não crê em almas do outro mundo, rondar a Senhora do Porto, esta noite e todas as outras que se lhe seguirem, até não restar duvida de que não apparece lá viva alma...

— Porém, que isso se faça em segredo, com a maxima prudencia e cautella, para não causar alarme na povoação nem dar logar a que a mysteriosa penitente se afaste d'estes sitios.

— Fique v. ex.ª descançada, que o Mil-homens é fino como uma raposa e tem o faro de um cão de caça para descobrir o esconderijo da tal creaturinha, onde quer que ella se occulte. Vou já d'aqui prevenil-o e estou bem certo que não ha nada, ou, se ha alguma coisa, não levará muito tempo que não saibamos tudo.

O aldeão encarregado pelo padre Manoel de vigiar durante muitas noites seguidas o templo e immediações da Senhora do Porto nada pôde observar que confirmasse a narrativa de Julio de Montarroyo, nem sequer os boatos que corriam entre os aldeãos de Thayde.

O padre Manoel sorria vaidosamente sceptico ao relatar á D. Aurelia os baldados esforços empregados pelo Mil-homens para descobrir a penitente e dizia:

— São tudo imaginações, minha senhora, são tudo imaginações... Eu já sei o que isto é: um vê uma sombra e diz que é um homem; outro olha e vê um gigante. Vem um terceiro e affirma logo que é um gigantarrão e jura até que o ouviu fallar! Sabidas as contas, vae-se a vêr e não é nada... Eu sempre disse que este sr. Julio de Montarroyo era boa pessoa, mas tinha qualquer propensão para visionario...

D. Aurelia defendia o apaixonado de Helena.

— É certo — dizia ella — que o sr. Julio de Montarroyo é dominado por uma paixão violenta que quasi constitue n'elle uma doença incuravel. Mas não creio que esse estado d'alma o excite e lhe altere por tal modo as faculdades, que o faça imaginar coisas que não vê nem ouve... Isso seria a loucura, e o seu entendimento é por demais lucido para o suppôrmos um allucinado...

— Valha-me Deus! não digo que elle esteja doido varrido... Elle conhece as pessoas e sabe o que diz... Mas n'este caso, minha senhora, tenha v. ex.ª paciencia, eu julgo que elle viu tanto a tal penitente como eu vi os milagres de Santo Antonio...

— Mas acredita n'elles!...

— Acredito, que é o meu dever...

— Pois então acredite tambem o sr. padre Manoel nos factos narrados pelo sr. Julio de Montarroyo, por muito inverosimeis que elles lhe pareçam... Note v. s.ª que elle não diz que prégou aos peixinhos e que elles o ouviram devotamente com muita attenção, nem affirma que fez levantar Norberto de Noronha da sepultura para dizer quem o matou... Conta simplesmente que viu uma pobre mulher prostrada nos degraus de um templo, invocando a Senhora do Porto para que lhe désse a morte... Isto não é tão inverosimil, acho eu, que repugne acreditar-se...

— Minha senhora — volveu o padre Manoel fungando uma pitada — o sr. Julio de Montarroyo não é santo Antonio nem tem como aquelle santo reconhecidas auctoridades theologicas a abonar-lhe a veracidade dos casos que lhe succedem ou que diz haverem-lhe succedido. Demais, minha senhora, S. Thomé tambem precisou de vêr para crêr... Ora eu já me contentava, para crêr, com o testemunho do João Mil-homens, que não é nenhum doutor da egreja, mas que é homem capaz de averiguar se uma coisa que vê é pau ou é pedra. Mas o João Mil-homens diz que não viu nada na Senhora do Porto... Ora se elle não viu nada, como é que os outros podem ter visto?

— É possivel e até provavel que a estranha creatura cuja existencia real o sr. padre Manoel põe em duvida, ao vêr-se surprehendida na sua oração pelo sr. Julio de Montarroyo, tivesse receio de ser novamente encontrada e reconhecida e resolvêsse mudar de sitio e fugir para bem longe...

— Póde ser — acquiesceu o padre Manoel, incredulo.

— No emtanto, e seja como fôr, v. s.ª faz-me o obsequio de continuar a mandar vigiar o local. Eu me encarrego de gratificar o Mil-homens pelo trabalho que lhe está incumbido.

— Para lá vae todas as noites. Mas creia v. ex.ª que tanto faz ir como estar na cama... O homem, não pôde vêr lá pessoa alguma, pela simples razão de nunca lá ter estado de noite essa tal penitente imaginaria que se diz... Os tempos de fé acabaram, minha senhora, e quem reza gosta de o fazer com ostentação, á luz do dia, diante de toda a gente... não se vae pôr de noite, como os mochos e as corujas que chupam o azeite das lampadas, a piar miserias á porta dos templos desertos...