Madre Paula enviára o Tomba ao Porto com uma carta a chamar para junto de si o filho da Irmã Dorothea, sob pretexto de que precisava da sua companhia por alguns dias, para suavisar com a sua presença o aborrecimento do padre Filippe, constrangido a permanecer alli emquanto ella velava o leito de uma amiga intima, perigosamente enferma.

No mesmo dia em que Paulo chegou, a abbadessa approximou-se do leito de Helena e disse-lhe sorrindo:

— Deixas que eu te entremostre, minha amiga, um pedaço do ceu azul da tua existencia por entre as brumas do soffrimento que te opprime?

— O que queres dizer?

— Quero dizer que está n'esta casa, debaixo do mesmo tecto que te abriga, um rapaz que seria o orgulho e a consolação de sua mãe, se sua mãe consentisse em o vêr e lhe fallar...

— Meu filho!? — bradou Helena em sobressalto com um afflictivo gesto de terror — Pois tu, Paula, trouxeste a esta casa esse testimunho vivo da minha deshonra?

— Quem o conhece, senão eu e tu? Para todos os effeitos, Paulo é meu sobrinho, e elle proprio está longe de pensar em que se encontra tão perto de sua mãe...

— Embora! Por Deus, poupa-me a esse enorme sacrificio, a essa horrorosa angustia!

— Helena, porque teimas em te mostrar sem coração, quando toda a tua vida está provando o contrario, filha? Lembra-te de que o mesmo terror experimentaste quando se te fallou em receberes Julio de Montarroyo. E comtudo, a sua presença, em vez de te mortificar, alegrou-te, quasi te restabeleceu... Pois bem; deixa-me apresentar-te agora teu filho. Nada te obriga a reconhecel-o. O segredo fica entre ambas. Se a sua presença te affligir, se continuares a detestal-o, eu o arredarei para longe de ti... Se, pelo contrario, te sentires bem ao lado d'elle, ouvindo-o e apreciando-lhe as nobres qualidades, ficará e continuará a vêr-te, como uma pessoa amiga, na ignorancia absoluta dos laços que o prendem a ti...

Helena de Noronha guardou um silencio indeciso que era quasi uma acquiescencia.

As palavras de madre Paula eram de uma tão irresistivel persuazão, que a doente nada tinha a oppôr-lhes.

— Comprehendes — disse ella — que nem curiosidade nem affecto podem mover-me a receber esse rapaz que para mim não passa de um estranho...

— E como estranho se conservará a teu lado... Quem o duvida? — tornou a religiosa com aquelle meigo sorrir que se prodigalisa aos enfermos impertinentes e caprichosos. — Aqui, ha apenas da minha parte o interesse de que conheças teu filho, que revivas nelle os tempos felizes da tua infancia, recordando nas suas feições as feições de teu pae...

— Pois sim... que venha! — disse por fim Helena, com visivel esforço.

Paulo foi introduzido no quarto da doente.

O mancebo, com a polidez propria das pessoas indifferentes, abeirou-se do leito; e pois que madre Paula lhe explicára que esta approximação tinha unicamente por fim distrahir a sua amiga e desviar-lhe o espirito de dolorosas preoccupações moraes que a obsidiavam, envidou todos os esforços por tornar alegre e interessante a sua conversação.

— Disseram-me que v. ex.ª — principiou elle por declarar, dirigindo-se a Helena — ainda por muito tempo reteria junto do seu leito esta boa e santa senhora que é minha mãe; e esta alarmante perspectiva obrigou-me a vir supplicar-lhe que se restabeleça o mais breve que ser possa, porque, em verdade, minha senhora, começo a sentir-me lesado nos meus sagrados direitos... de filho.

— Não é minha vontade prejudical-o... — replicou Helena fitando-o e estudando-lhe demoradamente as feições. — Quando escrevi á minha amiga Paula, pedindo-lhe a esmola da sua companhia, estava bem longe de suppôr que um tal pedido significasse uma contrariedade para alguem...

— Oh, minha senhora! peço-lhe que não tome á lettra as minhas palavras — atalhou Paulo rindo. — Isto é mero gracejo da minha parte e tanto mais desculpavel quanto é certo que v. ex.ª se me affigura em via de um prompto restabelecimento... E como não quero passar tambem sem o meu quinhão de importancia n'este jubiloso caso de a vermos restituida á saude e á vida, tracto de fazer valer, desde já, os meus direitos a um louvor que não mereço... De resto, minha senhora, eu felicito-me de a encontrar n'um estado que está bem longe de ser o que á minha imaginação se apresentava. Julguei vir encontrar uma velhinha na agonia, uma luz bruxuleante, quasi a extinguir-se; e com grande surpreza e alegria minha, encontro uma senhora nova e formosa ainda. V. ex.ª, embora um pouco abatida pela doença, apresenta um aspecto promettedor de muita vida... Antes assim!

— É demasiado lisongeiro para com uma pobre doente, sr. Paulo de...

— De Noronha, minha senhora — apressou-se Paulo a dizer, notando a hesitação de Helena.

— Ah! v. ex.ª usa esse appellido? — não pôde Helena impedir-se de perguntar.

— Uso, minha senhora; e se quer que lhe falle com franqueza, não sei bem porquê...

— Naturalmente, appellido de seus paes...

— Não os conheci, nunca tive a menor noticia delles... Tanto sei se eram Noronhas como se eram Silveiras... Podiam ser uma e outra coisa, ou podiam não ser coisa nenhuma d'estas... Quem podia talvez dizer-me alguma coisa com verdade a esse respeito era minha mãe...

— Sua mãe! — interrompeu Helena, mal podendo dominar o sobresalto — Conhece-a?

Paulo indicou rindo madre Paula:

— Pois eu não disse ainda a v. ex.ª que minha mãe é esta santa senhora que v. ex.ª tem por amiga?

Madre Paula interveio:

— Não te admires, minha amiga. Paulo habituou-se a chamar-me mãe, não obstante saber que não é a mim que deve a existencia...

— Pois a quem a devo? Que outra mãe conheci eu, que affectos, que carinhos, que disvellos e cuidados devo a outra que não seja a nobre e santa creatura a quem me estou dirigindo? — accudiu Paulo voltando-se para a superiora, — É bem certo — creio-o e não discuto — que devo a existencia a um acto physiologico de terceiros, que me produziram, tão independentemente da sua vontade como da minha, e que por isso mesmo se julgaram desobrigados de me reconhecer e amparar. Mas esse facto não envolve sentimento impeditivo do meu amor e ternura filial para com aquelles a quem tudo devo, a quem considero meus unicos e verdadeiros paes e que são madre Paula e o padre Fillippe.

— Deve então odiar muito aquelles que lhe deram o sêr... — balbuciou Helena com os olhos fitos nos do filho.

— Não os odeio, minha senhora, lamento-os.

— Por natural instincto do coração talvez...

— Não. Por uma tendencia especial do meu espirito para deplorar a sorte de todos aquelles que se afastaram da linha recta do dever e resvalaram no crime ou na cobardia.

— É singular! Como explica isso? Se não conheceu seus paes, como póde saber se elles fôram cobardes ou criminosos?

— A minha propria existencia m'o diz, minha senhora. Eu appareço no mundo, filho de paes incognitos... isto é, filho de pessoas que me negaram a paternidade ou para se não macularem a si proprias ou para me não macularem a mim. No primeiro caso, se temeram a macula do meu nascimento e a ella se furtaram pela vilta do anonymo, esta acção reflecte a cobardia dos seus sentimentos, porque não tiveram a coragem de assumir a responsabilidade dos seus actos. No segundo caso, se a sua situação era de tal modo contraria ás leis sociaes que, do chamarem-me filho, revertia para mim uma vergonha inilludivel, nenhuma duvida resta de que meus paes fôram criminosos. De qualquer modo, dois desgraçados com os quaes não tenho nem quero nada de commum, a não ser para os lamentar, como sempre lamento todos aquelles que, podendo ser dignos e honestos, o não são, faltando aos dictames da sua consciencia e ao cumprimento dos seus deveres.

— Então, se seus paes um dia lhe apparecessem a reivindicar o direito que teem á sua ternura, repudial-os-ia — perguntou Helena com a voz de cada vez mais sumida.

— Não, minha senhora — replicou Paulo serenamente — não os repudiaria, que não é do meu animo repudiar os que soffrem e os que se arrependem. Mas se pedissem ao meu coração mais do que o compassivo sentimento que se tem para com todos os desgraçados, responder-lhes-ia que o meu amor e a minha ternura filial pertenciam exclusivamente áquelles que me foram paes adoptivos na infancia — a madre Paula e ao padre Filippe.

Helena baixou os olhos e as faces purpurearam-se-lhe n'uma commoção facil de explicar.

— Tem razão — murmurou ella — No entanto, talvez que motivos ponderosos forçassem sua mãe a...

— A não ser minha mãe? — atalhou Paulo — Perfeitamente de accordo. A mim cumpre-me respeitar esses motivos que não conheço e que nem sequer tento conhecer. Mas v. ex.ª comprehende muito bem que, se minha mãe teve motivos para me arredar de si como a um objecto incommodo e compromettedor, eu não posso ter no fundo do meu coração razões que justifiquem e fundamentem qualquer affecto e ternura especial por ella. De resto, nós estamos apenas formulando hypotheses que estão muito longe de factos, pois não creio que venha a dar-se o caso de meus paes um dia apparecerem a reclamar o filho que por tantos annos repudiaram.

— Quem sabe? — observou madre Paula — Não admittiste ha pouco a hypothese de que possam soffrer ou arrepender-se?

— No campo das supposições, tudo póde admittir-se, minha boa mãe, porque tudo póde suppôr-se... Mas para que havemos de estar a preoccupar-nos com um assumpto que não interessa a nenhum de nós, e principalmente a mim? O facto é, minha senhora — proseguiu elle, voltando-se para Helena — que eu, a despeito da irregularidade do meu nascimento, sou feliz quanto o póde ser um homem nas minhas circumstancias.

— Deve muito á Providencia, visto isso! — disse Helena suspirando, — ha tão poucas pessoas que, mesmo bem nascidas, possam dizer-se felizes!...

— É certo. Porém eu, até agora, e presentemente, posso considerar-me a mais feliz das creaturas. Abandonado por meus paes...

— Mas quem te disse a ti que teus paes te abandonaram? — atalhou, docemente reprehensiva, madre Paula — É muito avançar, quando nada sabes a esse respeito, Paulo!

O mancebo sorriu.

— Se eu penso assim, a culpa não é por certo minha, mas tão somente d'aquelles que tenazmente se teem recusado a dizer-me uma palavra unica que me illucide ácerca do meu nascimento.

E voltando-se para Helena:

— Desde a mais tenra infancia que eu vivo exclusivamente do amparo e dos carinhos do padre Filippe e de madre Paula, que considero meus paes pela grandeza do beneficio e pela constancia do affecto. Não conheci outros, nunca me fallaram de outros, nunca d'outros me deram noticia. Já homem, tive um momento na minha vida em que senti a necessidade cruel de penetrar o mysterio do meu nascimento para poder dizer á mulher que amava e que escolhera para companheira de toda a minha existencia, o nome de meus paes. Interroguei o padre Filippe. Respondeu-me que não os conhecera, que d'elles não tivera nunca noticia, e que eu fôra passado á sua benevolente e humanitaria tutella, como um legado, no espolio de um padre seu amigo, que morrera e que levara comsigo para a sepultura o segredo da minha vinda a este mundo. Creio que, n'estas circumstancias, quer as palavras do padre Filippe exprimam a verdade quer a encubram, o abandono não póde ser mais evidente nem mais completo. Não é v. ex.ª d'esta opinião, minha senhora?

— De certo — murmurou Helena com voz tremula.

— Mas eu não accuso meus paes do seu procedimento para commigo, nem quando emprego esta palavra abandono lhe ligo o menor sentimento de revolta e indignação que ella póde inspirar. Nada d'isso. Elles procederam assim, porque talvez tiveram motivos para assim proceder. D'esses motivos, porém, não fui eu o culpado, e isso me basta pensar para minha completa tranquillidade. Para tranquillidade d'elles, se forem vivos e souberem de mim, bastar-lhes-ha a certeza de que sou completamente feliz com o amor de madre Paula e da minha noiva, e com a estima e paternal affecto do padre Filippe. Aqui está, pois, um drama que talvez no seu inicio ameaçou ser de lagrimas e que, por um extraordinario desenrolar de circumstancias favoraveis, acaba por apresentar todos os personagens felizes e contentes comsigo mesmos!

Ao proferir estas ultimas palavras, Paulo ria jubiloso, com aquella alegria franca do seu temperamento expansivo e sincero.

Helena de Noronha, de cada vez mais encantada com a attitude despretenciosa e alegre d'aquelle rapaz que reproduzia nas feições e nos gestos os modos e as feições de Norberto de Noronha, sentiu-se extraordinariamente feliz ao ouvir da bocca do proprio filho palavras de compassivo perdão para o criminoso abandono a que ella o votara.

— O senhor — disse ella — possue uma alma nobilissima e um coração dotado de generosos sentimentos. Merece ser feliz; e uma vez que já o é, busque nortear-se sempre pelos dictames da piedade e da compaixão, mesmo para com aquelles que o offenderam ou aggravaram...

O tom quasi supplicante em que estas palavras foram ditas não escapou a madre Paula que, com a sua natural perspicacia, comprehendeu bem o que se passava na alma da sua amiga.

— Paulo é um bello caracter — interrompeu ella envolvendo o mancebo n'um olhar de maternal ternura — e sinto verdadeiro orgulho de ter sido eu a sua educadora... Eu e o padre Filippe — emendou logo — porque é justo não esquecer que esse exemplar sacerdote tem tido com este filho adoptivo todos os extremos e disvellos de um pae.

O mancebo começou então recordando alegremente passagens esquecidas da sua infancia, travessuras de creança, brincadeiras, affagos e reprimendas do padre Filippe e de madre Paula, e n'isto levou algumas horas, que muito distrahiram e interessaram Helena de Noronha, agora de todo familiarisada com o filho.

Quando Paulo, pretextando não querer com a sua conversação fatigar o espírito da doente, se retirou promettendo voltar depois, a religiosa, a sós com Helena, perguntou-lhe:

— E então?

— Então, minha querida Paula — exclamou a enferma — é bem meu filho, é bem o neto de Norberto de Noronha aquelle rapaz que alli está!

— Não te dizia eu que Paulo era um bello e excellente moço, reflectindo na figura varonil e cheia de nobreza as feições de teu pae? Dize-me, não será elle digno de que o ames como filho, e por elle e para elle busques ainda viver? Não seria doce e consolador para ti vêr-te, depois de tantos annos de soffrimentos e amarguras, querida e amada por quantos te rodeiam?

Helena teve um sorriso e os olhos brilharam-lhe n'um fugitivo anceio de felicidade.

— Sim... sim!... — disse ella — seria feliz ainda, se pudesse viver na companhia de meu filho, amada por elle e respeitada por aquelles que me conhecem... Mas isso é impossivel! E queres que te diga? Agora, depois que vi meu filho... sinto-me mais desgraçada!

— Porque?

— Porque... tu comprehendes... na minha alma começam a despertar agora todos os sentimentos do amor maternal, e não posso dizer a meu filho: «Sou tua mãe!»