Decorreram quinze dias de suave e doce convivencia entre mãe e filho, na casa de D. Aurelia.
Madre Paula e a irmã de Gustavo, ambas de intimo accôrdo no empenho de salvarem Helena de Noronha, tinham sabido dispôr e conduzir as coisas de modo que Julio, Paulo e o padre Manoel se encontrassem muitas vezes reunidos á volta da doente, sem que nenhum d'elles suspeitasse os laços de sangue que ligavam aquelle mancebo, tão cheio de vida e de alegria, á infeliz victima do padre Anselmo.
A pobre Helena parecia um tanto esquecida das suas mágoas e infortunios, sentindo renascer dentro em si o desejo de viver, tal era o amoravel cuidado que todos punham em lhe suavisar a existencia, tão attribulada de dôres physicas e moraes.
Infelizmente, o medico constatara que a doente soffria de uma lesão cardiaca em estado bastante adiantado, e que tanto podia deixal-a viver ainda muitos mezes como dar-lhe a morte em breves dias.
Este diagnostico, porém, reservara-o apenas para si, limitando-se a recommendar que não expuzessem a enferma a sobresaltos e commoções fortes, que podiam ser-lhe de funestas consequencias.
O honesto homem de sciencia, reconhecendo quanto a pobre doente era amada por todos que a cercavam, não quiz destruir no coração dos que tanto lhe queriam a dôce esperança de a verem completamente salva.
Estava-se, pois, n'esta bella illusão de um restabelecimento proximo, quando um dia, pelo fim da tarde, bateu ao portão de D. Aurelia, pedindo para fallar á dona da casa, um desconhecido, que a todos causou surpreza pelo seu extranho aspecto e pelas suas mysteriosas maneiras.
Era um homem alto, de cabellos compridos e longa barba grisalha.
Usava oculos verdes. Vestia um amplo casacão, que quasi lhe descia aos calcanhares e que, todo abotoado na frente, tomava o aspecto de uma sotaina. Na cabeça, trazia um chapeu de enormes abas que, ensombrando-lhe o rosto, dava um aspecto mais carregado á sua figura.
Viera a pé, encostado a um bordão e, comquanto agil, parecia fatigado da longa jornada.
D. Aurelia, ao annunciarem-lhe o desconhecido, sahiu á sala de visitas a recebel-o e ficou extranhamente surprehendida ao vêr diante de si aquelle homem que ao mesmo tempo lhe infundia respeito e mêdo.
— Minha senhora — disse elle com voz sonora, mas em que havia uma certa suavidade — peço desculpa de vir assim importunal-a, apresentando-me a fazer-lhe um pedido sem para isso estar de forma alguma auctorisado. Mas a importancia da minha missão é tal, que eu atrevo-me a suppôr que v. ex.ª não me recusará o auxilio de que careço para bem a cumprir.
— Não conheço a pessoa a quem estou fallando — respondeu D. Aurelia, com simplicidade — mas se é o meu concurso para uma obra boa que vem pedir, rogo-lhe a fineza de me dizer em que posso ser-lhe util.
O desconhecido baixou a voz e disse n'um tom de confidencia:
— Fui amigo intimo de Alvaro de Noronha, e elle, um dia antes de ser assassinado, constituiu-me depositario de um segredo de familia, que só deve ser revelado a sua prima, a sr.ª D. Helena de Noronha, actualmente n'esta casa...
D. Aurelia fitou-o perplexa.
— E como sabe v. ex.ª que a minha amiga Helena está aqui, quando toda a gente ignora...
O desconhecido sorriu de um modo indefinido e volveu com firmeza.
— Sou um homem de bem, minha senhora, e sei cumprir os meus juramentos. Jurei ao meu amigo Alvaro que revelaria a sua prima o segredo de familia que elle me confiou com esse fim, e não me tenho poupado a esforços para bem cumprir a ultima vontade do moribundo. Tendo a snr.ª D. Helena permanecido em parte incerta durante muitos annos, comprehende v. ex.ª certamente o empenho com que eu terei buscado encontral-a, mórmente achando-me no fim da vida quasi, e não querendo levar commigo para a sepultura um segredo que me não pertence...
— Quer v. ex.ª, pois, fallar com Helena de Noronha?
— É esse o unico objecto da minha vinda a casa de v. ex.ª, e para isso ouso supplicar-lhe o favor da sua intervenção.
— A minha amiga, não sei se sabe, tem estado muito doente...
— Mas tambem sei que ultimamente tem experimentado sensiveis melhoras.
— O medico recommendou que lhe evitassemos commoções violentas...
— Estou persuadido de que a minha presença não poderá causar-lhe a menor commoção, pois que me não conhece, como eu tambem pessoalmente a não conheço a ella.
— Mas o objecto da sua visita...
— Não póde ser-lhe de modo algum desagradavel — atalhou o desconhecido — porque o que tenho a dizer-lhe é a coisa mais simples e mais natural d'este mundo.
— Quem devo, pois, annunciar á minha amiga?
— Dar-lhe o meu nome é inutil, porque lhe será sempre desconhecido. Se v. ex.ª tivesse a bondade, dir-lhe-hia que um amigo de seu primo Alvaro pretende fazer-lhe uma communicação importante e do mais alto interesse para ella.
D. Aurelia entrou no quarto da enferma, que a essa hora estava conversando com Julio, Paulo e a abbadessa, todos já conhecidos e convivendo n'aquella intimidade tão facil e tão peculiar á gente da provincia.
Helena, muito animada e, ao parecer, muito melhor dos seus soffrimentos physicos, inspirava a todos uma grande esperança de a verem em breve completamente restabelecida.
Chegara mesmo, em conversação intima com madre Paula, a fazer projectos de viver, como governante, em companhia do filho e da nora, logo que elles fossem casados.
— Elle não saberá nunca que sou sua mãe — dizia ella — e eu poderei vêl-o e amal-o, como se visse n'elle a cada momento o retrato vivo do meu pae, quando mais novo... E cada sorriso affavel, cada palavra de bondade que elle me dirija, será para mim como que um signal de perdão enviado, d'alem tumulo e pelos labios do meu filho, por aquelle pobre espirito, que tanto fiz soffrer!
Madre Paula sorria de satisfação, ao ouvir da bocca da sua amiga Helena estas palavras que significavam n'ella o desejo de regressar á vida.
— Na tua mão está, minha querida, o realisares o teu desejo... Faze por melhorar. Que o amor por teu filho te dê a força e a energia indispensavel para triumphar das reminiscencias do teu passado, e o futuro, relativamente feliz, será teu.
D. Aurelia não quiz prevenir Helena, na presença das pessoas que a rodeavam, da inesperada visita do desconhecido.
Quando todos se retiraram, a irmã de Gustavo, approximando-se do leito, disse-lhe sorrindo:
— Venho annunciar-te, minha querida amiga, uma nova visita...
— Quem? — interrogou Helena.
— Um desconhecido que pretende fallar-te...
— Um desconhecido! — repetiu Helena com instinctivo sobresalto.
— Sim. Um desconhecido para mim e para ti.
— O que quer elle?
— Quer ser-te apresentado para te revelar um segredo de familia...
— A mim?!
— A ti.
— Que segredo de familia póde revelar-me uma pessoa que eu não conheço?
— Este homem diz-se um antigo e intimo amigo de teu primo Alvaro que, na vespera de ser assassinado e prevendo a desgraça que ia acontecer-lhe, o incumbiu de te fazer uma revelação importante, se algum dia te encontrasse ou tivesse noticias tuas...
— Meu primo Alvaro! — balbuciou Helena estremecendo.
— Sim... da parte do teu primo Alvaro é que elle vem.
— Como sabe esse homem que eu estou aqui?
— Diz elle que tem durante muitos annos empregado os maiores esforços para te encontrar. Sabendo que está doente n'esta casa uma antiga amiga minha, pensou que talvez fosses tu e veio interrogar-me a esse respeito. Como se trata de um assumpto que póde ser de interesse e de utilidade para ti, achei conveniente dizer-lhe a verdade...
— Queres, pois, que o receba?
— Não t'o imponho, minha amiga. Mas creio que farias bem em o ouvir...
— Pois bem; faça-se a tua vontade...
— A minha vontade não. Aqui a unica pessoa a resolver e a decidir és tu...
— Acho estranho esse caso de um desconhecido a procurar-me para me fazer revelações!...
— A mim parece-me a coisa mais natural do mundo. Todas as familias teem segredos que só em determinados momentos julgam opportuno transmittir aos que lhes succedem... Teu primo era intimo de teu pae, estava para ser teu noivo... É, pois, muito natural que, sabendo o estado gravissimo em que se encontrava teu pae e perdida a esperança de tornar a vêr-te, encarregasse a um amigo a missão de um dia te esclarecer... E quem nos diz a nós que este desconhecido vem talvez trazer-te a independencia e a fortuna, quando tu menos a esperas?
Helena sorriu incredula.
— Não creio — disse ella — mas seja o que fôr, desde que se trata de um segredo de familia, devo ouvil-o. Manda entrar esse homem.
D. Aurelia saiu e pouco depois dava entrada na camara da enferma o homem dos oculos.
Helena, recostada n'uma cadeira de braços, encarou-o fito e não o reconheceu.
O desconhecido inclinou a cabeça n'uma saudação, e pareceu esperar que D. Aurelia se retirasse.
— Fica! — pôde ainda dizer Helena, tomada de subito receio, olhando para a sua amiga.
— Perdão! — obtemperou o desconhecido. — O que tenho a dizer a v. ex.ª é tão importante segredo, que não póde ser ouvido por mais alguem.
— Não tenho segredos para a minha amiga...
— Todas as pessoas teem segredos — insistiu o homem dos oculos — e se a ninguem é licito devassal-os, menos licito se me afigura revelar os que nos não pertencem. V. ex.ª não tem o direito de tornar publico um segredo que lhe não pertence, que não é só seu, porque é tambem de sua familia...
Estas palavras foram ditas com tal intimativa que Helena baixou os olhos tremula e confundida.
— Este cavalheiro tem razão — disse D. Aurelia — Eu aguardarei na sala proxima as tuas ordens, minha boa amiga... Escuta este senhor.
E sahiu.
Então o desconhecido, avançando alguns passos no quarto, fitou Helena e disse-lhe em voz soturna:
— Não me conheces, Irmã Dorothêa, abadessa da Covilhã? Sou eu, o teu cumplice!
Helena fez um gesto de horror e soltou um grito abafado. Reconhecera no homem dos oculos verdes o padre Hilario, o seu cumplice no assassinato do padre Anselmo.
— Não venho accusar-te pela maneira infame e ignobil como abusaste da paixão ardentissima que a tua presença accendeu na minha alma, e menos ainda do ludibrio de que me fizeste victima, obrigando-me a esperar-te baldadamente na fronteira, onde prometteste que irias, reunir-te a mim. Era justo que ao crime succedesse a expiação, e não haveria decerto Providencia, se eu pudesse ser feliz comtigo. Fizeste de mim um assassino miseravel, um perjuro, um parricida, Helena de Noronha. Tudo isso te perdôo. Sabes, porém, o que não te posso perdoar? É que ames outro e com elle penses viver ainda feliz. Isso não. Julio de Montarroyo não será mais venturoso comtigo do que eu.
— Julio de Montarroyo! — balbuciou Helena aterrada — Quem lhe ensinou esse nome?
— Eu sei todos os nomes que estão ligados á tua existencia, filha de Norberto de Noronha, amante do padre Anselmo, mãe de Paulo de Noronha. Sei tudo, que para outra coisa não tenho vivido ha dezoito annos, rastejando como a serpente, ao peso do meu remorso. Quiz saber de ti, quiz conhecer a que qualidade de mulher sacrifiquei a minha posição, o meu futuro, a minha vida, a minha alma. E soube-o! Nada me resta por saber. E, pois, que ainda na tua vida ha um lampejo de esperança, e na tua alma um vinculo de affecto que te prende a alguem, eu venho dizer-te que chegou a hora de partirmos. Jurei que não pertencerias a outro, que não amarias outro, que nenhum homem ouviria de teus labios juras eguaes áquellas que de teus labios fementidos ouvi. Eis-me, pois, aqui, prompto a cumprir o meu juramento. Queres obedecer a elle voluntariamente, ou preferes o escandalo ruidoso, que nada remedeia e que te acompanhará alem da morte? Vamos! fomos companheiros no crime; é bem que o sejamos na expiação. Se tiveste coragem para matar, tel-a-has agora tambem para morrer.
— Mate-me! mate-me! — soluçou Helena, pondo as mãos.
Então o padre Hilario tirou do interior do casaco uma pequena caixa, que abriu. Depois, tomando entre os dedos uma pastilha, disse:
— Eis aqui um veneno activissimo que dentro em duas horas terá cumprido o seu dever, matando-te suavemente, sem uma agonia prolongada. Até este beneficio me deves, porque não quero que a morte te seja dolorosa. Vamos! aqui tens a morte.
E offereceu-lhe a pastilha. Helena, sem a mais leve hesitação, acceitou o veneno das mãos do seu cumplice e tomou-o com assombrosa serenidade.
— Pago-te assim a minha divida — disse ella — Estamos quites. Se para me ajudares a vingar do monstro que me perdeu tivesses exigido a minha vida em troca, ter-t'a-hia sacrificado. Pediste, porém, o meu amor... e esse eu não podia conceder-t'o... Mas era-me preciso vingar-me. Perdoa-me!
— Mas se eu te amo ainda! — exclamou o padre Hilario debruçando-se no leito e beijando-lhe freneticamente as faces e os olhos! — Amo-te e morro feliz, sabendo que me precedes algumas horas na romagem mysteriosa do tumulo!
Depois, com voz tremula em que havia toda a expressão de um infinito amor:
— Irei comtigo, descança! Se não pude fazer que me pertencesses n'esta vida, buscarei na outra ser teu companheiro de tormentos e penas eternas! Lá nos havemos de encontrar.
Beijou-a ainda com louco frenesi e sahiu do quarto da enferma, sem deixar transparecer na face impassivel a commoção que lhe agitava a alma.
Duas horas depois, Helena de Noronha, tendo-se despedido de todas as pessoas que lhe rodeavam o leito, morria tranquillamente, docemente, como se a morte a fizesse cahir n'um somno doce e reparador.
Este inesperado desenlace surprehendeu a todos; mas ninguem ousou suspeitar-lhe a verdadeira causa.
Julio de Montarroyo, cahindo n'um mutismo aterrador, velou-lhe o cadaver e acompanhou-o á sepultura, frio e impassivel, como se fora um cadaver tambem. Nem aos olhos lhe assomou uma lagrima nem de seus labios sahiu um gemido, ao vêr desapparecer para sempre no pó da sepultura a face da mulher que tanto amara!
Conclusão
Um mez depois d'estes acontecimentos, madre Paula e padre Filippe, regressando de uma mysteriosa visita ao convento da Covilhã, mandaram chamar Paulo de Noronha.
— Meu filho — disse-lhe o padre Filippe, apresentando-lhe um cofre de ferro quadrado — eu e madre Paula temos até hoje sido depositarios de uma fortuna que te pertence e que fomos encarregados de te entregar logo que hajas attingido a maioridade e possas por lei dispôr do que é teu. Estão n'este cofre oitocentos contos que te pertencem. Como deliberaste unir o teu destino ao de uma menina que desejas fazer tua mulher, julgamos do nosso dever informar-te d'esta circumstancia, afim de que possas regular com o pae da tua futura esposa as condições do teu enlace.
Paulo, attonito e mal podendo crêr no que ouvia, encarava ora o padre Filippe, ora madre Paula, sem poder articular uma palavra.
— Oitocentos contos! — balbuciou por fim. — E d'onde vem tanto dinheiro?
— De teus paes — respondeu madre Paula.
— Meus paes! E quem eram elles? — perguntou o mancebo, na esperança de que, emfim, o segredo do seu nascimento lhe iria ser revelado.
— Nunca o saberás. Essa fortuna que elles te legaram não traz nome. Designa-lhe tu, meu filho, um bom destino e uma applicação nobre e justa.
Quando o mancebo retirou, louco de alegria a communicar a boa nova a Beatriz, padre Filippe, voltando-se para madre Paula, exclamou:
— Como Deus é misericordioso e é justo! Esta fortuna, accumulada á custa de crimes nas mãos do padre Anselmo, vae agora, nas mãos d'este rapaz que é seu filho, ter um destino bem mais nobre e mais digno.
— Que o altruismo do filho possa ao menos redimir as torpezas e os crimes do pae! — replicou madre Paula.
No dia em que Paulo de Noronha se unia a Beatriz, a contento do sr. Custodio de Jesus, seu pretenso progenitor, recebeu madre Paula a noticia de que Julio de Montarroyo se havia suicidado sobre a sepultura da Irmã Dorothea, legando uma parte dos seus haveres ao mestre Tomba e a parte restante a D. Aurelia para obras de caridade.
E como os acontecimentos notaveis nunca veem isolados, o procurador Belchior leu tambem n'esse dia, nas gazetas, a noticia de que Leonor, que tanto se salientára no tragico suicidio de Eugenio de Mello, partira para Lisboa em companhia de João Lazaro.
Do homem dos oculos verdes, o Mestre fundador da Mão Negra, nunca mais Jorge, o amigo de Paulo, ouviu fallar, substituindo-o porisso na direcção da famosa sociedade secreta, que é hoje a mais florescente e poderosa de todas as suas irmãs.