Eſtas ſentenças tais o velho honrado
Vociferando eſtaua, quando abrimos
As aſas ao ſereno & ſoſſegado
Vento, & do porto amado nos partimos:
E como he ja no mar cuſtume vſado
A vella desfraldando o ceo ferimos,
Dizendo Boa viagem, logo o vento
Nos troncos fez o vſado mouimento.
Entruaa neste tempo o eterno lume,
No animal Nemeyo truculento,
E o mundo que com tempo ſe conſume
Na ſeiſta idade andaua enfermo & lento:
Nella ve, como tinha por coſtume
Curſos do Sol quatorze vezes cento,
Com mais nouenta & ſete, em que corria
quando no mar a armada ſe estendia.
Ia a vista pouco & pouco ſe desterra
Daquelles patrios montes que ficauão,
Ficaua o charo Tejo, & a freſca ſerra
De Sintra, & nella os olhos ſe alongauão:
Ficauanos tambem na amada terra
O coração, que as magoas lâ diyxauão,
E ja deſpois que toda ſe eſcondeo
Não vimos mais em fim que mar & ceo.
Aſsi fomos abrindo aquelles mares
Que geração algũa não abrio,
As nouas Ilhas vendo, & os nouos ares,
Que o generoſo Enrique deſcobrio:
De Mauritania os montes & lugares
Terra que Anteo num tempo poſſuyo,
Deyxando aa mão ezquerda, que aa dereita
Não ha certeza doutra, mas ſoſpeita.
Paſſamos a grande Ilha da madeira
Que do muito aruoredo aſsi ſe chama,
Das que nos pouoamos, a primeira,
Mais celebre por nome, que por fama:
Mas nem por ſer do mundo a derradeira
Se lhe auentajão quantas Venus ama,
Antes ſendo esta ſua ſe eſquecera
De Cypro, Guido, Pafos, & Cythêra.
Deixamos de Maſsilia a eſteril costa
Onde ſeu gado os Azenegues pastão,
Gente que as freſcas agoas nunca goſta
Nem as eruas do campo bem lhe abaſtão:
A terra a nenhum fruto em fim deſpoſta,
Onde as aues no ventre o ferro gastão,
Padecendo de tudo extrema inopia
Que aparta a Barbarîa de Etiopia.
Paſſamos o lemite aonde chega
O Sol, que pera o Norte os carros guia,
Onde jazem os pouos, a quem nega
O filho de Climêne a cor do dia:
Aqui gentes eſtranhas laua & rega
Do negro Sanagâ a corrente fria,
Onde o Cabo Arſinario o nome perde
Chamando ſe dos noſſos Cabo verde.
Paſſadas tendo ja as Canareas ilhas
Que tiuerão por nome Fortunadas,
Entramos nauegando pollas filhas
Do velho Heſperio, Heſperidas chamadas
Terras por onde nouas marauilhas
Andarão vendo jaa noſſas armadas,
Ali tomamos porto com bom vento
Por tomarmos da terra mantimento.
A aquella ilha aportamos, que tomou
O nome do guerreiro Sanctiago,
Sancto que os Eſpanhoes tanto ajudou
A fazerem nos Mouros brauo eſtrago:
Daqui tanto que Boreas nos ventou
Tornamos a cortar o immenſo lago,
Do ſalgado Occeano, & aſsi deixamos
A terra onde o refreſco doce achamos.
Por aqui rodeando a larga parte
De Africa, que ficaua ao Oriente,
A prouincia lalofo, que reparte
Por diuerſas naçoẽs a negra gente:
A muy grande Mandinga, por cuja arte,
Logramos o metal rico & luzente,
Que do curuo Gambea as agoas bebe
As quaes o largo Atlantico recebe.
As Dorcadas paſſamos, pouoadas
Das Irmaãs, que outrotempo ali viuião,
Que de vista total ſendo priuadas
Todas tres dhum ſo olho ſe ſeruião:
Tu ſo, tu cujas tranças encreſpadas
Neptuno la nas agoas acendião,
Torna la ja de todas a mais fea
De biuoras encheſte a ardente area.
Sempre em fim pera o Auſtro a aguda proa
No grandiſsimo golfão nos metemos,
Deixando a ſerra aſperrima Lyoa
Co Cabo a quem das Palmas nome demos:
O grande rio, onde batendo ſoa
O mar nas prayas notas, que ali temos,
Ficou, co a Ilha illuſtre que tomou
O nome dhum que o lado a Deos tocou.
Ali o muy grande reyno eſtâ de Congo
Por nos ja conuertido â fee de Christo,
Por onde o Zaire paſſa claro & longo
Rio pellos antigos nuca viſto:
Por eſte largo mar em fim me alongo
Do conhecido pollo de Caliſto,
Tendo o termino ardente ja paſſado
Onde o meyo do mundo he limitado.
Ia deſcuberto tinhamos diante
La no nouo Hemiſperio noua estrela
Não viſta deoutra gente, que ignorante
Algũs tempos eſteue incerta della:
Vemos a parte menos rutilante
E por falta destrellas menos bella,
Do Polo fixo, onde inda ſe não ſabe
Que outra terra comece, ou mar acabe:
Aſsi paſſando aquellas regioẽs
Por onde duas vezes paſſa Apolo,
Dous inuernos fazendo & dous veroẽs
Em quanto corre dhum ao outro Polo:
Por calmas, por tormentas & opreſſoẽs
Queſempre faz no mar o yrado Eolo,
Vimos as Vrſas a peſar de Iuno
Banharemſe nas agoas de Neptuno.
Contarte longamente as perigoſas
Couſas do mar, que os homẽs não entendem,
Subitas trouoadas temeroſas,
Relampados que o ar em fogo acendem:
Negros chuueiros, noites tenebroſas,
Bramidos de trouoẽs que o mundo fendem,
Não menos he trabalho, que grande erro
Ainda que tiuiſſe a voz de ferro.
Os caſos vi que os rudos marinheiros
Que tem por meſtra a longa experiencia,
Contão por certos ſempre & verdadeiros
Iulgando as couſas ſo polla aparencia.
E que os que tem juizos mais inteiros
Que ſo por puro engenho & por ciencia,
Vem do mundo, os ſegredos eſcondidos
Iulgão por falſos, ou mal entendidos.
Vi claramente viſto o lume viuo
Que a maritima gente tem por ſanto,
Em tempo de tormenta & vento eſquiuo
De tempeſtade eſcura & triste pranto:
Não menos foy a todos ecceſsiuo
Milagre, & couſa certo de alto eſpanto,
Ver as nuuẽs do mar com largo cano
Soruer as altas agoas do Occeano.
Eu o vi certamente (& não preſumo
Que a viſta me enganaua) leuantar ſe,
No ar hum vaporzinho & ſutil fumo
E do vento trazido, rodearſe:
De aqui leuado hum cano ao Polo ſumo
Se via, tão delgado que enxergarſe
Dos olhos facilmente não podia,
Da materia das nuuẽs parecia.
Hiaſe pouco & pouco acrecentando
E mais que hum largo maſto ſe engroſſaua,
Aqui ſe eſtreita, aqui ſe alargaquando
Os golpes grandes de agoa em ſi chupaua:
Eſtauaſe co as ondas ondeando,
Encima delle hũa nuuem ſe eſpeſſaua,
Fazendoſe mayor mais carregada
Co cargo grande dagoa em ſi tomada.
Qual roxa Sangueſuga ſe veria
Nos beiços da alimaria (que imprudente,
Bebendo a recolheo na fonte fria)
Fartar co ſangue alheyo a ſede ardente:
Chupando mais & mais ſe engroſſa & cria
Ali ſe enche & ſe alarga grandemente,
Tal a grande coluna, enchendo aumenta
A ſi, & a nuuem negra que ſuſtenta.
Mas deſpois que de todo ſe fartou
O pê que tem no mar a ſi recolhe,
E pello ceo chouendo em fim voou
Porque coa agoa a jacente agoa molhe:
Aas ondas torna as ondas que tomou:
Mas o ſabor do ſal lhe tira, & tolhe,
Vejão agora os ſabios na eſcriptura
Que ſegredos ſam estes de Natura.
Se os antigos Philoſophos, que andarão
Tantas terras, por ver ſegredos dellas,
As marauilhas que eu paſſei, paſſarão
A tão diuerſos ventos dando as vellas:
Que grandes eſcripturas que deixarão
Que influição de ſinos & de eſtrellas,
Que eſtranhezas, que grandes qualidades,
E tudo ſem mentir, puras verdades.
Mas ja o Planeta qne no ceo primeiro
Habita, cinco vezes apreſſada,
Agora meyo rosto, agora inteiro
Mostrara, em quãto o mar cortaua a armada:
Quando da Eterea gauea hum marinheiro
Prompto coa viſta, terra, terra, brada,
Salta no bordo aluoroçada a gente
Cos olhos no Orizonte do Oriente.
A maneira de nuuẽs ſe começão
A deſcubrir os montes que enxergamos,
As ancoras peſadas ſe adereção,
As vellas ja chegados amainamos:
E pera que mais certas ſe conheção
As partes tão remotas onde eſtamos,
Pello nouo inſtrumento do Astrolabio
Inuenção de ſutil juizo & ſabio.
Deſembarcamos logo na eſpaçoſa
Parte, por onde a gente ſe eſpalhou,
De ver couſas eſtranhas deſejoſa
Da terra que outro pouo não piſou:
Porem eu cos pilotos na arenoſa
Praya, por vermos em que parte eſtou,
Me detenho, em tomar do ſol a altura
E compaſſar a vniuerſal pintura.
Achamos ter de todo ja paſſado
Do Semicapro pexe a grande meta,
Eſtando entre elle & o circulo gelado
Auſtral, parte do mundo mais ſecreta:
Eis de meus companheiros rcdeado
Vejo hum eſtranho vir de pelle preta,
Que tomarão per força, em quanto apanha
De mel os doces fauos na montanha.
Toruado vem na viſta, como aquelle
Que não ſe vira nunca em tal eſtremo,
Nem elle entende a nos, nem nos a elle,
Seluagem mais que o bruto Polifemo:
Começolhe a mostrar da rica pelle
De Colcos o gentil metal ſupremo,
A prata fina, a quente eſpeciaria:
A nada disto o bruto ſe mouia.
Mando moſtrarlhe peças mais ſomenos
Contas de Chriſtalmo tranſparente,
Alguns ſoantes caſcaueis pequenos,
Hum barrete vermelho, cor contente:
Vi logo por ſinais & por acenos
Que com iſto ſe alegra grandemente,
Mando o ſoltar com tudo, & aſsi caminha
Pera a pouoação, que perto tinha.
Mas logo ao outro dia ſeus parceiros
Todos nús, & da cor da eſcura treua,
Decendo pellos aſperos outeiros
As peças vem buſcar que eſtoutro leua:
Domeſticos ja tanto & companheiros
Se nos moſtrão, que fazem que ſe atreua,
Fernão Velloſo a yr ver da terra o trato
E partirſe co elles pello mato.
He Velloſo no braço confiado
E de arrogante cre que vay ſeguro,
Mas, ſendo hum grande eſpaço ja paſſado,
Em que algum bom ſinal ſaber procuro:
Eſtando, a viſta alçada, co cuidado
No auentureyro, eis pello monte duro
Aparece, & ſegundo ao mar caminha
Mais apreſſado do que fora vinha.
O batel de Coelho foy depreſſa
Pollo tomar, mas antes que chegaſſe,
Hum Etiope ouſado ſe arremeſſa
A elle porque não ſe lhe eſcapaſſe:
Outro & outro lhe ſaem veſſe em preſſa
Velloſo, ſem que alguem lhe ali ajudaſſe,
Acudo eu logo, & em quanto o remo aperto
Se mostra hum bando negro deſcuberto.
Da eſpeſſa nuuem ſêtas & pedradas
Chouem ſobre nos outros ſem medida,
E não forão ao vento em vão deitadas
Que esta perna trouxe eu dali ferida:
Mas nos como peſſoas magoadas
A repoſta lhe demos tão tecida,
Que em mais que nos barretes ſe ſoſpeita
Que a cor vermelha leuão deſta feita.
E ſendo ja Velloſo em ſaluamento
Logo nos recolhemos pera a armada,
Vendo a malicia fea & rudo intento
Da gente beſtial, bruta & maluada:
De quem nenhum milhor conhecimento
Podemos ter da India deſejada,
Que eſtarmos inda muyto longe della
E aſsi torney a dar ao vento a vella.
Diſſe então a Velloſo hum companheiro
(Começando ſe todos a ſorrir)
Oula Vedolo amigo, aquelle outeiro
He milhor de decer que de ſubir:
Si he, reſponde o ouſado auentureiro
Mas quando eu pera ca vi tantos vir,
Daquelles caẽs, de preſſa hum pouco vim
Por me lembrar que estaueis ca ſem mim.
Contou então que tanto que paſſarão
Aquelle monte, os negros de quem fallo,
Auante mais paſſar o não deixarão,
Querendo, ſe não torna, ali matallo:
E tornando ſe, logo ſe emboſcarão
Porque ſaindo nos pera tomallo,
Nos podeſſem mandar ao reino eſcuro
Por nos roubar em mais a ſeu ſeguro.
Porem ja cinco Soes erão paſſados
Que dali nos partiramos, cortando
Os mares nunca doutrem nauegados,
Proſperamente os ventos aſſoprando:
Quando hũa noite estando deſcuidados
Na cortadora proa vigiando,
Hũa nuuem que os ares eſcurece
Sobre noſſas cabeças aparece.
Tão temeroſa vinha & carregada,
Que pos nos coraçoẽs hum grande medo,
Bramindo o negro mar, de longe brada
Como ſe deſſe em vão nalgum rochedo:
O poteſtade, diſſe, ſublimada
Que ameaço diuino, ou que ſegredo,
Eſte clima, & eſte mar nos apreſenta,
Que môr couſa parece que tormenta?
Não acabaua, quando hũa figura
Se nos mostra no ar, robuſta & valida,
De disforme & grandiſsima eſtatura,
O roſto carregado, a barba eſqualida:
Os olhos encouados, & a poſtura
Medonha & maa, & a cor terrena & palida,
Cheos de terra & creſpos os cabellos,
A boca negra, os dentes amarellos.
Tão grande era de membros, que bem poſſo
Certificarte, que este era o ſegundo
De Rodes estranhiſsimo Coloſſo,
Que hum dos ſete milagres foy do mundo:
Cum tom de voz nos falla horrendo & groſſo
Que pareceo ſair do mar profundo,
Arrepião ſe as carnes & o cabello
A mi, & a todos, ſoo de ouuillo & vello.
E diſſe: O gente ouſada mais que quantas
No mundo cometerão grandes couſas,
Tu que por guerras cruas, taes & tantas
E por trabalhos vãos munca repouſas:
Pois os vedados terminos quebrantas
E nauegar meus longos mares ouſas,
Que eu tãto tempo ha ja que guardo, & tenho
Nunca arados deſtranho, ou proprio lenho.
Pois vens ver os ſegredos eſcondidos
Da natureza, & do humido elemento,
A nenhum grande humano concedidos
De nobre, ou de immortal merecimento:
Ouue os danos de mi, que apercebidos
Eſtão, a teu ſobejo atreuimento,
Por todo o largo mar & polla terra
Que inda has de ſojugar com dura guerra.
Sabe que quantas naos eſta viagem
Que tu fazes, fizerem de atreuidas
Inimiga terão esta paragem
Com ventos & tormentas deſmedidas:
E da primeira armada que paſſagem
Fizer por eſtas ondas inſuffridas,
Eu farey dimprouiſo tal caſtigo
Que ſeja môr o dano que o perigo.
Aqui eſpero tomar ſe não me engano
De quem me deſcobrio ſuma vingança,
E não ſe acabarâ ſo nisto o dano
De voſſa pertinace confiança:
Antes em voſſas naos vereys cada anno
Se he verdade o que meu juyzo alcança,
Naufragios, perdiçoẽs de toda ſorte,
Que o menor mal de todos ſeja a morte.
E do primeiro Illuſtre, que a ventura
Com fama alta fizer tocar os Ceos,
Serey eterna & noua ſepoltura
Por juizos incognitos de Deos:
Aqui porà da Turca armada dura
Os ſoberbos & proſperos tropheos,
Comigo de ſeus danos o ameaça
A destruida Quiloa com Mombaça.
Outro tambem virâ de honrada fama
Liberal, caualeiro, enamorado,
E conſigo trarâ a fermoſa dama
Que Amor por gram merce lhe terâ dado:
Triſte ventura, & negro fado os chama
Neste terreno meu, que duro & yrado,
Os deixarâ dhum crú naufragio viuos
Pera verem trabalhos ecceſtiuos.
Verão morrer com fome os filhos charos
Em tanto amor gêrados & nacidos,
Verão os Cafres aſperos & auaros
Tirar aa linda dama ſeus veſtidos:
Os cristalinos membros & perclaros
Aa calma, ao frio, no ar verão deſpidos,
Deſpois de ter piſada longamente
Cos delicados pês a area ardente.
E verão mais osolhos que eſcaparem
De tanto mal, de tanta deſuentura,
Os dous amantes miſeros ficarem
Na ſeruida & implacabil eſpeſſura:
Ali deſpois que as pedras abrandarem
Com lagrimas de dôr, de magoa pura,
Abraçados as almas ſoltaram
Da fermoſa & miſerrima priſam.
Mais hia por diante o monstro horrendo
Dizendo noſſos fados, quando alçado
Lhe diſſe eu: Quem es tu? que eſſe estupendo
Corpo, certo me tem marauilhado
A boca & os olhos negros retorcendo,
E dando hum eſpantoſo & grande brado,
Me reſpondeo, com voz peſada & amara
Como quem da pregunta lhe peſara.
Eu ſou aquelle occulto & grande Cabo
A quem chamais vos outros Tormentorio,
Que nunca a Ptolomeu, Pomponio, Eſtrabo,
Plinio, & quantos paſſarão fuy notorio:
Aqui toda a Africana coſta acabo
Neſte meu nunca viſto Promontorio,
Que pera o Polo Antariuo ſe eſtende
A quem voſſa ouſadia tanto offende.
Fuy dos filhos aſperrimos da terra
Qual Encelado, Egeo, & o Centimano,
Chameime Adamaſtor,& fuy na guerra
Contra o que vibra os rayos de Vulcano:
Não que poſeſſe ſerra ſobre ſerra
Mas conquiſtando as ondas do Occeano,
Fuy capitão domar, par onde andaua
A armada de Neptuno, que eu buſcaua.
Amores da alta eſpoſa de Peleo
Me fizerão tomar tamanha empreſa,
Todas as Deoſas deſprezey do ceo
So par amar das agoas a Princeſa:
Hum dia a vi coas filhas de Nereo
Sayr nua na praya, & logo preſa,
A vontade ſinti, de tal maneira
Que inda não ſinto couſa que mais queira.
Como foſſe impoſsibil alcançalla
Polla grandeza fea de meu geſto,
Determiney por armas de tomalla
E a Doris eſte caſo manifeſto:
De medo a Deoſa então por mi lhe falla:
Mas ella cum fermoſo riſo honesto,
Reſpondeo: Qual ſera o amor baſtante
De Nimpha que ſuſtente o dhum Gigante.
Com tudo por liurarmos o Occeano
De tanta guerra, eu buſcarey maneira,
Com que com minha honra eſcuſe o dano.
Tal reſpoſta me torna a menſageira:
Eu que cair não pude neste engano,
(Que he grande dos amantes a cigueira)
Encherãome com grandes abondanças
O peito de deſejos & eſperanças.
Ia neſcio, ja da guerra deſiſtindo
Hũa noite de Doris prometida,
Me aparece de longe o geſto lindo
Da branca Thetis vnica deſpida:
Como doudo corri de longe, abrindo
Os braços, pera aquella que era vida
Deſte corpo, & começo os olhos bellos
A lhe beijar, as faces & os cabellos.
O que não ſey de nojo como o conte
Que crendo ter nos braços quem amaua,
Abraçado me achey cum duro monte
De aſpero mato, & de eſpeſſura braua:
Eſtando cum penedo fronte a fronte
Queu pollo roſto angelico apartaua,
Não fiquey homem não, mas mudo & quedo
E junto dhum penedo outro panedo
O Nimpha a mais fermoſa do Oceano
Ia que minha preſença não te agrada,
Que te cuſtaua terme neſte engano,
Ou foſſe monte, nuuem, ſonho, ou nada:
Daqui me parto irado, & quaſi inſano
Da magoa & da deſonra ali paſſada,
A buſcar outro mundo, onde não viſſe
Quem de meu pranto, & de meu mal ſe riſſe.
Erão ja neſte tempo meus Irmãos
Vencidos & em miſeria estrema poſtos,
E por mais ſegurarſe os Deoſes vãos
Algũs a varios montes ſottopostos:
E como contra o Ceo não valem mãos,
Eu que chorando andaua meus deſgoſtos,
Comecey a ſentir do fado imigo
Por meus atreuimentos o caſtigo.
Conuerteſeme a carne em terra dura,
Em penedos os oſſos ſe fizerão,
Eſtes membros que ves & esta figura
Por eſtas longas agoas ſe estenderão:
Em fim minha grandiſsima eſtatura
Neſte remoto cabo conuerterão
Os Deoſes, & por mais dobradas magoas
Me anda Thetis cercando deſtas agoas.
Aſsi contaua & cum medonho choro
Subito dante os olhos ſe apartou,
Desfez ſe a nuuem negra, & cum ſonoro
Bramido, muito longe o mar ſoou:
Eu, leuantando as mãos ao ſancto coro
Dos Anjos, que tão longe nos guiou,
A Deos pedi que remoueſſe os duros
Caſos, que Adamaſtor contou futuros.
Ia Phlegon, & Pyrois vinhão tirando
Cos outros dous o carro radiante,
Quando a terra alta ſe nos foy mostrando
Em que foy conuertido o grão gigante:
Ao longo desta costa, começando
Ia de cortar as ondas do Leuante,
Por ella abaixo hum pouco nauegamos
Onde ſegunda vez terra tomamos.
A gente que eſta terra poſſuya
Poſto que todos Etiopes erão,
Mais humana no trato parecia
Que os outros, que tão mal nos receberão:
Com bailos & com feſtas de alegria
Pella praya arenoſa a nos vierão,
As molheres conſigo & o manſo gado
Que apacentauão, gordo & bem criado.
As molheres queimadas vem encima
Dos vagaroſos bois, ali ſentadas
Animais que elles tem em mais eſtima
Que todo o outro gado das manadas:
Cantigas paſtoris, ou proſa, ou rima,
Na ſua lingua cantão concertadas,
Co doce ſom das rusticas auenas
Imitando de Titiro as Camenas.
Eſtes como na viſta prazenteiros
Foſſem, humanamente nos tratarão,
Trazendonos galinhas & carneiros
A troco doutras peças que leuarão:
Mas como nunca em fim meus companheiros
Palaura ſua algũa lhe alcançarão
Que deſſe algun ſinal do que buſcamos:
As vellas dando, as ancoras leuamos.
Ia aqui tinhamos dado hum gram rodeyo
Aa coſta negra de Africa, & tornaua
A proa a demandar o ardente meyo
Do Ceo, & o polo Antartico ficaua:
Aquelle ilheo deixamos, onde veyo
Outra armada primeira, que buſcaua
O tormentorio Cabo, & deſcuberto,
Naquelle ilheo fez ſeu limite certo.
Daqui fomos cortando muitos dias
Entre tormentas tristes & bonanças,
No largo mar fazendo nouas vias
So conduzidos de arduas eſperanças:
Co mar hum tempo andamos em porfias
Que como tudo nelle ſam mudanças,
Corrente nelle achamos tão poſſante
Que paſſar não deixaua por diante.
Era mayor a força em demaſia
Segundo pera tras nos obrigaua,
Do mar, que cantro nos ali corria
Que por nos a do vento que aſſopraua:
Injuriado Noto da porfia
Em que co mar (parece) tanto eſtaua
Os aſſopros esforça iradamente
Com que nos fez vencer a grão corrente.
Trazia o Sol o dia celebrado
Em que tres Reis das partes do Oriente,
Forão buſcar hum Rey de pouco nado
No qual Rey outros tres ha juntamente:
Neſte dia outro porto foy tomado
Por nos, da meſma ja contada gente,
Num largo rio, ao qual o nome demos
Do dia em que por elle nos metemos.
Deſta gente refreſco algum tomamos,
E do rio freſca agoa, mas com tudo
Nenhum ſinal aqui da India achamos
No pouo com nos outros caſi mudo:
Ora vê Rey quamanha terra andamos
Sem ſair nunca deſte pouo rudo,
Sem vermos nunca noua, nem ſinal,
Da deſejada parte Oriental.
Ora imagina agora quam coitados
Andariamos todos, quam pardidos,
De fomes, de tormentas quebrantados
Por climas & por mares não ſabidos:
E do eſperar comprido tão canſados
Quanto a deſeſperar ja compellidos,
Por ceos não naturais, de qualidade
Inimiga de noſſa humanidade.
Corrupto ja & danado o mantimento
Danoſo & mão ao fraco corpo humano,
E alem diſſo nenhum contentamento
Que ſequer da eſperança foſſe engano:
Cres tu que ſe eſte noſſo ajuntamento
De ſoldados, não fora Luſitano,
Que durara elle tanto obediente
Por ventura a ſeu Rey & a ſeu regente?
Cres tu que ja não forão leuantados
Contra ſeu capitão ſe os reſiſtira,
Fazendo ſe Piratas, obrigados
De deſeſperação, de fome, de ira?
Grandemente, porcerto eſtão prouados
Pois que nenhum trabalho grande os tira
Daquella Portugueſa alta eccellencia
De lealdade firme, & obediencia.
Deixando o porto em fim do doce rio
E tornando a cortar a agoa ſalgada,
Fizemos deſta costa algum deſuio
Deitando pera o pego toda a armada:
Porque ventando Noto manſo & frio
Nã nos apanhaſſe a agoa da enſeada,
Que a coſta faz ali daquella banda
Donde a rica Sofala o ouro manda.
Eſta paſſada, logo o leue leme
Encomendado ao ſacro Nicolao,
Pera onde o mar na coſta brada & geme
A proa inclina dhũa & doutra nao.
Quando indo o coração que eſpera & teme
E que tanto fiou dhum fraco pao,
Do que eſparaua ja deſeſperado
Foy dhũa nouidade aluoroçado.
E foy, que eſtando ja da costa perto
Onde as prayas & valles bem ſe vião,
Num rio, que ali ſae ao mar aberto
Bateis aa vela entrauão & ſayão:
Alegria muy grande foy porcerto
Acharmos ja peſſoas que ſabião
Neuegar, porque entrellas eſperamos
De achar nouas algũas, como achamos.
Ethiopes ſam todos, mas parece
Que com gente milhor comunicauão,
Palaura algũa Arabia ſe conhece
Entre a lingoagem ſua que falauão.
E com pano delgado que ſe tece
De algodão, as cabeças apertauãa,
Com otro que de tinta azul ſe tinge
Cadahum as vergonhoſas partes cinge.
Pella Arabica lingoa que mal falão,
E que Fernão martinz muy bem entende
Dizem, que por nos, que em grãdeza ygoalão
As noſſas, o ſeu mar ſe corta & fende.
Mas que la donde ſae o Sol, ſe abalão
Pera onde a coſta ao Sul ſe alarga, & eſtende
E do Sul pera o Sol, terra onde auia
Gente aſsi como nos da cor do dia.
Muy grandemente aqui nos alegramos
Coa gente, & com as nouas muito mais.
Pellos ſinais que neſte rio achamos
O nome lhe ficou dos bons ſinais:
Hum padrão neſta terra aleuantamos
Que pera aſinalar lugares tais
Trazia alguns, o nome tem do bello
Guiador de Tobias a Gabello.
Aqui de limos, caſcas & doſtrinhos,
Nojoſa criação das agoas fundas,
Alimpamos as naos, que dos caminos
Longos do mar, vem ſordidas & immundas:
Dos oſpedes que tinhamos vizinhos
Com moſtras apraziueis & jocundas,
Ouuemos ſempre o vſado mantimento
Limpas de todo o falſo penſamento.
Mas não foy, da eſperança grande & immenſa
Que neſta terra ouuemos, limpa & pura
A alegria: mas logo a recompenſa
A Ramnuſia com noua deſuentura:
Aſsi no ceo ſereno ſe diſpenſa,
Coesta condição peſada & dura
Nacemos, o peſar terâ firmeza,
Mas o bem logo muda a natureza.
E foy que de doença crua & feya
A mais que eu nunca vi, deſempararão
Muitos a vida, & em terra eſtranha & alheia
Os oſſos pera ſempre ſepultarão:
Quem auerâ que ſem o ver o creya
Que tão disformemente ali lhe incharão,
As gingiuas na boca, que crecia
A carne, & juntamente apodrecia.
Apodrecia cum fetido & bruto
Cheiro, que o âr vizinho inficionaua,
Não tinhamos ali medico aſtuto,
Sururgião ſutil menos ſe achaua:
Mas qualquer neste officio pouco inſtructo
Pella carne ja podre aſsi cortaua,
Como ſe fora morta, & bem conuinha
Pois que morto ficaua quem a tinha.
Em fim que neſta incognita eſpeſſura
Deixamos pera ſempre os companheiros,
Que em tal caminho & em tanta deſuentura
Forão ſempre com noſco auentureiros:
Quam facil he ao corpo a ſepultura
Quaeſquer ondas do mar, quaeſquer outeiros,
Estranhos, aſsimeſmo como aos noſſos,
Receberão de todo o illuſtre os oſſos.
Aſsi que deſte porto nos partimos
Com mayor eſperança & mòr triſteza,
E pella coſta abaixo o mar abrimos
Buſcando algum ſinal de mais firmeza:
Na dura Moçambique em fim ſurgimos,
De cuja falſidade & mâ vileza
Ia ſeras ſabedor, & dos enganos
Dos pouos de Mombaça pouco humanos.
Ate que aqui no teu ſeguro porto,
Cuja brandura & doce tratamento,
Darâ ſaude a hum viuo, & vida a hũ morto,
Nos trouxe a piedade do alto aſſento:
Aqui repouſou, aqui doce conforto,
Noua aquietação do penſamento
Nos deste, & vês aqui ſe atente ouuiſte,
Te contey tudo quanto me pediste.
Iulgas agora Rey ſe ouue no mundo
Gentes que tais caminhos cometeſſem?
Crês tu que tanto Eneas & o facundo
Vliſſes, pello mundo ſe eſtendeſſem?
Ouſou algum a ver do mar profundo
Por mais verſos que delle ſe eſcreueſſem,
Do que eu vi, a poder desforço & de arte,
E do que inda ei de ver, a oitaua parte?
Eſſe que bebeo tanto da agoa Aonia
Sobre quem tem contenda peregrina,
Entre ſi, Rodes, Smirna, & Colofonia,
Atenas, Yos, Argo, & Salamina:
E ſoutro que eſclarece toda Auſonia,
A cuja voz altiſona & diuina
Ouuindo, o patrio Mincio ſe adormece,
Mas o Tibre co ſom ſe enſoberuece.
Cantem, louuem, & eſereuão ſempre eſtremos
Deſſes ſeus Semideoſes, & encareção,
Fingindo Magas Circes, Polifemos,
Syrenas que co canto os adormeção:
Dem lhe mais nauegar â vella & remos
Os Cicones, & a terra onde ſe eſquecem
Os companheiros em goſtando o Loto,
Dem lhe perder nas agoas o Piloto.
Ventos ſoltos lhe finjão & imaginem
Dos odres, & Calipſos namoradas,
Harpias, que o manjar lhe contaminem
Decer aas ſombras nuas ja paſſadas:
Que por muito & por muito que ſe afinem
Nestas Fabulas vaãs tambem ſonhadas,
A verdade que eu conto nua & pura
Vence toda grandiloca eſcriptura.
Da boca do facundo capitão
Pendendo eſtauão todos embibidos,
Quando deu fim aa longa narração
Dos altos feitos grandes & ſubidos:
Louua o Rey o ſublime coração
Dos Reis em tantas guerras conhecidos,
Da gente louua a antiga fortaleza,
A lealdade danimo & nobreza.
Vay recontando o pouo que ſe admira
O caſo cada qual que mais notou,
Nenhum delles da gente os olhos tira
Que tão longos caminhos rodeou:
Mas ja o mancebo Delio as redeas vira
Que o irmão de Lampecia mal guiou,
Por vir a deſcanſar nos Thetios braços
E el Rey ſe vay do mar aos nobres paços.
Quam doce he o louuor & a juſta gloria
Dos proprios feitos, quando ſam ſoados,
Qualquer nobre trabalha que em memoria
Vença, ou ygoale os grandes ja paſſados:
As enuejas da illustre & alhea hiſtoria
Fazem mil vezes feitos ſublimados,
Quem valeroſas obras exercita
Louuor alheo muito o eſperta & incita.
Não tinha em tanto os feitos glorioſos
De Achiles, Alexandro na pelleja,
Quanto de quem o canta, os numeroſos
Verſos, iſſo ſo louua, iſſo deſeja:
Os tropheos de Melciades famoſos
Temiſtocles deſpertão ſo de enueja,
E diz, que nada tanto o deleitaua
Como a vez que ſeus feitos celebraua.
Trabalha par moſtrar Vaſco da Gama
Que eſſas nauegaçoẽs que o mundo canta,
Não merecem tamanha gloria & fama:
Como a ſua, que o ceo & a terra eſpanta:
Si mas aquelle Heroe que eſtima & ama
Com doẽs, merces, fauores, & honra tanta
A lira Mantuana faz que ſoe
Eneas, & a Romana gloria voe.
Dâ a terra Luſitana Scipioẽs
Ceſares, Alexandros, & da Auguſtos,
Mas não lhe dâ com tudo aquelles doẽs
Cuja falta os faz duros & robustos
Octauio, entre as mayores opreſſoẽs
Compunha verſos doutos & venuſtos,
Não dirâ Fuluia certo que he mentira
Quando a deixaua Antonio por Glafira.
Vay Ceſar ſojugando toda França
E as armas não lhe empedem a ſciencia,
Mas nũa mão a pena, & noutra a lança
Igoalaua de Cicero a eloquencia:
O que de Scipião ſe ſabe & alcança
He nas comedias grande experiencia,
Lia Alexandro a Homero de maneira
Que ſempre ſe lhe ſabe aa cabeceira.
Em fim não ouue forte capitão
Que não foſſe tambem douto & ſciente,
Da Lacia, Grega, ou Barbara nação
Se não da Portugueſa tão ſomente:
Sem vergonha o não digo, que a rezão
Dalgum não ſer por verſos excelente,
He não ſe ver prezado o verſo & rima,
Porque quem não ſabe arte não na eſtima.
Por iſſo & não por falta de Natura
Não ha tambem Virgilios nem Homeros,
Nem auerâ ſe eſte coſtume dura
Pios Eneas, nem Achiles feros:
Mas o pior de tudo he que a ventura
Tão aſperos os fez, & tão Austeros,
Tão rudos, & de ingenho tão remiſſo
Que a muitos lhe dâ pouco, ou nada diſſo.
Aas Muſas agardeça o noſſo Gama
O muito amor da patria, que as obriga
A dar aos ſeus na lira nome & fama
De toda a illuſtre & bellica fadiga:
Que elle, nem quem na eſtirpa ſeu ſe chama,
Caliope não tem por tão amiga,
Nem as filhas do Tejo, que deixaſſem
As tellas douro fino, & que o cantaſſem.
Porque o amor fraterno & puro gosto
De dar a todo o Luſitano feito
Seu louuor, he ſomente o proſuposto
Das Tagides gentis, & ſeu reſpeito:
Porem não deixe em fim de ter deſpoſto
Ninguem a grandes obras ſempre o peito,
Que por eſta, ou por outra qualquer via
Não perdera ſeu preço & ſua valia.