Horas depois o Onça e Virgulino entravam na puxada e recomendavam de novo a enferma à família de Inácio.

— Façam esta obra de caridade - disse Virgulino; - ela há de saber ser agradecida.

— Ouça, Inácio; tratem-na bem porque eu pago, posso pôr e dispor e tenho com que - ponderou o Onça. - A sua mulher já me disse que não havia perigo, conservem-me, pois, aqui a moça até que voltemos. Até a vista.

Quando iam montando a cavalo, Virgulino, dirigindo-se ao primeiro chefe, lembrou-lhe a meia voz uma de suas promessas, por uma pergunta:

— Os malvados que maltrataram a d. Eulália ficam impunes?

— Não; mas não posso já, já, saber; o Diabrete virá no meio do farrancho para ouvir as conversas.

— Há um meio: eu dei a d. Eulália a minha bolsa, e não a encontrei em seu poder, quando achei em tão desgraçado estado a pobre moça.

— É um meio de descobrir: descanse que o exemplo há de escarmentar os outros. Eu o prometo.

A cavalgada destilou por detrás da vendola por uma picada, que através do capoeirão comunicava a estrada de B. V. com outra, que se ia entroncar com a que se dirigia para o ponto que a numerosa cavalgada tinha por alvo.

— Estamos livres por algum tempo - murmurou Inácio; - é pelo menos um mês de descanso, se não lhes levar o diabo.

— Eu bem vos aconselhei quando quisestes fazer este negócio, agora é sofrer.

— Tem razão, mulher, tem razão, mas, o que quer? A ambição é sempre assim. Hei de acompanhar a procissão até o fim, não posso mais remediar.

Pouco durou a conversação do velho com a esposa, porque um grupo de retirantes de B. V. veio interrompê-lo para comprar provisões. Após, chegarem outros e outros, e Inácio não pode mais abandonar o balcão durante o dia. À tardinha, uma família chamou a atenção do velho vendeiro. Era uma senhora idosa, que vinha precedida por duas meninas, a mais velha das quais teria 11 anos, e uma mocinha de 14 a 15 anos, que carregava, deitada sobre o ombro, uma menina de quatro anos.

Todas elas traziam trouxas à cabeça, mas, ao contrário da maioria dos retirantes, não vinham imundas e repelentes.

— É uma venda, minha tia - disse a mocinha para a velha senhora; - talvez o dono queira comprar algum do nosso ouro e assim tenhamos com que obter alguma coisa.

— Talvez - respondeu a velha senhora; - eu vou lá. Encaminhando-se para Inácio, a idosa retirante apresentou-lhe umas argolas de orelha e uns pares de brincos de criança, pedindo-lhe que os comprasse.

— Não é o meu ramo de negócio - disse o vendeiro -, e mesmo agora não é tempo para negociar com estes objetos, a não ser por pouco mais de nada.

— Chega para matar a fome a quatro infelizes; aquelas que ali estão? Se chega, meu senhor, é uma grande esmola que me faz.

Inácio tomou os objetos e, pondo-os na palma da mão, sopesou-os e examinou-os miudamente, perguntando por fim.

— São de ouro mesmo?

— Devem ser, meu senhor - respondeu a senhora, em cujo semblante lia-se o temor de uma repulsa; - comprou-os pessoa entendida, que não se deixaria lograr.

— Isto é que ninguém pode saber, os marinheiros mascates passam por esses sertões muito ouro falso. Só quem é do ofício pode conhecer.

Voltou a seu exame atento aos objetos, enquanto a senhora o olhava de soslaio com uma súplica dolorosa no marejamento de lágrimas, que já se lhe nivelavam com o bordo das pálpebras.

— Não parecem maus, não, é verdade - continuou Inácio

—, mas eu não entendo disso. Pelo sim, pelo não - acrescentou olhando penetrantemente para a velha, que o encarou a estremecer - pelo sim, pelo não... veja se lhe agrada o preço.

Foi direto a uma barrica que estava encostada a uma armação, e por duas vezes voltou com as mãos cheias de bolachas, as quais pôs-se a contar.

— Uma, duas, três... dez... vinte, e uma, e duas, e quatro, e mais estas duas de quebra para aquela pequenita. Serve-lhe assim?

— Muito obrigada - murmurou a velha senhora, que pela primeira vez experimentava o amargor da miséria e o rigor da fome. - Deus há de levar-lhe em conta dos seus pecados.

Inácio, que esperava que a sua freguesa regateasse, exigindo melhor e maior preço para a sua mercadoria, ficou boquiaberto a olhar para a mulher, que mostrava tamanho desapego, e, em vez de revoltar-se contra a sua usura, bendizia-o, invocando o nome de Deus a favor dos seus pecados. O seu espantou aumentou, quando, depois de haver recolhido as bolachas, a boa senhora tentou sair.

— Não - disse Inácio -, eu não quero ficar com os seus objetos, e foi por isso que lhe propus o negócio.

— Ai! meu senhor - soluçou a infeliz, debulhando-se em lágrimas - tenha piedade de umas pobres de Deus. Eu não lhe peço por mim que estou velha e não me importo de ser chamada quando o nosso Redentor for servido, mas por aquelas meninas que ali vê, filhas de um homem que nunca negou um bocado aos que precisavam.

— Não é possível fazer obras de caridade nesta época -disse Inácio; mas, envergonhando-se logo da sua crueldade, perguntou: - Quem era esse homem que nunca negou um bocado, e que deixou a família sair com tamanhas necessidades?

— Era o professor de R. V. Não o acuse pela nossa miséria; ele já não existe.

Inácio, como todos os vizinhos da paróquia, conhecia o nome de Francisco de Queiroz, e, ouvindo pronunciá-lo, estremeceu, como o pungisse um remorso.

— E a senhora é gente dele?

— Sua irmã - respondeu d. Ana - e aquelas são suas filhas.

— Mulher - gritou Inácio, indo até a porta do fundo da vendola - vem cá fora, para fazer um negócio.

— Graças, meu Deus - disse d. Ana, com olhar que alevantou para o teto.

Os dois consortes segredaram ao fundo, e Inácio, dirigindo-se em seguida a d. Ana, disse-lhe:

— O negócio fica fechado assim. As bolachas, um quilo carne, dois litros de farinha, e, como Vossa Mercê não encontra casa nesta redondeza, senão daqui a oito léguas, a não ser B. V., tem pousada por esta noite, ali naquela sala.

E apontou para os aposentos em que tinham estado os dois chefes.

D. Ana nem teve voz para agradecer ao vendeiro, tamanha foi a sua alegria, e, da porta, chamou com um aceno de mão as suas sobrinhas.

A família de Inácio veio colocar-se no fundo da venda a olhar muito comovida para o mísero grupo, que, pelos modos, feições e palavras, provava não pertencer à vasa de ociosidade e de descuido pela vida; vasa que aproveitava os fundos sulcos da seca para entornar-se como praga fatal por sobre toda a província.

— Não repara que aquela mocinha é muito parecida com a que está lá dentro? - perguntou uma das filhas de Inácio.

— É verdade; quem sabe se elas não são parentes? Era perguntar.

A suspeita, cochichada entre as raparigas, passou à esposa ao próprio vendeiro, fazendo com que à hospitalidade espontânea se associasse logo uma idéia de lucro.

— Vossa Mercê não tem mais nenhum parente? Mais nem sobrinha ou filha, dona? - perguntou Inácio.

— Tive mais uma sobrinha, porém esta morreu, há já algum tempo, vítima das moléstias da paróquia.

— Pois havia de jurar que tinha visto uma irmã daquela mocinha - e assinalou Chiquinha. - Veio hospedar-se aqui.

— E o senhor foi bom para com ela, hospedou-a, não? - perguntou d. Ana arrastada pela comoção.

— Fiz o que me mandaram por essa infeliz, que parecia não ter mais ninguém no mundo.

— E quem mandou socorrê-la? Não disse que ela parecia não ter mais ninguém na Terra?

— Às vezes aparecem como por encanto homens benfazejos, e a pobrezinha encontrou um desses.

— Ah! Então ela não é de todo desgraçada: tem quem a socorra.

— Por ora...

— E o que é feito dela?

— Partiu, só, desamparada, por esse mundo de fome e de crimes.

D. Ana e as sobrinhas não puderam conter as lágrimas, traindo assim claramente o segredo que a boa senhora queria guardar inviolável.

— Vossa Mercê tem pena da pobre moça, e, não obstante, não a viu. O que faria se a visse arrastando-se por essa estrada, mordida pela fome e pelo cansaço...

Desgraçada, desgraçada - murmurou d. Ana.

— ... atacada pelos bandidos, desrespeitada por eles, perdendo pelo terror...

— Basta, meu senhor, basta Nós nada temos com essa moça, mas vamos também desamparadas, e quem sabe o que nos acontecerá? Faz-nos muito medo semelhante história.

O vendeiro, apesar das negativas de d. Ana, certificara-se de que a protegida do Onça e de Virgulino era sua parenta ou pelo menos sua conhecida íntima. Não dirigiu mais a palavra a d. Ana, mas, com uma piscadela de olhos, chamou a atenção da esposa e das moças para as recém-chegadas.

— Entrem para cá e acomodem-se - disse a esposa. - É casa de pobres, mas dada de bom coração.

A fadiga alquebrava a família Queiroz, e ela não esperou que o bondadoso convite se repetisse. A noite não as encontraria ao desabrigo, e recolheu dos lábios da tia carinhosa e das irmãs de Eulália bênçãos para Inácio e para os seus.

Talvez neste momento, a esposa do abençoado vendeiro fizesse jus ao quinhão que lhe cabia nas preces da família. Durante o dia tinha cercado de solicitude a rede em que jazia a enferma, que só muito tarde voltara confusamente a si, envolvida no olhar da zelosa enfermeira.

— Teve um mau sonho, não é verdade? Esteve muito insofrida, mas não admira, porque a fraqueza produz sempre isto. Olhe; é preciso tomar alguma coisa.

Eulália, abrindo muito os olhos enevoados pelo torpor, fitou atentamente a sua hospedeira, e depois observou tudo quanto via em torno com as minúcias da incredulidade. Depois do exame, sorriu e apertou a mão que havia apenas abandonado à mulher do vendeiro e murmurou:

— Pois eu era capaz de jurar que era verdade. Há pesadelos bem cruéis.

— Eu já os tenho tido horríveis.

Eulália continuou a relancear os olhos por toda a saia, como se julgasse que o pesadelo começava agora. Percorria de alto a baixo as paredes apenas embaçadas, de uma das quais pendia uma espingarda entre apetrechos de caça, e de outra um quadro tosco, esfumaçado, emoldurando um registro da Senhora da Conceição, espancando em derredor como um foco intenso de luz, nuvens sobre as quais esvoaçavam e pairavam anjinhos da compleição de crianças fortes e sãs, sorrindo com a alegria delas.

— Eu era capaz de jurar que se tinha dado realmente.

— É que foi muito mau o sonho, não foi?

— Foi... imagine a senhora - respondeu ela sorrindo, e, exprimindo-se demoradamente com uma voz muito fraca, começou então a contar a cena que a prostrara.

Tinha se despedido de manhã e recebera provisões e uma bolsa que lhe deram os seus protetores, os dois mascarados. Aventurou-se à estrada deserta, que retorcia-se pela extensão dos capoeirões como um ornato de grega sobre as ramagens de um corpinho de chita. Ia pensativa e triste evocando da solidão todas as recordações da sua ridente vida de outrora, esbatidas à vontade naquela tela indefinida. Oito léguas, pensava, devia caminhar para encontrar uma pousada; a noite viria surpreendê-la antes, sacudindo os guizos das cascavéis, aguçando-lhes nos dentes venenosos o apetite de morte, e, entretanto ela teria de afrontá-la sozinha. Se aparecesse alguém, que tivesse igual destino, que fosse também para a capital, refletia, caminhara mais depressa, com a agilidade da coragem!

Foi sob o influxo desse pensamento que viu ao longe um homem vestido de couro, deitado à sombra e à beira do caminho. Aproximou-se dele e perguntou-lhe, ainda que ele fingisse dormir, qual a direção que devia tomar. O homem respondeu-lhe com uma acentuação brutal que passasse quieta o seu caminho, e ela, estremecendo de susto, seguiu.

Um pouco adiante, porém, deu de face com o semblante medonho desse indivíduo, aliás ainda muito moço, e a sua voz fez envermelhecerem-lhe as faces, como se ele a houvesse esbofeteado. O silêncio foi a resposta ao insulto e o estímulo ao crime. Ah! É orgulhosa, exclamou o facínora e, de um salto, despojou-a da bolsa e das provisões.

O terror avassalou-a e faltaram-lhe os sentidos para testemunhar toda a infâmia da agressão. Lembrava-se apenas de que tinha aberto os olhos uma vez, e que não viu mais ninguém junto a si. Apenas as árvores do capoeirão cercavam-na silenciosas, deixando de quando em quando cair sobre si alguma folha, que lhe causava a sensação suave do contato de mão amiga. De novo, perdeu os sentidos, e só agora os recobrava.

— Já vê que não passou de um pesadelo quanto contou; nessas estradas não há ladrões, nem assassinos.

— Graças, meu Deus - suspirou Eulália, e, voltando-se para a mulher de Inácio, acrescentou: - uma boa notícia para quem tem de caminhar desprotegida.

Tentou então levantar-se, mas, com um requinte de solicitude, a velha enfermeira deteve-a, murmurando:

— Os seus protetores não consentem que a senhora retire-se de entre nós.

— Não é possível, eu devo seguir hoje mesmo.

— Eles não querem; ordenaram que não a deixássemos sair.

— Eu os convencerei de que devo seguir o meu caminho.

— Já não estão aí, partiram para o Icó.

— Mas então deixem-me ir; eu agradeço de todo o coração tanta bondade, mas preciso seguir.

— Pode fazê-lo - respondeu a velha, em cuja mente passou uma inspiração triunfadora -, mas a fadiga matará o seu filho. Repare bem e trema pela sorte dele.

Eulália apertou ainda mais a mão da sua interlocutora e, olhando-a de face, prorrompeu em soluços. O amor de mãe vencera-lhe o temor de envergonhar-se diante dos seus, que porventura lhe viessem ao encalço.

Fácil foi à enfermeira convencer a doente de que era necessário ficar alguns dias em repouso, para salvar o ente querido, que a encorajara na fuga aventurosa. A própria desgraça, que já lhe havia sobrevindo, servia de argumento poderoso, e Eulália resignou-se a obedecer, porque as dores que se lhe despertaram com o acordar, assim a aconselhavam.

O velho Inácio, tomando conhecimento da submissão da doente, volveu de novo a reflexão para a família Queiroz.

— E as parentas? - perguntou ele. - Deixamo-las ir? A esposa não soube responder. Era preciso ver que não tinham recebido ordem do Onça nem do Desempeno para acolhê-las. É verdade que a natureza da proteção que dispensavam a Eulália mostrava relações íntimas, porém quem sabia se as mesmas razões os levariam a socorrer a família inteira? O melhor era deixar o resto por conta da d. Ana: oferecer-lhe a casa e, se ela insistisse em seguir viagem, fazer-lhe a vontade.

— É o meu entender - respondeu a velha -, o mais é tomar trabalhos sem a gente saber se pode ou não com eles.

Alta noite, o sono dos moradores e dos hóspedes da venda foi interrompido por um latido impertinente de um cão, que de quando em quando arranhava a porta do fundo da saleta, em que estava agasalhada a família do vendeiro.

— O negócio amanhã começa com a madrugada - disse Inácio à sua mulher; - temos gente lá na varanda.

— Vão ser uma canseira estes dias, até que se esgote toda a gente do povoado.

— Estava quase indo abrir para ver quem é.

— Já se pode imaginar: alguns pobres que querem comprar bolacha; os remediados e os ricos não deixam de bater, e também não viajam em horas mortas.

— Tem razão; o cachorro há de cansar, e eles que esperem até de manhã.

Logo com os primeiros rubores do dia, Inácio levantou-se e veio abrir a porta da vendola; porém, ao contrário do que esperava, achou a varanda deserta.

— Bom; já se puseram a andar, é que não tinham essas urgências ou não sabem o caminho, e neste caso hão de voltar.

A família Queiroz, apesar do cansaço da jornada, começou a aprontar-se, desde que ouviu barulho na vendola. Chiquinha, que era quem se incumbira especialmente da caçula, para livrar d. Ana de tão penoso trabalho, tratou de acordá-la, e endireitá-la para a caminhada do dia. A criança, porém, acordando estremunhada, pôs-se a choramingar e a negar-se aos cuidados da irmã.

Eulália, que ouviu o choro, levantou-se precipitadamente e chamou pela esposa do vendeiro.

— Desculpe-me, minha boa senhora, mas eu lhe ficaria devendo um grande favor se me dissesse quem dormiu hoje aí.

— Umas pobres mulheres, que trazem uma criancinha muito galante.

A fisionomia de Eulália perturbou-se ainda mais com a resposta, e a infeliz toda trêmula, querendo levantar-se para sair apesar das recomendações terminantes da sua enfermeira, perguntou sofregamente:

— E ninguém as acompanha?

— Ah! Pensava que elas vinham sós, e como está nesta circunstância, teve dó delas? Felizmente acompanham-se de alguém; descanse, não esteja a sobressaltar-se que lhe pode fazer mal.

As lágrimas romperam em chuva nos olhos de Eulália, que soluçava ofegando, como se neste momento houvesse recebido algum golpe violento.

— Por que chora assim? - perguntou a velha enfermeira, para quem não era desconhecida a causa do sofrimento da moça. - Não tem razão para isso. Falta-lhe alguma coisa aqui?

— Não - respondeu Eulália. - Choro por uma tolice muito simples, por uma tolice; a voz da criança que está chorando parece muito com a de uma outra de quem fui muito amiga na paróquia.

A velha enfermeira, impressionada, com a piedade de mãe, que era, entendeu ser ocasião oportuna de sondar o coração de Eulália, para dar-lhe o consolo que a sua voz tentaria em vão verter naquela alma.

— Diga com sinceridade, minha amiga; não tem nenhum parente que a possa amparar?

— Não - respondeu Eulália -, nem um só!

— E amigos?

— Também não, porque iria envergonhá-los.

— E se eles a quisessem ver e amparar?

— Eu negar-me-ia, porque hoje morreria de vergonha ao encará-los e preciso de viver para o meu filho.

— Quer então continuar só e sem ninguém?

Eulália meneou a cabeça afirmativamente e a interlocutora continuou:

— Olhe, minha amiga; não sabe ainda o que é a vida, o que vai de desgraças por este mundo fora. Tenho ouvido coisas que fazem arrepiar os cabelos; dizem que as próprias mães já não se importam com os filhos, tamanha é a miséria que todos sofrem. Se os seus parentes, se os seus amigos a quisessem consigo, eu, no seu caso, aceitaria.

— Não, minha senhora, não; eu apenas iria aumentar-lhes as necessidades. Prefiro morrer a causar-lhes mais tormentos; para mortificar-me e entristecê-los, já fiz bastante: deixei-lhes a lembrança de minha vergonha.

— E então por que queria tanto saber quem era a criança que chorava?

— Porque pedir-lhe-ia que ma deixasse ver, talvez pela última vez, o seu rosto, e assim fortalecer-me no meu tormento. Desde que a família vem acompanhada, eu já sei que não é quem penso; a de quem eu falo, só teria hoje por companheiro a sua honradez.

— Eu imagino quanto tem sofrido, minha boa filha - disse a velha retirando-se e enxugando os olhos.

Na vendola Inácio insistia com d. Ana para que demorasse mais a sua partida.

— Por essa madrugada, é uma pressa desnecessária; esta casa é dada de bom coração e bem vê que não incomoda. Demore-se por hoje, descanse mais as meninas; olhe que daqui ao primeiro lugar povoado são oito léguas, e por essas estradas só se encontram casas desertas. Ao menos deixe passar a força dessa gente que por aí vem; pode algum desalmado atrever-se e as senhoras não têm um homem para defendê-las.

D. Ana, depois de assegurar ao velho Inácio de que entre os retirantes de B. V. não temia encontrar inimigos, agradeceu muito o agasalho e pediu que ele e a sua família não se escandalizassem com a sua partida.

— Precisamos chegar ao Ceará; lá teremos abrigo.

— Bem, minha senhora - disse Inácio, e, beijando a face da caçula, deixou-lhe na mãozinha as jóias que na véspera havia recebido de d. Ana, que não viu a ação generosa do velho; - Deus as acompanhe.

Inácio caminhou para a porta da vendola e, dando volta à chave, acrescentou:

— Fico triste, por irem tão sós..

A porta abriu-se violentamente, e estirou-se aos pés de d. Ana um cão negro e robusto, que a festejava batendo a cauda e rosnando.

— Agora já não estou tão sozinha, posso partir descansada.

O velho Inácio conservou-se de pé na porta, enquanto a família afastava-se, e só quando a viu desaparecer, murmurou:

— Bem, fiz hoje uma boa ação; estou contente comigo.