Virgulino, com a impaciência do cão ao descobrir a pista, esgueirou-se por entre as árvores, seguido pelo rapazola, que não deixou de notar tamanha sofreguidão do companheiro, mas limitou-se por muito tempo a acompanhá-lo, sorrindo.

Internaram-se durante mais de dez minutos e, entretanto, nenhum barulho veio dar-lhes esperança de que não seria muito longa a caminhada. Só eles, roçando nos galhos dos arbustos, perturbavam a inação e o profundo silêncio da natureza, que se abrasava, muda e imóvel, nos raios ardentes do sol. O assobio cabalístico sibilou em vão por três vezes anunciando a vizinhança de um chefe. O eco desdobrou-o por toda a circunvizinhança, mas ninguém respondeu.

— Foram meter-se em casa de Judas - ponderou o Diabrete -, ou então já acabaram com a festa e nós nada mais temos para ver. Já não tenho mais vontade de ir adiante.

— Pois eu seguirei o rasto até descobrir onde eles estão, ande embora até de noite. Se quiser pode voltar, Diabrete, e seria até melhor, porque o Onça não nos esperará para o almoço.

— E se o nosso amigo precisar de algum auxílio?

— Não hei de precisar, não - respondeu Virgulino, sorrindo tristemente à observação pedantesca do companheiro; arranjar-me-ei como puder.

— A presa não há de ser grande e não vale a pena esta fadiga.

— É por ela ser pequena que eu devo procurá-la para defendê-la. Vá, Diabrete, eu já não preciso de si; diga lá ao Onça onde estou.

— Então com licença; esta caminhada tem-me feito apetite; até logo.

Virgulino seguiu com maior afã o rasto que se tornava de vez em quando mais vivo, porque se mostrava sobre os claros de solo deixado pela folhagem caída. Via então distintamente que alguém tinha sido arrastado por aí, e esse alguém, pensava o bandido, não podia ser senão Eulália.

Havia caminhado mais de meia hora, quando pareceu-lhe ouvir gemidos, e, apressando mais o passo, verificou, dentro em pouco tempo, que não se enganara. Ainda que exalados por uma voz fraca, os gemidos se tornavam mais e mais distintos. O assobio do chefe de novo sibilou, mas não foi respondido, e o chamado por Eulália, proferido em voz muito alta, não obteve também como resposta mais do que os gemidos, que se tornavam mais distintos.

A poucos passos mostrava-se o quadro que Virgulino, pela alteração do semblante, mostrava temer presenciar. Eulália estava caída sobre uma poça de sangue, na inconsciência da dor, sem cuidado pela compostura.

— Miseráveis! Não respeitam nem as mulheres; mataram-na! - bradou Virgulino, que, ajoelhando-se junto à desmaiada, repetiu por vezes o seu nome, para ver se a chamava ao uso dos sentidos.

Debalde insistiu. Eulália, com os dentes cerrados, as pálpebras entrefechadas deixando ver nos olhos o brilho amortecido do desmaio, não o pedia ver nem ouvir. Paralisava-a e insensibilizava-a o quebrantamento causado pela perda do filho, de quem recebera a coragem para voltar costas ao crime, e defender-se heroicamente com a sua própria desonra. Tinha abortado.

Com o respeito de um irmão carinhoso, o bandido consertou as roupas da sua protegida, tornou-as mais folgadas, e procurou em seguida descobrir a bolsa de couro, que ele mesmo havia dado à forasteira.

— Bem; ao menos terá vingança, d. Eulália - murmurou Virgulino; - eu saberei desmascarar o infame que a insultou.

Levantou nos braços fortes o corpo de Eulália, cuja cabeça foi ajeitada sobre o ombro robusto do bandido, que fez-se de volta para a estrada, a transportar com o desvelo da gratidão a mulher, que também teve por ele piedade em uma hora aflitiva.

Só depois de mais de uma hora de caminhada, coberto de suor, ofegando de cansaço, chegou à estrada larga com a sua carga tão cuidadosamente zelada. Um sussurro de vozes veio dentro em pouco tomar-lhe o passo e de novo o voluntário protetor da mísera retirante foi esconder-se no capoeirão.

— Bem bonita vendinha, porém má catadura de toda aquela gente, não lhes pareceu?

— É verdade, não há ali uma cara que seja conhecida.

— Para serem também retirantes, estão muito asseados.

— São talvez gente de marinheiros, de filhos de fora, que vêm fazer comércio no sertão.

— Deixa-os lá; a grande verdade é que foram eles quem nos deram alguma coisa para matar a fome.

Um grupo de mulheres, carregando grandes trouxas sujas na cabeça, e os filhos menores no braço, passava pela estrada e conversava, como se depreendia das suas frases, a respeito das pessoas que tinham visto na vendola.

Virgulino, que se havia sentado, não só para se esconder melhor, como também para descansar, despiu a véstia e, sobre ela deitando Eulália, tentou levantar-se para ir ver quem eram os conversadores, cujas frases só lhe chegavam em sussurro. Mas os gemidos da infeliz não tinham cessado, e o bandido, receando que os ouvissem, deteve-se, conchegando de encontro ao peito aqueles lábios descorados.

— Deus os ajude, seja quem for; não podem ser malvados, porque respeitam os pobres.

— Deus a ouça, minha mãe.

A estrada voltou ao silêncio e ao abandono, e Virgulino, retomando nos braços o corpo da enferma, recomeçou a caminhada na direção da vendola.

O assobio da quadrilha ecoou por três vezes na solidão do caminho, e Virgulino apressou-se em respondê-lo, bendizendo o Onça, que mandava alguém ao seu encontro.

A alegria tornou-se ainda maior, quando viu a pouca distância o próprio chefe acompanhado pelo Diabrete e mais dois companheiros. Ainda de longe, com a voz entrecortada pelo cansaço, exclamou Virgulino:

— Venham ajudar-me, soam bem chegados; eu havia de custar muito a dar conta da mão.

— Então que diabo de novidade é esta? - perguntou o Onça.

— A nossa visita de ontem, que foi atacada por um diabo.

— Ajude ali, depressa, canalha - gritou o Onça para os seus subalternos -, não vêem vocês um superior a trabalhar?

— Está fora de si.

— Havemos de saber quem é o engraçado desta festa.

— Eu espero - respondeu Virgulino; - você bem sabe que não é dos nossos usos atacar mulheres que não têm defesa.

Um dos sequazes do Onça tomou dos braços de Virgulino o corpo de Eulália, e os dois chefes, encaminhando-se para a vendola, reataram a conversação.

— Não viu ninguém aí pelo caminho?

— Senti vozes, mas, como não queria que me vissem, escondi-me.

— Fez bem, se havia de ficar com o coração cortado.

— Ah! São muitos desgraçados, então?

— Sim, uma porção de mulheres que perderam os maridos ainda ontem, numa briga que houve em B. V.

— Perguntou-lhes você por minha família?

— Por todos... - respondeu tristemente o Onça.

— E o que disseram elas?

O Onça estacou, como se fora de chofre tomado de um insulto paralítico e, franzindo os sobrolhos, encarou com Virgulino repreensivamente. Depois, sorrindo, encolhendo os ombros e respirando alto, silabou demoradamente:

— Você dá um belo exemplo aos seus inferiores! Que tem você com os retirantes da paróquia? Os Viriatos não têm família, enquanto os liga o juramento ao seu chefe.

— Sim, tem toda a razão; estejam nossos pais, mães, filhos e mulheres morrendo à fome, não devemos nem lembrar-nos deles! Tem razão, juramos.

Calaram-se ambos, e silenciosos prosseguiram até a vendola; Inácio, que aí estava à porta, levou a mão cova aos olhos, e com a sua voz bajulatória exclamou:

— Olé, isto é presa de nova espécie, por aqui nunca tínhamos visto igual. E eu também guardo-lhes cá uma surpresa.

— Venha ela, e mande-me tratar desta infeliz; é a nossa hóspede de ontem.

— O almoço está à espera, Desempeno - disse o vendeiro; - não valia a pena demorar tanto para tão pouco.

O Onça acompanhou Eulália até a puxada, e lá ficou a recomendar todo o desvelo pela infeliz à família admirada de ver tais assomos de filantropia em corações de homens tão brutais. Mas ninguém ousava perguntar aos homens, que só conheciam pela voz o segredo deste procedimento novo.

Os bandidos, que estavam a descansar sentados sob a meia-água, estranharam também o ato dos dois chefes, e reparando na tristeza do semblante de Virgulino:

— É boa! - resmungou o rapazola que na véspera gabava a sua faca. - Vêm ainda a tempo essas virtudes, ganham o reino do céu.

A conversa e os comentários aumentaram entre ele quando ficaram em liberdade, por se terem retirado também Virgulino e o Diabrete, e o velho Inácio, que lá dentro exagerava a perfeição do almoço.

— Esta carne assada está sem o que se lhe diga, e o arroz cheira que faz água na boca. Entre neles com vontade, que logo desemburra. O Onça esteve engasgado comigo, mas, logo que meteu o dente no naco, mudou como da água para o vinho, desembuchou todas as queixas. - Vá, Desempeno, tome um gole por cima e verá. Vá, eu deixo-o à vontade.

Virgulino, porém, não compartiu a prazenteria comunicativa do velho vendeiro e sentou-se, taciturno, a desamarrar a máscara que o desfigurava aos olhos mais perspicazes.

— O velho foi desabrido com você, feriu-o muito, mas eu não estou pela história.

— Ele tem razão - respondeu Virgulino - eu jurei. Ainda muito meu amigo é ele, socorrendo d. Eulália. Lembra-se você dela no tempo em que estivemos no povoado?

— Se me lembro ! Ela e a outra de cabelos louros, boas moças!

— Que falta vão elas fazer à pobreza?!

— Não - respondeu o Diabrete; - em B. V. já não há gente. Fugiu todo o povo; tem passado muito e o resto vem por aí roncando que parece uma ventania.

— Oh! Que desgraça, Santo Deus! Que desgraça a minha! Hei de ver partirem os meus, sem que lhes possa dizer uma única palavra!

O Diabrete abaixou os olhos e murmurou com entoação sentida:

— E não poderá mesmo, porque eles não passarão mais.

— Morreram então?

— Não - acudiu o rapazinho -, mas já vão longe a esta hora. Aquelas vozes, que você sentiu, eram deles. Eu quando vi os seus pequenos, quando vi a sua mulher tão magra e tão abatida, tive vontade de dizer-lhes: olhem, eu sou o filho do Feiticeiro, o meu pai e o Virgulino estão aqui; entrem, nós agora temos dinheiro, não precisamos de ração: comam, bebam. Mas o olhar do velho fez-me calar e recuar, porque a sua mulher como que reconheceu a voz do meu pai. Não pude ter senão a alegria de encher bem de bolachas as mãos dos pequenos, de carregar de farinha e de carne as moças e sua mulher, e lá dei um pouquinho de vinho à velhinha, a vovó, que mal pode já com as alpargatas, mas que ainda assim estira o andar para ganhar tempo.

Virgulino pôs-se a soluçar convulsivamente, enquanto as lágrimas lhe escorriam em fio, e o pequeno continuou:

— Lá morrer de fome, não morrem não, eu o juro, porque ainda por cima o velho passou para mão da velhinha algumas notas; mas ser tristeza, é; eu ainda me lembro quando morreu minha mãe; o velho mesmo arrancava os cabelos aos maços.

— E hoje não consente que eu veja os meus. Hei de dar ao diabo esta vida; matem-me se quiserem, mas eu não fico mais nesta maldita sorte.

— Espere, eu vou ver se arranjamos a ida para Quixeramobim; assim está tudo feito.

— Como você é bom, Diabrete! Não parece filho do Onça.

— Psiu, ele aí vem, coma para agradá-lo.

Virgulino dera apenas algumas garfadas com a displicência de quem está profundamente magoado, quando assomou à porta o Onça, chamado por Inácio.

— Lá está acomodada a menina; a velha disse que não há de ser nada, que a põe boa em menos de 15 dias.

Inácio parou à porta a um sinal do Onça que o detinha enquanto Virgulino se mascarava.

— Então qual é a surpresa? - perguntou ele. Você também já sai à estrada?

— Olá! Entre para falar com o chefe - gritou Inácio voltando para fora.

— De onde vem ele?

— Do Icó.

O portador, que era um homem robusto, acaboclado e de modos rudes, aproximou-se e entregou ao Onça uma pequena bolsa de couro, pronunciando três palavras, que era a senha da quadrilha.

— Vivo, luto e venço.

— Vá em paz - respondeu o chefe e fez sinal a Inácio e ao recém-chegado para que se retirassem.

Abriu então vagarosamente a bolsa e tirou de dentro dela uma pequena placa de folha-de-flandres, pintada de amarelo de um lado, e mostrou-a a Virgulino e ao Diabrete.

— Partir já - exclamou Virgulino, olhando fito para o Onça.

— Mas não diz para onde, é só um aviso - ponderou o Diabrete.

Onça voltou na palma da mão o outro lado da senha pintada de vermelho:

— Para onde está o chefe - murmurou ele e acrescentou em voz alta: - Inácio, diga ao portador que faça-se depressa na volta, e aos outros que se preparem a fim de seguir para o Icó.

— Eu não posso obedecer - disse Virgulino levantando - esta ordem é cruel para o pai que sabe que os seus filhos andam ao desamparo por estas estradas fora.

O Onça, afastando rapidamente a vestia, levou as mãos à tinta e dai as retirou armadas por um par de revólveres, fazendo alvo para o desventurado pai.

— Você sabe que eu sou seu amigo, Virgulino, mas sabe também que eu sou seu chefe e que os Viriatos não se retiram deixando soldados seus. Escolha: ou morre ao primeiro movimento ou obedece. Vamos, responda e lembre-se de que faço-lhe saltar os miolos, e mais a todos os seus parentes, que não se acham longe daqui.

— Obedeço - respondeu o mísero pai; - meus filhos não têm culpa da minha loucura.

— Saia então.

O chefe foi obedecido, e quando ficou só, murmurou entre dentes:

— Antes o veneno das cobras, ele não me ofendia o coração.