No dia a que se referia a notícia da folha cuja leitura Feitosa acabava de ouvir, um homem, com a barba e os cabelos descurados, vestido de couro, e trazendo na mão um chapelão de sertanejo, entrou pela Sé com passo vagaroso e medido.
Ajoelhou-se em frente ao altar-mor e, inclinando-se profundamente, demorou-se por largo tempo a rezar.
A igreja apresentava um aspecto tristonho. A claridade da tarde, que iluminava grande parte da nave e punha em relevo as suas decorações, não tinha a mesma intensidade na capela-mor e deixava-a meio mergulhada na penumbra.
O coro e um avarandado próximo, mobiliados de cadeiras cômodas e numeradas corno num teatro, ostentavam à claridade crepuscular uma preocupação hierárquica no domínio da igualdade cristã. Sob eles jaziam, estendidos em cima de redes sórdidas, moribundos que a demasia da anasarca ou o emagrecimento devido ao relaxamento intestinal tornavam deformes.
Junto a um confessionário sucediam-se um a um estes fiéis, que vinham buscar na voz do sacerdote a última esperança.
O homem, depois de concluir a oração, dirigindo-se a um indivíduo que estava encostado a uma das portas laterais da capela-mor, perguntou-lhe quando poderia falar ao bispo.
— S. Ex.a tem estado incomodado e não recebe ninguém.
— Está de cama?
— Não; mas não pode receber ninguém.
— Ele há de falar-me, tenho certeza.
— Pode ser; porém outros e de colarinho lavado o têm procurado e ele não os tem recebido.
— Talvez o senhor não esteja bem informado; é impossível o que me diz.
— Falo porque, sendo sacristão daqui, dou-me com pessoas da casa, e estas, que têm olhos, vêem o que eu lhe disse. Fale com o senhor padre, que ali está, e saiba, ao certo.
— É o que já havia resolvido.
Estas palavras foram proferidas com uma entoação de altivez tal, que o sacristão olhou atentamente para o desconhecido. Mediu-o de alto a baixo e, sorrindo desdenhosamente, murmurou:
— Está bem arranjado; tenho muito de que me rir hoje.
O sacerdote, que estava no confessionário, levantou-se por fim e, erguendo a voz, perguntou se não havia mais ninguém para confessar-se.
— Se está algum dormindo, acordem-no, porque, em saindo daqui, não estou mais para aturar maçada.
Ninguém respondendo ao apelo, o padre fez um sinal para o sacristão, que enfiou pelo corredor da sacristia, enquanto sua reverendíssima caminhava para a porta em que ele se achava.
Quando o padre, depois da genuflexão diante do altar-mor, ia entrar no mesmo corredor em que o sacristão havia desaparecido, o homem desabusado tomou-lhe o passo:
— V. Revma. pode dar-me uma palavra?
O padre, reparando no indivíduo que o interrompera, parou bruscamente e interrogou:
— Há quanto tempo está à minha espera?
— Há quase uma hora.
— E não me ouviu perguntar se faltava mais alguém para confessar?
— Mas eu não quero positivamente confessar-me.
— Pois eu não posso também conversar agora; tenho de dar sacramento a toda esta súcia que ali está.
O padre apontou para as redes e, dirigindo-se ao sacristão, que acudira todo risonho logo que lhe ouviu a voz, acrescentou:
— Creio que as hóstias não chegam.
— Eu enchi hoje a âmbula; temos hóstias a dar com um pau.
O desconhecido, cruzando os braços e meneando a cabeça, reparou por sua vez no padre e no sacristão e ficou a sorrir.
"Isto por aqui não difere muito do resto da província, os costumes não mudaram" - pensou Paula.
O sacerdote e o sacristão voltaram pouco depois, revestidos, para dar o sacramento, e um tilintar prolongado de campainhas encheu o recinto.
Quando terminou a cerimônia, o desconhecido acercou-se de novo do sacerdote, logo que ele começou a desrevestir-se:
— Diga-me, V. Revma.: os sacerdotes do sertão não merecem nem uma palavra dos que moram na praça?
O sacerdote parou e encarou com o seu interlocutor. Havia no seu olhar espanto e confusão; na sua mente de tingido do Senhor não passava a simples hipótese de que fosse possível a um indivíduo da sua classe chegar a tão mísero estado. O voto de pobreza para si não passava de uma vã formalidade.
— Nunca nos negamos a manter boas relações com os colegas - disse ele.
— Então leia - replicou o desconhecido, que tinha levado a mão ao bolso e, tirando dele um papel, apresentou-o ao sacerdote.
— Tenho, pois, a satisfação de falar com o reverendo vigário de B. V. - murmurou o sacerdote, estendendo a mão ao recém-chegado.
Paula correspondeu ao cumprimento e, com seu sorriso irônico e incômodo, respondeu:
— Agradeço muito a bondade de V. Revma.
— Já vejo que não andam bons os negócios lá pela sua paróquia.
— Pela minha ex-paróquia; lá não há mais talvez viva alma, porque, se houvesse, não arredaria um passo do meu posto.
— É desta forma que se deve desempenhar a nossa santa missão, se bem que outros não entendam do mesmo modo.
— Ah! eu tenho muitos exemplos disto...
— Estamos com a capital cheia de vigários que abandonaram as suas paróquias.
— É que hoje não se pode habitar o sertão; não se ganha para o prato.
— Do mesmo, pouco mais ou menos nos queixamos nós; vive-se, porém muito apertadamente.
— Numa cidade como esta?!
— A cidade já deu muito, mas com a afluência de padres não toca uma rua a cada um.
— É mau isto, homem!
— É o diabo, Deus me perdoe; estamos quase retirantes.
Paula esperou em vão que o seu colega lhe oferecesse a casa; mas, vendo que a conversação estendia-se, e que ficaria sem pousada, formulou a pergunta já feita ao sacristão:
— Será possível falar ao sr. bispo?
— Pois não! Vindo comigo terá entrada; se quiser, estou às ordens.
Atravessaram a igreja e, saindo pela porta principal, Paula chamou a atenção do colega para o grande cruzeiro levantado em frente à igreja, logo ao descer do átrio.
— Muitas saudades me causa este lenho.
— Dos tempos de estudante, naturalmente?...
— E dos primeiros tempos da minha carreira sacerdotal.
— Não há quem não as tenha.
— As missas de madrugada, as festas da semana santa. Estas eram então feitas com muito aparato e muito recolhimento.
— Hoje o aparato é maior.
— Mas o recolhimento acabou-se, hein?
— O número de devotos tem diminuído muito.
— Mas nem por isso o respeito pela religião se perdeu de todo.
— Já não se pode fazer tudo; o padre já não é o anjo do Senhor.
A medida que iam falando, os dois padres dirigiam-se para o palácio episcopal, ao lado da igreja, e cuja porta principal estava sempre fechada.
Paula, reparando nesta circunstância, ponderou ao colega:
— Creio que perdemos os passos.
— Não; a porta conserva-se fechada para que S. Ex.a não seja incomodado pelos retirantes. Se ele não tomasse esta providência, nem todo o dinheiro da mitra chegaria para dar esmolas a essa corja. Vai ver como abrem já.
Tinham parado em frente à porta, e o padre bateu três pancadas fortes por duas vezes, e depois uma isolada.
A porta abriu-se e os dois padres subiram as escadas do palácio.
O bispo, muito amável para o sacerdote, apenas inclinou a cabeça diante do vigário.
— Venho apresentar-lhe o sr. vigário de B. V., que chega entre nós neste miserável estado.
— Oh! - exclamou o bispo entendendo a mão a Paula - muito sinto as suas infelicidades e me congratulo com a nossa santa religião, pela coragem que sabe dar aos apóstolos.
— O mais humilde, o ínfimo dos servos de V. Ex.a Revma. - respondeu Paula - e o mais indigno dos ministros do Senhor.
— Fez toda a viagem a pé, não é verdade? Deve estar cheio de fadiga; esta casa fica desde já ao seu dispor.
— Eu contava com a grande caridade do meu digno prelado e, como estou em extrema necessidade, aceito a esmola.
O bispo, deveras penalizado com o estado em que via o vigário, apressou-se em alargar o seu obséquio, dando logo ordens para que todos os cuidados da hospedagem lhe fossem dados.
— Eu calculo quanto sofreu V. Revma.
— A imaginação de V. Exa. pode imaginar o que quiser, mas nunca chegará à verdade.
— O cansaço da viagem...
— Nada é diante das afrontas que sofri...
— As privações cruéis durante as jornadas...
— Foram muitas, mas nada valem, comparadas com a dor das ingratidões com que me amarguraram os últimos dias que passei na minha pobre B. V.
— Foram, pois, sofrimentos físicos e morais, torturas da alma e do corpo.
— Não me aterraram, porque os suportei para maior glória de Deus.
Paula passou logo a satisfazer a curiosidade do prelado acerca dos negócios da paróquia.
A causa das suas perseguições foi um desastre acontecido na família de um seu finado amigo, a quem ele prestou o serviço de amparar.
O semblante de Paula estava tão artisticamente perturbado, que fazia realmente acreditar na verdade das palavras, que eram pausadamente ditas.
Prosseguindo na narração, acrescentou:
— Havia na família uma rapariga de 20 anos, a qual criei nos meus joelhos. Era formosa, chamavam-na rainha do lugar.
Fez uma pausa, como se pela mente se lhe erguesse o retrato primitivo de Eulália, com o seu corpo direito e cheio como os estolhos novos do mandacaru; os olhos grandes, negros, de um brilho seco, olhos que se destacavam muito sob as curtas pestanas das pálpebras finas.
— Dir-se-ia a estátua do pecado - concluiu Paula.
— E esta rapariga perdeu-se? - perguntou o sacerdote. — É exato.
— E o que é feito hoje dela?
— Não sei; porém sobre mim pesa a responsabilidade do seu destino no entender dos paroquianos, que me constituíram seu sedutor.
Duas lágrimas tardas e grossas, espremidas com grande esforço, rolaram pelas faces queimadas de Paula.
— A impiedade vai penetrando até os nossos sertões murmurou o bispo, comovido pela hipocrisia do vigário.
— Já os ministros de Deus não podem sequer professar a caridade - ajuntou o sacerdote; - V. Exa. não se lembra da acusação que me fizeram, a respeito daquela família da rua da Palma?
O bispo meneou a cabeça, e Paula, com a finura que tanto o engrandecera na paróquia, ponderou:
— Já V. Revma. sabe quanto semelhantes injustiças doem; é preciso muita fé na remuneração da inocência por Nosso Senhor Jesus Cristo, para que se vençam as sugestões da ira.
— O sr. vigário foi prudente?
— Tanto quanto se pode ser, apesar da perseguição. A calúnia fez eco, na hora da missa; quando eu recolhia o meu espírito para implorar da misericórdia divina perdão para os meus e para os pecados dos meus paroquianos, estes prorromperam em insultos.
— Dentro da casa do Senhor?
— Dentro da casa do Senhor - repetiu Paula, em cujos olhos as lágrimas continuaram a brotar. - Romperam até ameaças de morte, e tão tremendas, que me vi constrangido a esconder-me na mesma hora.
— E não houve na paróquia quem tomasse o partido de V. Revma.?
— Antes não houvesse; o meu coração não teria um luto perpétuo, luto que só a morte dissipará.
— Houve então conflito?
— Os retirantes, esses desgraçados que são órfãos em toda parte, haviam encontrado em mim um defensor natural. Graças à boa vontade que só a nossa eterna fé sabe inspirar para com os que padecem, eu velava por eles na qualidade de membro da comissão de socorros. Como os tratava, pode dizer a vingança bárbara que tomaram espontaneamente. Na mesma noite da injúria a paróquia era acometida alta noite pelos agradecidos retirantes e a casa do outro comissário, do sacristão da paróquia e de um dos potentados do lugar eram assaltadas. Os dois primeiros pagaram com a vida a leviandade de terem tomado parte nas manifestações injustas que me foram feitas.
— Foi então uma calamidade pública?
— Não pude evitar. Sentindo-me traído pelo meu sacristão, abandonado, resolvi ocultar-me na sacristia e aí permaneci o dia inteiro. Só consegui sair, quando o clamor do povoado advertiu-me da sua iminente ruína. Então, empunhando um crucifixo, saí e contive ainda os ímpetos dos assaltantes, que se desvairavam cada vez mais com a resistência que encontravam nos paroquianos.
— É um fato singular - murmurou o sacerdote pensativo -, muito singular.
O bispo agitou afirmativamente a cabeça e Paula prosseguiu:
— Mais lhe admirará a outra circunstância. Um dos poderosos da terra, moço completamente perdido, soberbo, ímpio, tinha amores clandestinos com uma rapariga da paróquia. Ele era Feitosa e ela, Monte.
— O final há de ser por força uma tragédia.
— Não chegou a tanto, mas uma noite o rapaz, ao sair da entrevista, foi surpreendido e apunhalado em um dos ombros, ferida que não lhe causou a morte.
— Não podia ser outro o fim de tais amores.
— Pois bem; apesar de ser conhecida a rivalidade secular entre Montes e Feitosas, o ódio vivo que eles se permutam, querem saber quem foi o acusado de haver tentado perpetrar crime?
— V. Revma? - perguntaram os dois, admirados.
— Eu - respondeu submissamente o vigário -, eu que não tinha relações íntimas com nenhum dos dois e que fui o primeiro a apontar o Monte como o criminoso.
— Era então uma paróquia de doidos?!
— De caluniadores e perversos - observou Paula - que me odiavam fingindo estimar-me, que me perseguiam, enfim, porque nunca fui condescendente com as suas torpezas e os seus roubos.
— Tem na minha casa um abrigo; é a casa de um seu afeiçoado.
Paula foi, pouco depois, acompanhado pelo sacerdote, conduzido para os aposentos que lhe eram destinados.
— Então a rapariga era uma formosura, hein, seu maganão? E você foi acusado injustamente - disse o sacerdote sorrindo.
— Falte-me a luz neste ponto - disse Paula ajoelhando-se diante de um crucifixo - se eu por acaso tento desculpar-me de um crime por mim cometido.
— Oh! diabo - pensou o sacerdote -, este não é dos nossos, toma as coisas ao pé da letra; mas afinal há de se dar bem com o sistema..."