Eulália demorou-se mais de 15 dias no hospital, e só com grande esforço pôde conseguir da irmã a alta, por muitas vezes pedidas.
— Vai expor-se a grandes sofrimentos e sem necessidade, minha filha - ponderou-lhe a irmã; - Deus queira que se não arrependa.
— É o meu dever que me chama, irmã; não quero que me chamem ingrata.
O sol queimava; o sussurro da multidão derramada pelas ruas e praças chamava a atenção, para logo infundir terror com a miséria dos que falavam.
Eulália caminhava silenciosa e vagarosamente, olhando para todos os lados com a minuciosidade de quem observa por um microscópio.
De repente foi obrigada a parar.
Passava uma fila de carroças sobre as quais eram transportados grandes tonéis de mel.
O líquido, vazando pelas frestas das toscas vasilhas, deixava na calçada um rastilho negro.
Após as carroças precipitava-se uma multidão de crianças, nuas, sórdidas, que apanhavam com os dedos os fios de mel, ou deitavam-se sobre a calçada quente da soalheira para lambê-lo, não sem medonhos conflitos.
"Como devem ter fome estes pequeninos para que lhes consintam fazer semelhante coisa" - pensava Eulália, que aproveitava a parada involuntária para observar à vontade os transeuntes.
Quando o ajuntamento dissolveu-se, Eulália seguiu o seu caminho em direção ao palácio da presidência, o qual é avistado da praça da Assembléia, de que dista apenas alguns passos.
— Disse-me a irmã que o presidente é um bom homem; ele dar-me-á meios de encontrar com a minha família.
A lisonjeira esperança, que apressava e impacientava a moça, não tardou, porém, a desvanecer-se; a ordenança do presidente, com algumas palavras rudemente proferidas, transformou-a logo em desengano.
— Espere lá fora; S. Exa. sairá de tarde. Vamos, desentupa o beco, isto aqui não é comissão.
Eulália não se atreveu a insistir e voltou consternada para a praça, onde havia presenciado o tristíssimo espetáculo dado pelas crianças esfaimadas.
A aglomeração de povo não lhe permitiu andar muito e a moça parou junto da linha de tabuleiros estendida em uma das faces da praça.
As indiretas dos mercadores, as brutalidades de alguns transeuntes começaram desde logo a incomodá-la e Eulália já se dispunha a afastar-se, quando uma nova cena de miséria obrigou-a a demorar-se.
Uma vozeria enorme, atordoadora levantou-se do meio da massa popular. Apitos prolongados e freqüentes sibilavam de todos os lados e de par com eles agudos assovios e estrepitosas assuadas.
— Pega ladrão! - repetiram por muitas vezes centenas de vozes, que eram em parte abafadas pelo barulho da multidão.
Grupos e grupos atropelando-se, enlearam em si a moça, que foi, malgrado seu, transportada para o passeio da praça e para um ponto em que não podia ver a ocorrência; mas logo que o barulho serenou, Eulália pôde saber do que se tratava.
— Ora, é uma velha idiota, coitada, não se pode levar em conta o que ela fez - disse um transeunte.
— Boa desculpa, com o pé de gira ela vai fazendo das suas e comendo a fartar.
— E no entanto ela passa às vezes o dia inteiro a catar no cisco bagaços de cana para chupar. Não está má a fartura.
— Recebe ração.
— Que outros furtam, ou que ela, por não ter onde cozinhar, faz como todos: vende quilos de carne velha por dois vinténs.
— E bebe o dinheiro que apura.
— Ela não sabe o que faz.
— Eu cá se fosse polícia não estava com autos de perguntas: agarrava-a e metia-a na cadeia.
Os interlocutores deste rápido diálogo, que haviam parado junto a Eulália, interromperam-no neste ponto e exclamaram ambos:
— Lá vem a pobre idiota.
— Lá vem a ladra.
Uma mulher de cerca de 50 anos, com os cabelos desgrenhados e tendo por única vestimenta um saco de lona furado para deixar-lhe passar a cabeça e os braços aproximava-se, seguida de uma nuvem de crianças. Os retirantes abriam caminho para deixá-la passar e a infeliz, bamboleando-se, estalando castanholas e cantarolando, marchava como que desapercebida de si mesma.
— Repare - disse o interlocutor que defendia a infeliz; - os seus olhos mostram bem que ela não tem nem pinga de juízo.
— Ora, não há nada que não se possa fingir neste mundo.
A mulher que havia chegado em frente ao grupo formado por Eulália e pelos dois interlocutores parou e, fazendo uma profunda mesura ao que a acusava, perguntou-lhe com uma entoação tristíssima:
— Não conhece o Augusto Feitosa?
Uma gargalhada estrepitosa respondeu à interrogação simplíssima. Só Eulália comoveu-se profundamente e não pôde conter-se.
— Coitada da tia Antônia, como está desgraçada - murmurou ela - já nem conhece a gente.
— Não o viu passar por aqui? - interrogou a idiota. - Há muito tempo que eu o procuro para que ele me dê o conto de réis.
— Pois procure - resmungou o indivíduo a quem ela se dirigia; - há de procurar por muito tempo.
— Eu quero contar-lhe como foi o caso da paróquia. Eu vi o vigário sujo de sangue, e sou capaz de jurar que foi ele e não o Monte quem o quis matar. Ouve? Se vir por ai o Feitosa, diga-lhe que venha falar comigo.
— É a cisma da infeliz - ponderou o outro indivíduo; - não sei o que será isto.
— Um conto de réis - acentuou a idiota - nestas mãos, que festa não farei! Havemos de comer, de pagodear, de cantar, de dançar.
Dizendo estas palavras a velha recomeçou as castanholas e o cantarolado e prosseguiu na sua marcha bamboleada.
Eulália, que tinha custado a dominar o desejo que teve de dar-se a conhecer à velha, ficou como que petrificada.
As palavras da ex-cozinheira de Paula vibraram-lhe um golpe profundo, porque, embora não tivesse mais pelo seu sedutor a paixão de outrora, todavia não pudera desencravar do coração a sua imagem.
A acusação formulada pela idiota comoveu-a. Tinha consigo as provas do crime de Paula e além disso tinha a sua própria confissão. Sabia mais que tal acusação feita ao vigário, este não resistiria embora a levantasse uma idiota.
Demais a velha Antônia procurava Feitosa e era bem provável que este, depois do desbarato da paróquia, tivesse vindo também para a capital e era, portanto, fácil um encontro entre eles.
Se tal acontecesse, qual seria o destino de Paula? Aquele que tanto pânico lhe causava: a vergonha, a infâmia, e agora inevitavelmente, porque havia uma prova fatal, a voz daquela velha que irrompia através da noite de seu espírito.
Perturbada e perplexa diante do futuro horroroso que se desdobrava no horizonte de Paula, Eulália sentiu erguer-se no seu espírito uma pergunta pungente:
— Paula já terá vindo para a capital?
Abaixou a cabeça contristada e, quando a levantou, viu passar em frente a si dois sacerdotes conversando alegremente.
Um deles era Paula.
Tinha readquirido o semblante dos bons tempos da paróquia, o ar acessivo ainda que severo, o passo cadenciado e firme e sobretudo o seu olhar feito de sarcasmos e de altivez.
Eulália, ao reconhecê-lo, sentiu-se duplamente impressionada: pedia-lhe o coração que o avisasse, que o fizesse medir a extensão do perigo que corria; a dignidade ofendida impunha-lhe silêncio e indiferença para com o principal responsável das desgraças de sua família e de seus amigos.
O coração porém venceu, e Eulália, arrastada por uma força invencível, seguiu por algum tempo os dois sacerdotes através da multidão e foi depois colocar-se em lugar em que pudesse ser vista por Paula.
— Quero saber se o amor perdura ou se a sua perversidade chegará até desprezar-me. Vejamos.
Paula aproximou-se em pouco tempo e, impassível, conservando nos lábios o sorriso condescendente com que ouvia o colega, passou olhando friamente para Eulália.
— No fim de contas, é preciso que você saiba a sociedade em que está; é preciso conhecer o mundo - ponderou o companheiro.
— Eu conheço bem os seus enganos e as suas desilusões - respondeu Paula; - a felicidade não foi partilha da terra.
— Miserável - pensou Eulália -, fingiu não me conhecer.
— Com que então há muito a aprender cá neste mundo da capital?
— Muito, mas muito, meu vigário, e quem não souber viver aqui não faz nada.
— Sobre que versam os conhecimentos? Há de ser por força sobre perversidades, porque do que já lhe ouvi sobre o caso da família sua protegida, a virtude aqui não é muito respeitada.
— Meu vigário - disse o sacerdote parando -, atenda bem para esta verdade: a voz do povo é mais vezes voz de Deus do que voz do diabo.
— Como assim?
— Eu tenho experiência própria. Freqüenta-se uma casa; maridos, pais, irmãos, todos, enfim, estão na mais inteira boa fé, ninguém suspeita coisa alguma. O povo, porém, começa a murmurar e, no fundo, há sempre verdade.
— Então o padre confessa que no seu caso houve...
— E crê você que é alguma novidade? Antes de mim, já muitos tinham feito o mesmo.
Paula sorriu olhando de través para o companheiro e acrescentou:
— E nem por isso a igreja deu em terra; a fé continuou o que era.
— Portanto façamos todos o mesmo - acentuou Paula ironicamente.
O companheiro percebeu a intenção do vigário, mas julgou conveniente dissimular.
— Não digo tanto, mas quando se é acusado de haver por sugestões da paixão lançado a desonra no seio de uma família, de haver tentado contra a vida do seu semelhante, de haver atirado uma aluvião de famintos sobre uma povoação pacífica, parece-me de bom conselho não querer ser exceção entre os outros.
— Mesmo se todas estas acusações não passam de calúnias.
— Mesmo assim, porque os jornais têm as suas colunas para receber o que se escreve e não tratam de saber se é exato ou não.
— Isto é uma ameaça formal?
— Não, longe de mim pensar em tal, mas o meu vigário conseguiu as boas graças do senhor bispo, em menos de 15 dias tornou-se já influência junto dele, e o meu vigário, ouvindo uma declaração minha na intimidade, pôs-se a rir de mim.
O sacerdote havia insensivelmente erguido a voz de modo que as suas palavras podiam ser distintamente ouvidas por Eulália, que de novo tinha ido colocar-se na passagem de Paula.
— Foi um engano do meu colega - sorriu o vigário - e para prová-lo peço-lhe que tome os fatos da paróquia do modo que entender.
— Mudemos de conversa - disse o sacerdote e, assinalando Eulália, ajuntou - está ali uma bonita morena. Repare.
— Não é feia, não - respondeu Paula estremecendo involuntariamente - é bonita.
— E é retirante, isto é, não dá trabalhos.
Paula não respondeu. As palavras do companheiro traspassavam-no como punhais buídos e faziam com que o remorso sangrasse-lhe o coração.
De relance passou-lhe pelo espírito uma suspeita. Não teria o despeito levado Eulália a acusá-lo? Os excessos a que ele se entregava na casa das perdidas de Quixadá era uma grave ofensa a qualquer mulher, quanto mais a Eulália que lhe havia dado as primícias do seu amor, toda a abundância de sentimentos que ela entesourara durante 20 anos de virgindade? Era possível que a generosidade daquela alma chegasse ao ponto de perdoar tamanha afronta?
A dúvida ficou irrespondida, e deu como resultado a fraqueza e o terror. Paula, ao passar por Eulália não teve mais coragem de encará-la, estava deveras humilhado e arrependido.
— Oh! vigário - resmungou o companheiro -, a rapariga vem seguindo-nos ao que parece.
— Talvez não, o que quererá ela de nós?
— Talvez esmola... As retirantes gostam muito de pedir esmola aos padres. Sabem que, em regra geral, são sempre atendidas.
— Mas há retirantes e retirantes. Nem todas se sujeitam a pedir.
— Conhece você esta rapariga?
— Não... nunca a vi, mas parece-me, pela cara, ser uma rapariga digna.
— Ai! que você tem saído só de palácio - exclamou o sacerdote; - está com tanto zelo!
Paula sorriu-se a princípio, mas de chofre, sendo avassalado pela dúvida de que o sacerdote, sabedor dos sucessos da paróquia e do papel que neles Eulália representava, o quisesse experimentar, ponderou com uma acentuação severa:
— Está enganado, colega; eu nunca vi aquela moça, e se tem alguma suspeita dissipe-a.
O padre olhou de través para o semblante de Paula, que não podia dominar-se mais e deixava patente a sua impressão.
“É singular" - pensou o sacerdote, notando a comoção de Paula e ao mesmo tempo que Eulália acompanhava-os sempre; - há de haver sucessivamente algum mistério aqui."
Deram mais alguns passos e o sacerdote, parando de chofre, disse para o vigário:
— Tenho urgente necessidade de ir hoje ao palácio; desculpa-me, não, colega?
— Oh! - respondeu Paula, a quem a despedida do padre livrava de um pungente incômodo - eu não quero interrompê-lo nos seus negócios.
O padre afastou-se lentamente, observando, sem que fosse percebido, a confusão do vigário em face da moça.
— O que haverá entre eles? - interrogava a curiosidade do sacerdote.
Paula, voltando sobre os seus passos, caminhou na direção oposta àquela em que estava Eulália, que parou por algum tempo, olhando para o sacerdote; que se viu constrangido a dobrar a primeira esquina.
Eulália percebeu que a intenção de Paula era evitá-la e hesitou em segui-lo.
— Deixá-lo ir, há de parar diante da sua própria ingratidão.
Mas o despeito da mulher desprezada veio eivar a altivez do coração. nobre e generoso. Já não era o mesmo impulso, que a levaria a seguir os dois padres por tanto tempo, o que lhe dirigiu os passos no encalço de Paula, que, fingindo-se indiferente, tomou a rua que passa pela frente do palácio para a praça do paço episcopal.
Na esquina de uma das ruas transversais, que desembocam naquela pela qual seguiam os dois, uma aparição, medonha aos olhos de Paula, como um espectro, fê-lo estatelar.
Era a mísera tia Antônia. A criançada acompanhava-a, dando-lhe puxões e assovios, prorrompendo em gargalhadas cada vez que a infeliz cambaleava.
Eulália aproximou-se então de Paula e com um sorriso, que lhe pertransiu o coração, segredou-lhe:
— Não a conhece também, sr. vigário?
Paula não respondeu, mas, como se fosse bruscamente despertado de um letargo, tentou voltar.
— É a tia Antônia - acrescentou Eulália; - o seu idiotismo tem origem no crime da paróquia, e ela procura o autor dele.
Perturbado e vacilante, o vigário, esforçando-se para libertar-se ao mesmo tempo da multidão que o envolvia e das palavras de Eulália que o torturavam, deu um passo, mas no mesmo instante a mó dos meninos empurrando a idiota violentamente, esta veio bater de encontro ao vigário, em cujos ombros segurou para amparar-se na queda. — Veja como me fazem mal estas crianças e eu não lhes fiz mal nenhum - murmurou a desventurada.
Paula, calado e trêmulo, encolheu bruscamente os ombros para tirar-se da compressão incomoda que o detinha, mas foi inútil: a idiota, segurando-o com mais força, ajuntou:
— Eu não o deixarei mais... Irei consigo para fugir deles. Vê? Estão já quietos. De feito as crianças, educadas no brutal fetichismo das massas pobres da província, ficaram interditas diante do sacerdote. A assuada parou como por encanto, e grande parte dos meninos voltou correndo para a praça da Assembléia, enquanto a outra imobilizara-se em face de Paula.
— Sim, eu a protegerei - disse Paula desnaturando a habitual entoação - mas é preciso que não me impeça de andar; acompanhe-me.
— Está perdido - pensou Eulália -; a velha Antônia o reconhecerá desde que o encare.
Eulália enganou-se; a idiota, ouvindo a voz do vigário, correu a mão pela testa, como que para despertar uma reminiscência; depois encurvou a mão em torno da orelha, fitou longa e minuciosamente o rosto de Paula, e perguntou-lhe:
— Vossa Mercê é padre, não?
Paula, chamando a si todo o sangue-frio, respondeu tranqüilamente.
— Você bem vê, filha; não tenha medo, venha comigo, ninguém lhe fará mal.
Levantou em seguida a voz com a inflexão autoritária do sacerdote respeitado e exclamou:
— Deixem em paz a mulher, vamos, deixem-na em paz, ou os farei espalhar pela polícia.
— Bom padre - murmurou a idiota - eles me faziam mal, e eu não lhes fiz mal nenhum.
— Vamos, filha - tornou Paula com meiguice; - eles são uns malvados.
A velha Antônia, deu alguns passos silenciosa, mas, parando de improviso e colocando as mãos no peito de Paula, exclamou:
— Conhece o Augusto Feitosa?
O semblante de Paula transtornou-se visivelmente, e a velha prosseguiu:
— Ele está aqui, deve dar-me o conto de réis, porque eu sei quem o quis matar. Na mesma noite do crime o vigário entrou em casa com a roupa ensangüentada.
— Cala-te, infame - disse o vigário com uma voz surda e gutural; - quem quis matar o Feitosa tem mãos ainda.
E apertou brutalmente o braço da idiota, a quem em seguida empurrou para longe de si.
A tia Antônia olhou assombrada para o vigário e de novo passou a mão pela fronte; depois murmurou, meneando-a:
— Não, não é ele, eu o conheço bem.
— Não me reconhece - pensou Paula - estou salvo.
Apertou o passo e seguiu precipitadamente.
Eulália aproximou-se então da idiota e perguntou-lhe, sacudindo-a por ambos os punhos:
— Não me conhece, tia Antônia?
— Não - respondeu a idiota, encarando-a fixamente com o seu olhar estúpido -, não sei.
— Sou Eulália; não se lembra da filha do professor de B. V.?
— Não - repetiu a idiota -, não sei.
— Oh, Santo Deus, como os malvados são felizes - pensou Eulália.
Ficou por algum tempo pensativa olhando ora para a velha, ora para o vigário. O cálculo falho abatia-a e fazia com que a razão se lhe perturbasse, vendo que Paula teria a impunidade absoluta, enquanto ela e as outras vitimas ficariam condenadas à dor e à miséria.
— Diga-me, tia Antônia, não conheceu também aquele padre? - perguntou-lhe Eulália repentinamente.
— Não - repetiu a idiota -, não sei.
— Pois é ele o vigário Paula!
Eulália contava que esta revelação produzisse grande abalo à idiota, mas, ao contrário da sua expectativa, a tia Antônia continuou impassível e limitou-se a responder como sempre:
— Não, eu não sei.
Vendo definitivamente perdida a ocasião de tomar a desforra do seu sedutor, mordida pelo desprezo esmagador que ele agora ostentava por si, a moça correu na trilha de Paula, que já entrava no largo do Palácio.
Dentro em pouco tempo, malgrado os esforços do vigário para não se deixar alcançar por ela, Eulália colocara-se-lhe diante.
— O que fiz eu para merecer o seu desprezo? - perguntou arquejando.
— As peripécias da viagem fizeram-na tomar hábitos maus, mulher - ponderou Paula; - eu não quero passar pelo desgosto de a mandar meter na cadeia.
— Eu quero saber o que fiz para merecer o seu desprezo - repetiu Eulália pondo-se-lhe diante e impedindo-o de caminhar.
— O tempo da loucura passou; a senhora não era uma criança; amava-a, correspondeu-me, o erro foi recíproco. Por minha parte, eu hoje apenas quero esquecê-lo.
— Eu tenho um meio de lembrá-lo sempre.
— Não me acobarda; não é muito que uma mulher que ia a minha casa, que foi minha amante pudesse furtar um punhal meu para com ele armar contra mim inimigos.
Eulália, medindo a força do argumento de Paula e ao mesmo tempo sentindo reaparecer naqueles olhos o brilho magnético que lhe dava tanta superioridade, abaixou os olhos confusa e murmurou:
— É um castigo horrível, meu Deus; em paga do meu amor, só tenho a vergonha e a miséria.
Paula sorriu triunfante. as dificuldades, que ele teve a fraqueza de supor lhe seriam criadas por Eulália, desapareciam de chofre, e em vez delas aparecia-lhe o futuro desassombrado. Quis ganhar ainda maior prestigio, esmagar mais uma vez Eulália e, metendo a mão no bolso, atirou aos pés da moça algumas moedas em cobre.
— Tem razão - disse ele -, eu não lhe paguei os meses do nosso amor; leve isto por, conta.
E afastou-se tranqüilamente, deixando Eulália imóvel de indignação.