Deixando a casa da companheira a sorte de Eulália tornou-se mais cruel e insuportável.
A princípio a infâmia da perdição compensava-se com a certeza do bem-estar da sua família vendia-se aos que passavam para comprar assim a tranqüila honestidade de suas irmãs. Havia alegria naquela miséria; aquele lodo brilhava com os reflexos da boa ação, como o brejo com as irradiações do luar.
Mundica veio mudar tal situação. Avilanada desde os tempos da paróquia, a rapariga havia na capital descido ao mais baixo e sórdido da perdição. Fazia parte da concorrência infame da vizinhança dos quartéis e aí, aguardentada, fumando, vozeando e lutando, arrastava miseravelmente a vida, passando as semanas parte na cadeia e parte na mais assombrosa dissolução. Especulando com a virgindade e a frescura das irmãs, Mundica desde logo as converteu em instrumento de ganho. Amelinha passou a andar com a recua de meninas que pediam esmolas, especialmente nos hotéis e às reuniões dos rapazes.
Tendo descido a tanta baixeza, Mundica, não tendo mais nada a perder, decidiu causar a ruína de Eulália. Aquela perversidade tinha o faro dos cães; não perdia a pista da moça; onde quer que esta se recolhesse, lá a encontrava.
Eulália foi constrangida a deixar de morar nas ruas em que podia decerto modo desmascarar a sua vergonha, e a habitar naquelas em que as palavras obscenas, as injúrias horrorosas de Mundica pudessem ser ouvidas sem escândalo dos vizinhos.
Nesta mudança a infeliz viu partido o degrau dourado da perdição. Passou de ser uma mulher recatada para ser uma coisa à-toa, conhecida da cadeia como desordeira.
Desde então o dinheiro começou a escassear-lhe, à medida que as violências à sua educação e ao seu pudor aumentavam.
A princípio freqüentavam-lhe a casa uns homens que a obrigavam a fumar, que exigiam dela risadas e frases canalhas.
Eulália obedeceu a esta nova exigência do seu aviltamento. Aprendeu a falar torpezas com o cigarro ao canto da boca, rompendo em explosões de uma lubricidade caprina.
Mas nem todos os exageros bestiais bastavam para atrair a concorrência da baixa libertinagem. Eulália tinha de sair à rua, de ir lá enguiçar com as cores desbotadas do enxoval de perdida, que lhe dera a companheira - a sua sagaz introdutora no mundo do lodo e da humilhação -, a lascívia saciada dos d. Juans reles.
Passaram assim semanas, em que dia a dia a desgraçada sentia a beleza desaparecer, o corpo emagrecer, o espírito conturbar-se-lhe, e a sede de dinheiro tornar-se vesana e insaciável à medida que as férias diminuíam.
Um dia acordou com febre; sentia os lábios secos e o hálito quente como o ar próximo a uma forja. Uma quebreira irresistível arrastava-a para o leito; disse-lhe uma vizinha com uma risada, chasqueando da sua ingenuidade:
— Você chegou à primavera; vai dar flores.
O coração torturado de Eulália sangrou; estas poucas palavras eram a sentença fatal que de uma vez para sempre a condenava. Nem mais a sórdida profissão lhe podia valer, estava definitivamente perdida.
A desolação do seu espírito começou então a agigantar-lhe mais as proporções do seu infortúnio. Não se pervertera por si, mas por suas irmãs; contava que o tempo viesse em socorro delas, que a calamidade cessasse e que lhes fosse possível a elas volverem para a terra do berço puras e imaculadas. Mas a seca, em vez de desaparecer, dobrou de intensidade, o mau estado da província longe de melhorar agravou-se. O que seria, pois, de Chiquinha e das outras?
Veio-lhe então à dolorosa meditação uma idéia. A retirada para fora da província era enorme agora. Para todas as províncias do Império retiravam-se cearenses. Iria, pois, falar com Chiquinha. expor-lhe-ia o segredo da sua existência, a origem da comodidade de que elas gozavam e aconselhá-la-ia a insistir com d. Ana para que emigrassem.
Assentada esta resolução, Eulália lançou logo mão de todos os recursos. Foi ter com a família que era a protetora aparente de d. Ana e pediu-lhe que mostrasse a esta desejos de a ver retirar-se de sua casa.
— Eu dentro em muito tempo, talvez, não possa mais pagar a pensão; estou doente, vou tratar-me e, se lhes hei de dar prejuízo, previno.
Não era preciso mais para que os supostos protetores pusessem em campo toda a sua atividade junto de d. Ana, convencendo-a de que devia partir.
Todos os boatos, que então circulavam a respeito do destino que esperava os emigrantes, foram repetidos e exagerados.
Era como sair de um inferno para entrar num paraíso. Os retirantes, ao chegar, eram recolhidos em casas de ótimas acomodações e delas só saíam empregados e ainda protegidos pelo governo. Enquanto não tinham emprego, conservavam-se nessas casas, sustentados pelo imperador, que era para a crédula gente o que nós outros chamamos o governo.
— Todos os que têm ido para fora escrevem e dão boas notícias; pelo menos lá não há fome, nem a gente tem necessidade de vender o que tem de mais santo.
— São terras de muita fartura - acrescentavam; - dizem que lá para o sul chove quase todos os dias.
D. Ana relutou por alguns dias. Era verdadeiramente cearense e sertaneja; amava com sinceridade a terra em que nasceu. A própria desgraça a que a via hoje reduzida ligava-a mais a si, estreitava-lhe a solidariedade com o seu destino. Parecia que o seu lugar era aí no meio dos horrores, dos acontecimentos descomunais que tanto já haviam pungido e que tão diretamente ameaçavam-lhe o futuro. A filha carinhosa, ao ver a mãe afetada de uma moléstia contagiosa, procede assim. Ao passo que todos evitam-lhe o hálito, fogem-lhe do contato, ela, que sente a piedade filial manter-lhe a gratidão vivaz, respira nos beijos, afronta nos apertos de mão e nos abraços estreitos o mal de que os outros se arreceiam.
Afinal d. Ana viu-se obrigada a ceder. Eulália, tendo adoecido gravemente, continuava a manter a família com o produto das suas economias, que eram poucas e, portanto, não davam à moça a confiança necessária para condescender com a sua velha tia. Insistia, portanto, junto dos supostos protetores e estes junto de d. Ana, que afinal se resignou a abandonar a província.
Era urgente que saíssem o mais depressa possível, e a velha senhora portanto não escolheu o lugar para onde ir. Pediu passagem no primeiro navio que partisse; pouco lhe importava o destino; em qualquer lugar viveriam do seu trabalho e seriam mais felizes do que então.
Eulália, que esperava ansiosa por esta resolução, foi encontrar-se com Chiquinha.
— Coragem, minha irmã - disse-lhe ela -, vão porque irei brevemente encontrá-las.
Depositou nas mãos da irmã a pequena soma que lhe restava e que devia servir para as primeiras necessidades da família na província em que chegasse.
Sentiu-se então desafogada, melhor; a honra de suas irmãs estava salva. Se por ela tinha caído sobre a memória de seu pai uma sombria mancha, esta mancha evitara outra maior.
E a mísera Eulália, voltando para o seu casebre, abençoava a sua infâmia. Passou alegremente os dias que decorreram, e só a viram triste na tarde em que Chiquinha, abraçando-a, disse-lhe em soluços.
— Amanhã partiremos; está decidida a viagem.
Pelas 11 horas da manhã, uma onda de retirantes desdobrava-se sobre a vastidão da praia afogada em sol.
Vinha dos navios ancorados uma triste melopéia cantada pelos marinheiros, que marinhavam mastros ou mantinham-se a cavalo nas vergas. Um bando de jangadas, com as velas muito bojadas, voava muito inclinado e com a velocidade dos pássaros pescadores quando se despenham sobre as presas. Misturava-se no espaço, como notas de um uníssono, o sussurro do povo, o murmúrio das ondas, o farfalhar longínquo do coqueiral a leste.
Apesar da claridade do dia e da multidão, pairava sobre a praia uma pesada atmosfera de tristeza, que exalava do lugar e das fisionomias.
O cômoro do Croatá ao lado como que diluía-se na vivíssima luz meridiana. As suas choupanas de tetos havana-escuro, muito baixas, quase roçando o solo, pareciam um cardume de socós enrufando as asas para voarem. Do outro lado a ponta do Mucuripe, entrando prolongadamente pelo mar, dava ao lugar uma aparência de deserto; tão árido é o aspecto da sua extensão pedregosa, que enruga o chão como as pústulas de um lázaro.
No meio da multidão, que tinha o mau cheiro de um monturo, ou de um grande acúmulo de andrajos, apareceu Eulália, com os vestidos sovados e já barrados pela poeira das ruas.
Junto dela veio logo postar-se uma roda de libertinos provincianos, que não faltavam a nenhuma reunião para farejar na miséria as coroas virginais esquecidas pela fome.
— É bonita - conversavam eles olhando para Eulália; -bonito porte.
— O olhar é prometedor, muito meigo, cearense.
— Mas já lhe estão a surgir através das faces...
— Se lhe parece. Queria-a como quando nasceu? Era o supra.
Eulália ouviu e desvaneceu-se a princípio com a conversa. Talvez aqueles elogios lhe dessem ocasião de pôr de parte alguma economia, e esta representava a junção em breve com as irmãs e a velha tia, cuja separação tanto lhe custava.
A palestra, porém, mudou de assunto. Tinha havido um grande movimento no seio da multidão, que se desagregou em uma porção de grupos que corriam para a grande ponte de embarque, a qual buscavam flanquear.
O grupo dos peralvilhos moveu-se também acompanhando Eulália.
No meio das alas abertas pelo ajuntamento começou a desfilar o grupo dos emigrantes, sobre o qual a própria repulsão da miséria fazia convergirem os olhares.
— E embarcam sempre naquele navio os desgraçados? - disse um dos peralvilhos.
— Pudera; a melhor política é mandá-los andar; desentupir a nossa cidade de semelhante peste.
— Não está mau modo.
— É o único; entrouxá-los e marchar.
— Mesmo porque, se houver um naufrágio, ninguém sente, e com razão, porque tanto faz que eles morram de fome como afogados; no fim é sempre morrer.
— Bravos à piedade; vem a tempo.
— Não é piedade, é indignação. Não há quem não saiba aqui o estado em que está aquele navio. Estava já para ser vendido como lenha.
— Então aquele é o patacho ...
— Ele mesmo, e, como já não prestava para nada, o governo fretou-o e responsabilizou-se por qualquer desastre que sobrevenha.
— Ah! sim, o dono é do partido que está em cima...
— E para servir um amigo mata-se mais de 200 pessoas.
— Isto é pessimismo exagerado.
— Eu aposto a cabeça em como o navio não torna ao Ceará, nem chega ao seu destino; ele não agüenta o vento que lá vai fora.
— Eu estou quase arriscando 20 mil-réis.
— Aceito-os contra 200.
— Feito.
— Feito - respondeu convencidamente o interlocutor.
Semelhante segurança não podia deixar de impressionar Eulália. A princípio buscou disfarçar a desagradável impressão que experimentou, mas, quando viu a família no meio dos emigrantes, lacrimosa, desolada, Eulália sentiu que a profecia do conversador era verdadeira e que ela estava condenada a perder para sempre as carícias da caçula e a amizade das irmãs. Esforçou-se para romper as linhas de povo colocadas diante de si, mas a massa fria, impiedosa, repeliu-a, apesar dos motivos com que ela legitimava a sua insistência em passar.
— Para fora; não empeste a gente - resmungavam-lhe; - não se encoste.
— Piedade - soluçava Eulália -, vão ali minhas irmãs e eu sei que o navio vai perder-se.
— Para trás, já lhe disse; gente como você não tem família. Perdida tem você a vergonha.
Torturada, insultada, a infeliz buscou sair. Se corresse pela praia, se tomasse uma jangada chegaria a bordo a tempo de encontrar-se com a família e poderia ainda demovê-la. Mas a saída também lhe foi por longo tempo vedada e só pôde efetuá-la quando a multidão debandou-se. Correu então pelo areal, fixando o solo movediço com a sua violenta resolução. O vento, colaborando com os seus bruscos movimentos, desdeu-lhe os nós das tranças e a sua cabeleira negra, soltando-se do sincipúcio, desgrenhou-se-lhe como um véu negro, como um pedaço das trevas da morte que começasse de envolvê-la.
Arquejante, alucinada, chegou à beira-mar e gritou para uns jangadeiros, que, muito calmos, sentados sobre os paus flutuantes da sua embarcação, comiam a rir.
— Levem-me a bordo.
— Estamos almoçando agora; só por bom preço.
— Levem-me.
— Paga cinco mil-réis?
— Chegue - exclamou Eulália -, chegue e depressa.
Meteu a mão no bolso do vestido e, desamarrando um lenço, pôs-se a contar o dinheiro. Tinha apenas oito mil-réis.
— Ainda sobram-me três - murmurou a desventurada; - bastam-me.
A jangada partiu rápida com o nado certeiro de uma cobra através da correnteza. As ondas, afofando-se em espessa espumarada, tinham o ruído semelhante ao da lâmina de aço de encontro à pedra do rebolo vertiginosamente movida.
Mas a celeridade da jangada não conseguiu compensar o tempo perdido. Quando Eulália aproximou-se do navio, já as escotilhas estavam fechadas; os saveiros, em que os retirantes tinham ido, voltavam vagarosamente, e à proa do patacho, os marinheiros, com o seu coro tristonho, que parece uma lamentação partida do mar, coro que sintetizava todas as dores da despedida, inclinavam-se e levantavam-se, em vaivéns ritmados, suspendendo a âncora.
— Pode-se falar a uma família que aí está embarcada? - perguntou Eulália, trêmula e impaciente.
— É muito tarde já; estão levantadas as escadas.
— Mas é para que ela não vá, porque não precisa ir.
— Traz ordem da comissão? - perguntou de bordo, depois de uma pequena demora, um indivíduo que parecia ser o comandante.
Eulália despenhou em soluços e o homem de bordo acrescentou.
— Sem eu nada posso fazer.
O patrão da jangada disse friamente para os companheiros:
— Aproveitemos o vento, toca para a terra.
A jangada partiu com a sua vela bojada, sussurrando extraordinariamente, e sobre os soluços de Eulália desdobrou-se, como um acompanhamento do oceano, o coro triste dos marinheiros levantando a âncora: — Oi...i! oi...i! arriba, oi...i!