Estava marcado para este dia, uma quinta-feira, o casamento de Irena e Feitosa.
A noiva conservara-se fria e triste durante toda a manhã. Faltava-lhe um complemento à sua felicidade: o conchego daqueles que lhe haviam enchido de carícias os primeiros anos da infância; os conselhos austeros de seu pai e os últimos beijos de Eulália no seu rosto virgem.
Quanto a seu pai, ela resiguava-se; não vinha porque a morte o proibia. Mas Eulália devia viver, devia rolar envolvida na túmida vaga da desgraça, que ululava horrores pela capital.
Feitosa fora mais agradável a Irena se tivesse adiado as núpcias para quando encontrasse a infeliz ou obtivesse plena certeza de que ela não vivia mais. A resignação diante do impossível seria então fácil, porém, assim com a dúvida, era amarga.
— Tenho eu direito de ser feliz, quando a minha desventurada amiga sofre? - perguntava a si mesma.
E acusava-se como cansa ao erro de Eulália com o vigário. Deixara-se vencer por ele, porque viu quanto a paixão desse monstro fora a princípio veemente. Se não tivesse tido tamanha prova, talvez resistisse e acabasse por vencer-se. Mas a fatal noite da horta alucinou-a, e alucinou-a porque Eulália, expondo a própria reputação, consentia em que Augusto penetrasse furtivamente dentro da residência paterna.
Cerca do meio dia Augusto entrou risonho e expansivo, e sentando-se junto de Irena pegou-lhe da mão, e, retendo-a nas suas, ficou a olhá-la absorto.
Irena baixou os olhos tristemente corando e. exalou um longo suspiro.
A modesta mobília da sala, única testemunha desta cena de amor, lembrava uma criada grave, discreta, protegendo a paixão clandestina de uma nobre castelã. Havia no recinto um recolhimento pudico, um perfume de casta segurança, um venerando acento de pudor.
— Suspiras, Irena - balbuciou Augusto; - estás triste? Duas lágrimas preguiçosas responderam à carinhosa interpelação.
— Choras?! - perguntou ele admirado. - Nem ao menos hoje colocas diante das tuas tristes recordações a imagem do nosso amor? Olha, eu também perdi minha mãe, perdi amigos, e tenho entretanto risos para ti, e hoje me sinto deveras feliz.
— Não posso - soluçou Irena; - hoje, mais do que nunca, sinto diante de mim alevantar-se a figura de Eulália para acusar-me de ingrata.
— Tu, ingrata? E ela, que, sabendo talvez qual o verdadeiro autor do crime, deixou que a desonra pairasse por tanto tempo sobre a cabeça de teu pai, ela o que será?
— Já lhe pedi que não a acuse; demais não sabemos de nada ao certo. Quanto a mim, sinto que ela não esteja aqui, para dividir consigo um pouco da minha felicidade.
Calaram-se ambos por algum tempo, ambos cabisbaixo e tristonhos. Irena, porém, ao ver demudadas as feições de Augusto, sacudiu gentilmente a sua cabeleira loura e, fitando no noivo os olhos azuis de que enxugara as lágrimas, disse-lhe sorrindo:
— Você há de procurá-la e há de encontrá-la, não é verdade? Posso descansar em si....
— Juro-te, e bem sabes que não deixei de o fazer. Se não a tens hoje aqui, é que a fatalidade impediu-me o encontrá-la.
— Quero pedir mais um favor antes de deixar o meu luto; mas você há de prometer-me já que o fará.
— Pede - disse Augusto sorrindo; - estou pronto a fazê-lo.
— O padre Paula foi um homem perverso para conosco...
Augusto estremeceu, teve ímpetos de retirar a promessa antes que Irena concluísse. Mas a acentuação da voz da moça era tão suave, o seu coração sofria tanto, que Feitosa não teve coragem de interrompê-la.
— Ofendeu-nos nas pessoas que nós mais amávamos. Matou sua mãe, Augusto, com os barulhos da paróquia; matou meu pai pelos horrores da vida que passamos.
— É um monstro - exclamou Feitosa.
— Descarregou sobre si, Augusto, um golpe traiçoeiro, e a mim feriu duas vezes roubando a honrada minha amiga e dando causa a que eu amargasse todos os rigores da miséria.
— Não há castigo bastante para tal monstro.
— Há - assentiu convencidamente a moça - Olhe, quando corrida de susto por havê-lo encontrado, eu retrai-me com meu pai e, escondida nas capoeiras da Pimenta, vigiava dia e noite para não ser vista por si; quando depois vi meu pai lançado naquele hospital imundo onde só tínhamos a proteção do bom Estevão, acudia-me de contínuo a lembrança de Paula, cuja história Estevão havia-me contado. Não tinha coragem para refletir sobre os atos de semelhante homem; a sua perversidade entontecia-me. Proferia então contra ele uma única sentença.
— E qual era ela? - perguntou precipitadamente Augusto, cujas narinas tinham a dilatação da vingança e cujo olhar brilhava com um fulgor de relâmpago.
— O perdão! - murmurou Irena; - deixá-lo para que o remorso o tome de assalto na hora de morrer.
— Não é em almas semelhantes que o remorso pode doer.
— Não importa, Augusto; parece-me que não seríamos felizes se ao ajoelhar-mo-nos diante de Deus levássemos na consciência a mancha da vingança. Perdoa-o por mim, pelos nossos próprios tormentos. Que seria de nós se após tantos sofrimentos ficasse-me um temor pelo futuro? O perdão daquele perverso será o meu descanso.
Augusto Feitosa ficou silencioso. A idéia da vingança contra Paula era uma parte da sua felicidade: cedê-la era como que mutilar a sua alegria.
— Perdoa-o, Augusto? - perguntou timidamente Irena.
Augusto Feitosa fitou os seus nos olhos azuis de Irena. A profunda melancolia que lhes amortecia o brilho tornava irresistível a súplica que neles pairava. Nunca a natureza angélica de Irena se lhe pronunciara tanto. Pareceu-lhe estar diante de uma aparição sobrenatural, de uma força invencível que, de modesta, como que se envergonhava de seu próprio poder, e procurava revogar o seu direito de impor com a humildade do pedido.
O moço deliu todo o seu ódio naquele olhar súplice. Todo o passado desapareceu diante desse instante que o amor dilatava por todo um futuro de compensação dos terminados martírios.
Apesar de tantos meses de atribulação e miséria, aquele simples olhar bastara para suprimir da memória de Augusto as grandes dores que o acabrunharam.
As maiores angústias que o haviam torturado não tinham o amargor suficiente para deixar o mais leve ressaibo na felicidade deste momento.
Apertou nas suas estreitamente as mãos de Irena e proferiu dissimulando a heroicidade do sacrifício na intenção de desassombrar o espírito da moça:
— Tu assim o queres, seja feito. Os sofrimentos que me couberam em partilha não foram tamanhos como os teus, e tu o perdoas.
No semblante de Irena assomou um clarão vivo de alegria; como que aquela alma ressuscitou inteira então para o amor e para a ventura. Todavia teve ainda uma frase sentida:
— Como seria eu feliz se pudesse hoje ver Eulália!
Pelas cinco horas da tarde o préstito do casamento passava pela frente do palácio.
Uma banda de música militar tocava uma valsa e sentados sob as janelas da casa presidencial os músicos faziam movimentos de cabeça e trocavam-se olhares marcando o compasso.
Em uma das janelas laterais estava o novo presidente, fumando um charuto a espaciar as baforadas. Dois amigos, aos lados, conversavam com gestos de uma intimidade respeitosa, de inferior para superior, de uma bajulação insinuante. Descobria-se facilmente no rosto de ambos a intenção de se fazerem notar dos transeuntes, de provar-lhes que privavam com o governo no menu e no dessert, e trocavam com ele toques de taça.
O rosto do presidente, que de vez em quando passava a mão pela barba negra, tinha o desanuviamento da alegria, do homem que vê as coisas friamente e que tem em torno de si um coro continuo a louvá-lo.
Os noivos passaram acanhados e cabisbaixos, Irena pelo braço do padrinho, Feitosa de braço dado com a madrinha; alguns convidados, vestidos de preto, formavam uma linha curva em torno deles; um bando de curiosos ia-lhes no encalço.
— Noivado - ponderou o presidente olhando para o grupo; - ainda há quem case com um tempo destes!
— E tenha sonhos de felicidade - observou um dos comensais.
— Mal seria do homem se não houvesse a esperança -reflexionou o outro.
— É o melhor dom do céu - disse o presidente tomando uma baforada longa e soprando-a no ar morosamente.
— Os conservadores, por exemplo, morreriam de despeito se não tivessem esperança de galgar breve o governo - disse um dos comensais.
— Ah! o imperador é o chefe do partido e eles contam justamente com a sua proteção.
O presidente teve um pigarro a expectorar adrede, porém os comensais não o entenderam.
— Mas agora eu creio que tão cedo Sua Majestade não se atreverá a mudar a face da política.
— Ora não! tudo é possível hoje, e a prova é que ainda não foram dissolvidas as câmaras.
O presidente consertou de novo a garganta.
— Isto não prova nada.
— Prova o poder pessoal, é o que prova; está governando o partido liberal quando a representação nacional é conservadora. Mas a fraqueza dos nossos homens...
— Está a fazer hipóteses vãs, doutor - interveio o presidente. - As coisas são como são e não como parecem. A contradição, que o senhor vê, prova a favor de Sua Majestade. Mais do que às câmaras feitas como nós sabemos, Sua Majestade considera os reclamos da opinião pela eleição direta. Eis aí explicada a mudança. O poder pessoal é um tutu de que o ministério, eu e todos quantos trabalhamos na imprensa oposicionista nos servimos; a verdade única na política de nossa terra é que Sua Majestade só quer o bem do país. Verá; não entra um conservador para a nova câmara...
Os dois comensais, que se conservavam numa curva respeitosa diante de S. Exa., resfolegaram.
— Deus o permita - disse o doutor.
— Não descreia; convença-se. O doutor não parece que há de fazer grande carreira, é muito oposicionista...
O outro comensal teve um riso de quem aprova e se alegra por ver esmagado um competidor.
— Perdão - murmurou o doutor -, eu apenas repito o que dizíamos na oposição.
— Pois eu nem me lembro de que algum dia estivéssemos em oposição ao governo de Sua Majestade.
E o presidente voltando-se de todo para fora continuou a fumar.
A banda militar acabara de tocar a valsa. Ouviam-se agora distintamente o eco das vozerias do largo da Assembléia, o trilo dos apitos e os prolongados assovios, S. Exa. parecia deleitar-se com tudo isto, com o silêncio da banda militar, dos dois comensais e o barulho da praça.
De repente, havendo relanceado o olhar para o lado da igrejinha ao fundo do palácio viu por terra uma criança.
— Que diabo fará ali aquela criança? - perguntou S. Exa.; é um povo muito mal educado este nosso.
— Uma canalha, esses retirantes. Morriam de fome no tempo dos nossos adversários, hoje morrem justamente por uma razão diametralmeate oposta.
— Mas é preciso regularizar o serviço, cumprir as minhas instruções.
— Mas o que se há de fazer? Eles pedem e não se dão por satisfeitos senão quando não podem mais andar de tão empanturrados.
— É necessário todo o cuidado - observou o presidente soltando uma baforada; - vamos muito melhor, é verdade, mas tudo quanto se puder fazer faça-se. Eu estou contente com o que se tem feito, é bom; porém, se for possível mais, não é mau.
A música passou a tocar uma polca.
Os interlocutores puseram-se a conversar sobre fornecimentos de gêneros e a utilidade em comprá-los na província para agradar o comércio...
Completamente alheios a tudo quanto viam em torno de si, os noivos tinham entrado na Sé e lá recebido das mãos do vigário da capital as bênçãos, e sentiam-se tão extraordinariamente felizes que misturavam os sorrisos e as lágrimas.
Quando saíram da igreja em direção à casa, Augusto perguntou à noiva se estava ainda triste...
— Dir-se-ia que já não me amavas esta manhã.
— Eu? - perguntou ela; e depois, abaixando muito a voz.
— Já disse que desejava ver hoje Eulália entre nós.
Voltaram pela praça da Assembléia, porque na superstição popular não devem os noivos voltar pelo caminho que foram ao templo; é sempre um agouro.
Logo que penetraram na praça, como que um véu correu-se sobre as fisionomias dos noivos. Custavam a caminhar, porque de toda a parte os assaltavam pedidos importunos de esmola. Afinal foram constrangidos a parar.
Um grande ajuntamento impedia o trânsito e, ao contrário do que se dava sempre que havia reunião de retirantes, mantinha-se um grande silêncio entre o grupo. O padrinho tomou a frente dos noivos para abrir-lhes passagem, mas quando atravessando o círculo de povo chegou ao centro, voltou de chofre para impedir que os noivos se adiantassem.
— Acho melhor tomarmos outro caminho - disse ele.
— Não - disseram, já agora vamos por aqui...
— Mas é que aí está um cadáver...
— Não faz mal, passemos.
Deram alguns passos. Dois homens haviam já amarrado os braços e pernas de um cadáver de mulher em torno de um pau e agora apertavam-lhe também o corpo. O vestuário da mulher, porém, não era o de uma retirante e por isso mesmo chamava a atenção.
Feitosa desembocara da ala mesmo em frente ao cadáver e não pôde furtar-se a lançar-lhe um olhar furtivo. Teve então um calafrio violento e tornou a olhar.
— É um sonho, por força - bradou ele; Eulália!
Irena precipitou-se sobre o cadáver e ajoelhando segurou-lhe com as mãos no rosto empastado de areia. Quis falar, mas a voz embargou-se-lhe na garganta e a infeliz caiu sem sentidos nos braços de Augusto.
Era de feito o cadáver de Eulália, que havia morrido abandonada no largo a alguns passos do palácio do governo e aos sons da música que todas as quintas e domingos ia acompanhar a digestão da presidência. A desventurada comparecia desta sorte aos esponsais de Irena.
Quando, em casa de Augusto Feitosa, despiram o cadáver, encontraram-lhe amarrado à cintura um canivete-punhal.
Feitosa abriu-o e viu na folha mordida pela ferrugem as iniciais de Paula. Tornou a fechá-lo, deitou-o no caixão de Eulália e na tarde seguinte a terra guardava para sempre todas as provas do crime do vigário Paula.
As folhas públicas desse dia traziam logo em seguida à cena dada na volta do préstito do casamento de Feitosa uma longa local em que se noticiava a nomeação do vigário Paula para a cidade de... e a local concluía assim:
"A cidade de... recebe no seu novo vigário um digno apóstolo da religião do Calvário. Prouvera a Deus que sempre a nossa fé tivesse como órgãos homens iguais: a moralidade e a caridade reinariam eternamente sobre o mundo."