Os Trabalhadores do Mar/Parte I/Livro I/II
II.
O TUTU DA RUA.
Gilliatt residia na parochia de Saint-Sampson, onde não era estimado e havia razões para isso.
Em primeiro lugar, morava em uma casa mal assombrada.
Acontece algumas vezes em Jersey e Guernesey, no campo e até na cidade, que, ao passar por um lugar deserto ou por uma rua muito habitada, vê-se uma casa, cuja entrada está obstruida. O azevinho cresce á porta, as janellas do rez do chão estão fechadas por feios emplastros de taboas pregadas; as dos andares superiores estão fechadas e abertas ao mesmo tempo: ha ferrôlhos, mas não ha vidros. No pateo, se o ha, alastra-se a herva e cahem os muros; se ha jardim, nascem a ortiga, o espinheiro, a cicuta; raros insectos esvoaçam. Racham-se as chaminés, o tecto se abate; o que se vê dos quartos está arruinado, a madeira pôdre, a pedra carcomida; cahe o papel das paredes. Pode-se estudar ahi os antigos gostos do papel pintado, os gryphos do imperio, as sanefas em fórma de crescente do Directorio, os balaustres e cippos de Luiz XVI. A espessura das téas de aranha, cheias de moscas, indicam a profunda tranquillidade em que vivem aquelles insectos. Algumas vezes vê-se um pucaro quebrado sobre uma taboa.
É uma casa mal assombrada. O diabo apparece lá durante a noite.
A casa, como o homem, pode tornar-se cadaver; basta que uma superstição a mate. Então é terrivel.
Essas casas mortas não são raras nas ilhas da Mancha.
As populações campesinas e maritimas não vivem tranquillas a respeito do diabo. As da Mancha, archipelago inglez e littoral francez, tem a respeito delle noções muito precisas. O diabo possue delegados por todo mundo. É certo que Belphegor é embaixador do inferno em França, Hutgin na Italia, Belial na Turquia, Thamuz na Hespanha, Martinet na Suissa e Mammon na Inglaterra. Satanaz é um imperador, como outro qualquer. Satanaz Cesar. A casa delle é muito bem servida: Dagon é o saquetario; Succor Benoth, chefe dos eunuchos; Asmodeu, banqueiro dos jogos; Kobal, director do theatro; Verdelet, grão-mestre de ceremonias e Nybbas bobo. Wiérus, homem de sciencia, bom estrygologo e demonographo distincto, chama Nybbas — o grande parodista.
Os pescadores normandos da Mancha precisam aprecatar-se quando andam no mar, por causa das artes do diabo. Por muito tempo acreditou-se que S. Maclou habitava o grande rochedo quadrado Ortach, situado ao largo entre Aurigny e Casquets, e muitos velhos marinheiros de outros tempos affirmavam tel-o visto não poucas vezes sentado e lendo um livro. Por isso os maritimos, quando passavam, ajoelhavam-se muitas vezes diante do rochedo Ortach, até que um dia dissipou-se a fabula e esclareceu-se a verdade. Descobrio-se e sabe-se hoje que quem habita aquelle rochedo não é um santo, mas sim um diabo, chamado Jochmus, que por muitos seculos teve a malicia de fazer-se passar por S. Maclou. Demais, a propria igreja cahe em taes enganos. Os diabos Raguhel, Oribel e Tobiel foram santos, até que em 745 o papa Zacarias, tendo-lhes tomado o faro, deitou-os fóra. Para fazer taes expulsões, que são muito uteis, é necessario ser muito conhecedor de diabos.
Conta a gente velha da terra, mas estes casos pertencem ao seculo passado, que a população catholica do archipelago normando estivera outr’ora, bem a seu pezar, mais em communicação com o diabo do que a população huguenote. Ignoramos a razão, mas a verdade é que a minoria catholica andou outr’ora muito incommodada por elle.
Affeiçoára-se aos catholicos e procurava frequental-os, o que leva a crer que o diabo é antes catholico que protestante.
Uma de suas mais insupportaveis liberdades era visitar á noite os leitos conjugaes catholicos, quando os maridos dormiam de todo, e as mulheres, a meio. Disto resultavam equivocos. Patouillet pensava que Voltaire nascera assim. Não é inverosimil. É caso perfeitamente conhecido e descripto nos formularios de exorcismo sob o titulo de erroribus nocturnis et de semine diabolorum.
O diabo fez violencias destas especialmente em Saint-Hélier, em fins do seculo passado: é provavel que para punição dos crimes da revolução. As consequencias dos excessos revolucionarios são incalculaveis. Fosse como fosse, essa apparição possivel do demonio durante a noite, quando reina a escuridão e todos dormem, inquietava muitas mulheres orthodoxas. Dar nascimento a um Voltaire não é cousa agradavel. Uma dellas, assustada, foi consultar o confessor sobre a maneira de desfazer-se em tempo o quiproquo. O confessor respondeu: para saber se está com o diabo ou com seu marido, apalpe-lhe a cabeça e se encontrar pontas, póde estar certa... — de que? perguntou a mulher.
A casa em que morava Gilliatt tinha sido mal assombrada e já não era; portanto, tornava-se mais suspeita; é sabido que, quando um feiticeiro vem habitar uma casa visitada pelo diabo, este, julgando-a bem guardada, tem a delicadeza de não voltar, salvo o caso de ser chamado, como medico.
Chamava-se a casa O tutú da rua. Era situada na ponta de uma lingua de terra ou antes de rochedo, que formava uma pequena angra de bastante profundidade na enseada de Houmet Paradis. A casa estava sósinha nessa ponta, quasi fóra da ilha, tendo apenas a terra sufficiente para um pequeno jardim, ás vezes inundado por occasião das aguas vivas.
Entre o porto de Saint-Sampson e a enseada de Houmet Paradis ha uma grande collina, sobre a qual levanta-se um amontoado de torres e de hera chamado o castello do Valle ou do Archanjo, de sorte que de Saint-Sampson não se via o tutú da rua.
Não são raros os feiticeiros em Guernesey. Exercem a procissão em certas parochias, apezar de vivermos no seeulo dezenove. Praticam acções verdadeiramente criminosas. Fazem ferver ouro. Colhem hervas á meia noite. Olham de travez para o gado. Consultam-n’os; elles mandam buscar em garrafas a agua dos doentes, e dizem em voz baixa: a agua parece bem triste. Affirmou um feitieeiro em Março de 1857, que na agua de um doente havia sete diabos. São temidos e temiveis. Ha poueo tempo um delles enfeitiçou um padeiro e mais o forno. Outro tem a perversidade de fechar e lacrar uma porção de sobreeartas, sem haver nada dentro. Outro chega ao ponto de ter em casa, em cima de uma taboa, tres garrafas com um B em cada uma. Estes factos monstruosos são conhecidos. Alguns feitieeiros são complaeentes, e por dous ou tres guinéos incumbem-se de soffrer as nossas molestias. Rolam e gritam em cima da cama. Emquanto elles se estoreem, diz o doente: «E esta! já estou bom!» Outros curam todas as molestias amarrando um lenço ao redor do corpo do doente. E’ um remedio tão simples que admira não se ter ainda ninguem lembrado delle.
No seculo passado o tribunal real de Guernesey colloeava-os sobre uma porção de achas de lenha e queimava-os vivos. Presentemente condemna-os a oito semanas de prisão, quatro a pão e agua e quatro no segredo, alternando. Amant alterna catenɶ.
A ultima queima de feitieeiros em Guernesey foi em 1747, sendo theatro do espectaculo a praça de Bordage, que de 1565 a 1700 vio queimarem-se onze feiticeiros. Em geral esses culpados confessavam seus crimes: eram para isso ajudados pela tortura.
A praça de Bordage prestou serviços á sociedade e á religião. Queimaram-se ahi os hereticos. No tempo de Maria Tudor, entre outros huguenotes, queimou-se uma mãe e duas filhas: a mãe chamava-se Perrotine Massy. Uma das filhas estava gravida e teve o successo sobre o brazeiro.
A chronica diz: Arrebentou-lhe o ventre. Sahio desse ventre um menino vivo; o recem-nascido rolou na fogueira, um tal House apanhou-o. O bailio, Helier Grosselin, bom catholico, mandou atirar a criança ao fogo.