Os Trabalhadores do Mar/Parte I/Livro I/IV

IV.


IMPOPULARIDADE.


Já o dissemos. Gilliatt não era estimado na parochia. Antipathia natural. Sobravam motivos. O primeiro acabamos de explica-lo, era a casa em que morava. Depois, a origem delle. Quem era aquella mulher? E este menino? A gente não gosta de enigmas a respeito de estrangeiros. Depois, trajava uma roupa de operario, tendo aliás com que viver, embora não fosse rico. Depois, o jardim, que elle conseguia cultivar e donde colhia batatas apezar dos ventos do equinoxio. Depois, os alfarrabios que elle lia.

Outras razões ainda.

Porque motivo vivia solitario? A casa mal assombrada era uma especie de lazareto; conservavam Gilliatt em quarentena; deste modo era muito simples que o seu isolamento causasse espanto, e o responsabilisassem pela solidão, em que o deixavam.

Nunca ia á igreja. Sahia muitas vezes á noite. Fallava aos feiticeiros. Uma vez viram-n’o sentado sobre a relva com ar espantado. Frequentava o dolmen do Ancresse e as pedras fatidicas que existem espalhadas pelo campo. Havia quasi certeza de terem-n’o visto comprimentar polidamente a Rocha que canta. Comprava todos os passaros, que lhe levavam, e soltava-os. Era civil para com as pessoas das ruas de Saint-Sampson, mas preferia dar uma volta para não passar por lá. Pescava muitas vezes e sempre: apanhava peixe. Trabalhava no jardim aos domingos. Tinha um bug-pipe (especie de samphona) que comprara a uns soldados escossezes, ao passarem por Guernesey, e tocava nella sobre os rochedos, á beira do mar, ao cahir da noite. Gesticulava como um semeador. Que virá a ser uma terra com um homem destes?

Quanto aos livros, que haviam pertencido á mulher finada, esses eram assustadores. Quando o reverendo Jaquemin Herodes, cura de Saint-Sampson, entrou na casa para encommendar a mulher, leu no lombo desses livros os titulos seguintes: Diccionario de Rosier, Candido, por Voltaire; Aviso ao povo acerca da sua saude, por Tissot. Dissera um fidalgo francez, emigrado, retirado em Saint-Sampson que aquelle Tissot devia ser o que carregou a cabeça da princeza à Lamballe.

O reverendo notou n’um dos livros este titulo verdadeiramente extravagante e ameaçador: De Ruibarbaro.

Cumpre observar que, sendo a obra escripta em latim, como indica o titulo, era duvidoso que Gilliatt, que não sabia latim, lesse aquella obra.

Mas são exactamente os livros que a gente não lê, os que mais condemnam. A inquisição de Hespanha julgou esse caso, e pô-lo fora de duvida.

Demais, o livro era o tratado do doutor Tilingius sobre o ruibarbo, publicado na Allemanha em 1679.

Não havia certeza de que Gilliatt não fizesse bruxarias, philtros e sortilegios. Tinha frascos em casa.

Porque motivo ia elle passear, e ás vezes até á meia-noite, nos penhacos da costa? era evidentemente para conversar com a gente maligna que anda á noite nas praias, no meio das exhalações.

Ajudou elle uma vez a feiticeira de Torteval a desatolar a carroça. Era uma velha, por nome Moutonne Gahy.

Tendo-se feito um recenceamento na ilha, perguntou-se-lhe a profissão, e elle respondeu: pescador quando ha peixe. Vejam lá se a gente da ilha podia gostar de taes respostas.

Pobreza e riqueza são relativas. Gilliatt tinha terras e uma casa, e comparado aos que não possuem cousa nenhuma, não era pobre. Um dia, para experimenta-lo, e talvez para inculcar-se, por que ha mulheres que estariam promptas a desposar o diabo rico, disse uma rapariga a Gilliatt: Quando se casa? A resposta delle foi: Casar-me-hei quando se casar a Rocha que canta.

A Rocha que canta era uma grande pedra collocada a pique n’uma horta rustica perto do Senhor Lemezurier de Fry. Esta pedra inspira desconfiança. Não se sabe o que ella faz ali. Ouve-se cantar um gallo invisivel, cousa extremamente desagradavel. Verificou-se que a pedra foi posta ali por uns fantasmas.

De noite, quando troveja, se apparecem homens a voar entre as nuvens avermelhadas, são os taes fantasmas. Ha uma mulher que mora no Grande Mielles e que os conhece. Uma noite, em que havia fantasmas n’uma encruzilhada, essa mulher vendo um carroceiro que não sabia por onde seguir, gritou-lhe: Pergunte-lhes o caminho; é gente benefica, e bem educada, com quem se póde conversar. Aquella mulher é com certeza feiticeira.

O judicioso e sabio rei Jaques I mandava ferver ainda vivas as mulheres dessa especie, provava o caldo, e pelo gosto, dizia: É feiticeira; ou: não é feiticeira.

É para lamentar que os reis hoje não tenham daquelles talentos, que faziam comprehender a utilidade da instituição.

Gilliatt, não sem motivos serios, tinha fama de feiticeiro. Num temporal, á meia-noite, estando Gilliatt sozinho no mar, dentro de uma lancha do lado da Soumeilleuse, ouviram-n’o perguntar:

— Ha lugar para passar?

Respondeu-lhe uma voz de cima dos penhascos:

— Pois não! animo!

A quem fallaria elle senão a alguem que lhe respondia? Parece-nos que isto é uma prova.

Outra noite de temporal, tão negro que nada se via, pertinho da Catiau-Roque, que é uma dupla fileira de rochedos onde os feiticeiros e as cabras vão dansar á sexta-feira, houve quem reconhecesse a voz de Gilliatt no meio deste terrivel dialogo:

— Como está Vésin Brovard? (Era um pedreiro que tinha cahido de um telhado).

— Vai sarando.

— Devéras! pois cahio de um lugar tão alto como aquelle estaca. Admira não ficar despedaçado.

— Bom tempo foi a semana passada para a colheita das praias.

— Melhor do que hoje.

— De certo! não haverá muito peixe no mercado.

— O vento é rijo.

— Não se podem deitar as redes.

— Como vai a Catharina?

— Está embruxada.

A Catharina era evidentemente alguma feiticeira.

Gilliatt, ao que parecia, trabalhava de noite. Ao menos, ninguem duvidava disso.

Viam-n’o algumas vezes, espalhar pelo chão a agua de um pucaro. Ora a agua espalhada pelo chão traça a forma dos diabos.

Existem na estrada de Saint-Sampson, tres pedras dispostas em forma de escada. Na plataforma houve em outro tempo uma cruz, e se não foi cruz, era forca. Aquellas pedras são malignas.

Muita gente experta, e digna de credito, affirmava ter visto, perto dessas pedras, Gilliatt conversando com um sapo. Ora, não ha sapos em Guernesey; Guernesey tem todas as cobras, e Jersey todos os sapos. Aquelle sapo veio naturalmente de Jersey, a nado, para fallar a Gilliatt. A conversa era amigavel.

Todos estes factos estavam averiguados; e a prova disso é que as tres pedras lá estão. Quem duvidar póde ir vel-as, e mesmo á alguma distancia, ha uma casa em cuja esquina lê-se isto: mercador de gado morto e vivo, cordas velhas, ferros, ossos e fumo de mascar; é prompto na paga e na attenção.

Só de má fé se póde contestar a existencia daquellas pedras e daquella casa. Tudo isso fazia mal a Gilliatt.

Só os ignorantes não sabem que o maior perigo dos mares da Mancha é o que se chama rei dos Auxcriniers. Não ha personagem maritimo mais temivel. Quem o vê naufraga logo entre uma e outra Saint Michel. É pequeno e surdo, por ser anão e rei. Sabe o nome de quantos morreram no mar, e em que lugar estão. Conhece a fundo o cemiterio Oceano. Cabeça larga em baixo, e estreita em cima, corpo cheio, barriga viscosa e disforme, nodosidades no craneo, pernas curtas, braços compridos, barbatanas em vez de pés, garras em vez de mãos, cara larga e verde, tal é aquelle rei. As garras são achatadas, as barbatanas tem unhas. Imaginem um peixe, com cara de homem, e fórma de espectro. Para vencel-o, é preciso exorcismal-o ou pescal-o. Fóra disso, é sinistro. Vel-o é perigoso. Descobre-se acima das ondas e do marulho, atravez da espessura do nevoeiro, umas feições de gente; testa curta, nariz esborrachado, orelhas chatas, boca immensa e sem dentes, beiços esverdeados, sobrancelhas angulosas, olhos vivos e grandes. O rei torna-se vermelho quando o relampago é livido, descorado quando o relampago é vermelho. Tem barba gotejante e rigida, cortada em quadro, que lhe cahe sobre uma membrana em fórma de mantéo de peregrino; o mantéo é adornado de quatorze conchas, sete na frente, sete nas costas. As conchas são extraordinarias para os que conhecem conchas. O rei só é visivel no mar violento. É o dansarino lugubre da tempestade. Vê-se a fórma delle esboçada no nevoeiro e na chuva. O umbigo é hediondo. Uma casca de escamas guarda-lhe os quadris á semelhança de collete. O rei levanta-se de pé, sobre as vagas que irrompem á pressão dos ventos e vão rolar-se como os cavacos que sahem do rabote do marcineiro. Conserva-se todo fora da espuma, e quando avista ao longe navios em perigo, entra a bailar, descorado na sombra, com a face illuminada por um vago sorriso, feio e demente no aspecto. Máo encontro esse.

Na epocha em que Gilliatt era uma das preoccupações de Saint-Sampson, as ultimas pessoas que tinham visto o rei da Mancha, declaravam que já não havia no mantéo mais de treze conchas. Treze; era mais perigoso ainda. Mas onde foi parar a outra concha? Deu-a a alguem? A quem seria? Ninguem podia dizel-o, todos se limitavam ás conjecturas. O que é certo é que o Sr. Lupin Matier, do lugar de Godaines, homem de posição, proprietario taxado em quatorze bairros, estava prompto a jurar que vira uma vez, nas mãos de Gilliatt, uma concha muito exquisita.

Não raras vezes se ouviam os camponios conversarem entre si:

— Visinho, não é verdade que este boi é magnifico?

— Inchado, visinho.

— Homem, é verdade.

— Tem mais sebo do que carne.

— Devéras!

— Estaes certo de que Gilliatt não lhe pôz os olhos em cima?

Gilliatt parava nos campos, ao pé dos lavradores, e nos jardins ao pé dos jardineiros, e dizia-lhes palavras mysteriosas:

— Quando florecer a scabiosa, semea o centeio.

— O freixo enfolha, acaba-se a neve.

— Solsticio de verão, cardo em flôr.

— Se não chover em Junho, o trigo ha de espigar. Tomem cuidado com as plantas nocivas.

— A cerejeira está dando fructos, desconfia da lua cheia.

— Se o tempo, no sexto dia da lua, conservar-se como no quarto dia ou como no quinto, ha de ser o mesmo em toda a lua, nove vezes em doze no primeiro caso, e onze vezes em doze no segundo.

— Vigia o teu visinho com quem andas em processo. Cautella com as espertezas. Porco que bebe leite quente, estoira. Vacca que leva alho nos dentes, não come.

— O peixe está gerando, guarda-te das febres.

— As rãs apparecem, semea os melões.

— A anemona enflora, semea a cevada.

— A tilia enflora, ceifa os campos.

— O choupo enflora, fecha as estufas.

E, cousa terrivel, quem seguisse os seus conselhos acha-los-hia muito bons.

Uma noite de Junho, em que elle tocava o bug pipe, sobre os cabedellos da praia, do lado da Damie de Fontenelle, não se pode pescar uma só cavalla.

Outra noite, vasando a maré, aconteceu tombar na praia, em frente da casa mal assombrada, uma carreta cheia de sargaço. Gilliatt receiou naturalmente ser chamado á justiça, pois atirou-se a levantar a carreta, pondo-lhe outra vez toda a carga que se espalhara no chão.

Uma menina da visinhança tinha muitos piolhos; Gilliatt foi a Saint-Pierre Port, trouxe de lá um unguento e esfregou a cabeça da pequena; tirou-lhe os piolhos, o que prova que foi elle quem lh’os deitou.

Sabe toda a gente que ha feitiço para fazer criar piolhos na cabeça dos outros.

Dizia-se que Gilliatt olhava para os poços, o que é perigoso quando é máo olhado; e o caso é que um dia, nos Arculons, a agua de um poço tornou-se doentia. A dona do poço disse a Gilliatt: veja esta agua. E apresentou-lhe um copo cheio. Gilliatt confessou. A agua está grossa, disse elle; é exacto. A boa mulher que desconfiava disse-lhe. Pois cure-a. Gilliatt perguntou-lhe se ella tinha algum curral, se o curral tinha esgoto, e se o rego do esgoto passava perto do poço. A boa mulher disse que sim. Gilliatt entrou no curral, desviou o rego do esgoto, e a agua do poço ficou boa. Ora, pensava a gente da terra, nenhum poço fica insalubre, nem é curado depois, sem motivo; a doença do poço não é natural; é difficil não acreditar que Gilliatt tenha enguiçado a agua.

De uma vez, tendo ido a Jersey, foi alojar-se em S. Clemente, em uma rua cujo nome quer dizer almas do outro mundo.

Nas aldeâs, colhem-se os indicios, comparam-se: o total faz a reputação de um homem.

Aconteceu um dia que Gilliatt foi sorprehendido a deitar sangue pelo nariz. Cousa grave. Um patrão de lancha, grande viajante, que fez quasi a volta do mundo, afirmou que havia uma terra, onde todos os feiticeiros deitam sangue pelo nariz. Quando um homem deita sangue pelo nariz, já toda a gente sabe como se haver com elle. Todavia algumas pessoas de juizo observaram que aquillo que caracterisa os feiticeiros em uma terra, pode não caracterisa-los em outra.

Nos arredores de Saint-Michel, vio-se Gilliatt parado em uma horta dos Huriaux, ao pé da estrada real de Videclins. Gilliatt assobiou, e pouco depois veio um corvo, e depois uma pega. O facto foi attestado por um homem notavel que pertenceu depois a uma commissão encarregada de fazer um novo livro de medidas.

No Hamel, ha mulheres velhas que diziam estar certas de ter ouvido, ao romper da manhã, umas andorinhas chamando por Gilliatt.

A isto deve accrescentar-se que Gilliatt não era bom.

Um dia um pobre homem battia um asno, que tinha empacado. Deu-lhe algumas tamancadas na barriga, o animal cahio. Gilliatt correu para levanta-lo; estava morto. Gilliatt esbofeteou o pobre homem.

N’outra occasião, vendo um rapaz descer de uma arvore com um ninho de passarinhos ainda implumes, Gilliatt tirou o ninho ao rapaz, e levou a crueldade ao ponto de restitui-lo ao seu lugar na arvore.

Uns viandantes censuraram-no por isso; Gilliatt não fez mais do que apontar para o pai e a mãe dos passarinhos que guinchavam por cima da arvore e voltavam para o ninho. Tinha queda pelos passaros. É um signal este que faz conhecer geralmente os bruxos.

Os rapazes gostam de tirar os ninhos de cotovias e goelandos no penedio das costas. Trazem comsigo grande porção de ovos azues, amarellos, e verdes, para armar com elles a frente das lareiras. Como os penedos estão a pique, acontece-lhes ás vezes escorregarem, cahirem e morrerem. Nada mais lindo que uma varanda adornada com ovos de passaros do mar. Gilliatt já não sabia que inventar para fazer mal aos rapazes. Trepava, com risco de vida, ao cimo das rochas marinhas, e pendurava ahi molhos de feno, com chapéos velhos em cima, e tudo quanto pudesse servir de espantalho, para arredar os passaros, e por consequencia as crianças.

Por tudo isto Gilliatt ia sendo a pouco e pouco odiado por todos. Não precisava tanto para se-lo.