Os Trabalhadores do Mar/Parte I/Livro I/VI
VI.
A PANÇA.
Tal era Gilliatt.
As raparigas achavam-n’o feio.
Gilliatt não era feio. Era talvez bonito. Tinha um perfil semelhante ao do barbaro antigo. Quieto, parecia um Dacio da columna trajana. As orelhas eram pequenas, delicadas, lisas, de uma admiravel forma acustica. Tinha entre os olhos a soberba ruga vertical do homem audacioso e perseverante. Cahiam-lhe os dous cantos da boca; a testa era de uma curva nobre e serena; o olhar sahia-lhe firme de dentro da palpebra franca, posto que elle tivesse aquelle piscar d’olhos que os pescadores adquirem com a reverberação das vagas. O riso era pueril e delicioso. Não havia marfim mais alvo que os seus dentes. Entretanto, Gilliatt, tisnado pelo sol, era quasi negro. Não se affronta impunemente o oceano, a tempestade e a noite; aos trinta annos, mostrava quarenta e cinco. Tinha a sombria mascara do vento e do mar.
Puzeram-lhe a alcunha de Finorio.
Diz uma fabula da India: Um dia Brahma perguntou á Força: quem é mais forte que tu? A Força respondeu: É a Astucia. Diz um proverbio chinez: Quanto não poderia o leão, se fosse macaco?
Gilliatt não era nem leão nem macaco; mas as cousas que elle fazia apoiavam o proverbio chinez e a fabula indiana. De estatura commum e força ordinaria, Gilliatt, tão inventiva e poderosa era a sua destreza, conseguia levantar fardos de gigante e realizar prodigios de athleta.
Era um pouco gymnasta; servia-se tanto da mão direita como da esquerda.
Não caçava, pescava. Poupava os passaros, não os peixes. Ai dos que são mudos!
Era nadador excellente.
A solidão faz homens de talento ou idiotas. Gilliatt tinha os dous aspectos. Ás vezes mostrava o ar espantado, de que fallámos, e dissera-se um bruto. Outras vezes mostrava uma certa profundidade no olhar. A antiga Chaldea teve homens assim: a certas horas, a opacidade do pastor tornava-se transparente e deixava vêr o mago.
Em summa, era apenas um pobre homem sabendo ler e escrever. É provavel que estivesse no limite que separa o sonhador do pensador. O pensador impõe, o sonhador obedece. A solidão domina os animos simplices, complica-os, enche-os de horror sagrado. A sombra em que entrava o espirito de Gilliatt compunha-se, em partes quasi iguaes, de dous elementos, obscuros ambos, mas differentes; dentro delle, a ignorancia, — enfermidade; fóra delle, o mysterio, — immensidade.
Á força de trepar aos rochedos, de escalar os declives, de navegar no archipelago, qualquer que fosse o tempo, de manobrar a primeira embarcação que apparecesse, de arriscar-se dia e noite nos canaes mais difficeis, tornou-se, sem tirar lucro disso, e só por fantasia e satisfação, um admiravel homem do mar.
Nasceu piloto. O verdadeiro piloto é o marinheiro que navega mais no fundo que na superficie. A vaga é um problema exterior, continuamente complicado pela configuração sub-marina dos lugares em que sulca o navio. Parecia, ao ver Gilliatt vogar nos baixios e atravez dos arrecifes do archipelago normando, que elle tinha debaixo da aboboda do craneo um mappa do fundo do mar. Sabia tudo e affrontava tudo.
Conhecia as balisas melhor do que os corvos marinhos que lá se vão empoleirar. As differenças imperceptiveis que distinguem as quatro balisas do Creux, do Alligande, de Tremies e da Sardrette eram perfeitamente claras para elle, ainda no meio do nevoeiro. Não hesitava sobre a estaca de cabeça oval, de Anfré, nem o chuço tridente, de Rousse, nem a bola branca, de Corbette, nem a bola preta, de Longue-Pierre, e não havia temer que confundisse a cruz de Gubeau com a espada fincada no chão, de Platte, nem a balisa-martello, de Barbées com a balisa cauda de andorinha, de Moulinet.
Mostrou singularmente a sua rara sciencia de maritimo num dia em que houve em Guernesey uma dessas justas que se chamam regatas.
A questão era esta: ir só em uma embarcação de quatro velas; leval-a de Saint-Sampson á ilha de Herm, distante uma legua, e trazel-a de novo de Herm a Saint-Sampson. Manobrar sosinho um barco de quatro velas, não ha pescador que o não faça, e a differença não é grande; mas eis o que aggravava o caso; primeiramente, a embarcação era uma dessas chalupas de outro tempo, com grande bojo, á moda de Rotterdam, que os marinheiros do seculo passado appellidavam panças hollandezas. Acha-se ainda algumas vezes no mar essa velha construcção da Hollanda, bojuda e chata, tendo a bombordo e a estibordo duas azas que se vão abatendo alternadamente, conforme o vento, e suprem a quilha. A segunda difficuldade, era a volta de Herm, volta complicada por um pesado lastro de pedras.
O premio da justa era a chalupa. De antemão estava dada ao vencedor. A pança servira de barco-piloto; o piloto que navegara nella durante vinte annos era o mais robusto marinheiro da Mancha; quando morreu não houve ninguem que quizesse governar o barco e decidiram fazer delle um premio de regata. A pança, embora não tivesse coberta, tinha qualidades boas e podia tentar um manobrista. Era mastreada na frente, o que augmentava a força de tracção do velame. Outra vantagem, o mastro não impedia a carga. Era uma concha solida; pesada, mas vasta, e supportando bem o mar. Houve empenho em disputal-a; a luta era rude, mas o premio era magnifico. Apresentaram-se sete ou oito pescadores, os mais vigorosos da ilha. Tentaram um por um; nenhum delles pôde ir a Herm. O ultimo que luctou era conhecido por ter passado a remos, com tempo máo, o terrivel redomoinho, que ha entre Serk e Brecq-Hou. Escorrendo em suor, trouxe elle a pança e disse: É impossivel. Foi então que Gilliatt entrou no barco; empunhou primeiramente o remo, e depois a grande escota, e fez-se ao largo. Depois, sem atar a escota, o que seria imprudencia, e sem largal-a, o que lhe dava o dominio da vela grande, deixando a escota rolar á feição do vento sem descahir, segurou com a mão esquerda a cana do leme. Dentro de tres quartos de hora estava em Herm. Tres horas depois, posto que soprasse então um forte vento do sul, atravessando a barra, a pança, governada por Gilliatt, entrava em Saint-Sampson, com o carregamento de pedras. Gilliatt trouxe, por luxo e bravata, além do carregamento, um pequeno canhão de bronze de Herm, com que a gente da ilha salvava todos os annos, a 5 de Novembro, em regosijo pela morte de Guy Fawkes.
Guy Fawkes, digamo-lo de passagem, morreu ha duzentos e sessenta annos; foi uma grande satisfação.
Gilliatt, assim carregado e estafado, embora trouxesse o canhão na barca, e o vento sul na vela, voltou a Saint-Sampson.
Vendo isto, mess Lethierry exclamou: ora aqui está um marinheiro atrevido!
E estendeu a mão a Gilliatt.
Tornaremos a fallar de mess Lethierry.
A pança foi entregue a Gilliatt.
Esta aventura não lhe destruio a alcunha de Finorio.
Algumas pessoas declararam que a cousa não era para admirar, visto que Gilliatt escondera no barco um galho de nespereira sylvestre. Mas ninguem pôde provar isso.
Desde esse dia, Gilliatt não teve outra embarcação. Naquella pesada chalupa é que elle ia á pesca. Amarrava-a no excellente ancoradourosinho que tinha só para seu uso, debaixo do muro da casa mal assombrada. Ao cahir da noite, atirava a rede ás costas, atravessava o jardim, galgava o parapeito de pedras seccas, rolava de rochedo em rochedo, e saltava na barca. Dahi fazia-se ao mar.
Pescava muito peixe, mas affirmava-se que o galho de nespereira estava sempre atado á chalupa. Ninguem o vio nunca, mas toda a gente acreditava.
Não vendia, dava o peixe que lhe sobrava.
Os pobres acceitavam o peixe, sem deixarem de lhe querer mal por causa do ramo embruchado. Não se deve trapacear com o mar.
Era pescador, mas não era só isso. Tinha aprendido por instincto ou por distrahir-se, tres ou quatro officios. Era marceneiro, ferreiro, fabricante de carros, calafate e até um pouco mecanico. Ninguem concertava uma roda como elle. Fabricava de um modo especial, todos os seus instrumentos de pesca. Tinha em um canto da casa uma pequena forja e uma bigorna, e, não tendo a chalupa mais que uma ancora, fez-lhe outra, elle só. Excellente ancora era essa; a argola tinha a força requerida, e Gilliatt, sem que ninguem lh’o ensinasse, achou a dimensão exacta que devia ter o cepo da ancora para que ella não voltasse.
Substituio com toda a paciencia, os pregos das bordas por cavilhas, tornando assim impossivel a ferrugem.
Deste modo augmentou muito as boas qualidades da pança. Aproveitava-se della para ir de quando em quando passar um ou dous mezes em alguma ilhota solitaria como Chousey ou Casquets. Dizia-se então: Olhem, Gilliatt está fóra. Ninguem se incommodava por isso.