Os Trabalhadores do Mar/Parte I/Livro IV/I

I.


PRIMEIROS RUBORES DE AURORA OU DE INCENDIO.


Gilliatt não trocara nunca uma palavra com Deruchette. Conheci-a por te-la visto de longe, como se conhece a estrella da manhã.

Na época em que Deruchette encontrou Gilliatt, no caminho de Saint-Pierre Port au Valle e fez-lhe a sorpreza de traçar na neve o nome delle, tinha 16 annos. Exactamente na vespera mess Lethierry disse-lhe as seguintes palavras:

— Deixa-te de seres travessa; estás moça feita.

O nome Gilliatt, escripto por aquella menina, cahio em uma profundidade desconhecida.

Que eram as mulheres para Gilliatt? nem mesmo elle poderia dize-lo. Quando encontrava alguma, causava-lhe medo e cobrava-lhe medo. Só na ultima extremidade fallava ás mulheres. Nunca foi amante de nenhuma camponeza. Quando se achava só em um caminho e ansiava alguma mulher ao longe, Gilliatt galgava um cercado, ou mettia-se em uma mouta e ia-se embora. Até das velhas fugia. Só tinha visto uma parisiense. Parisiense de arribação, estranho acontecimento em Guernesey naquelles tempos idos. E Gilliatt ouvira a parisiense contar nestes termos os seus infortunios: «Estou muito massada, cahiram-me uns choviscos no chapéo, esta côr é muito sujeita a ficar manchada.»

Tendo encontrado tempos depois entre as folhas de um livro uma antiga gravura de modas representando uma dama da calçada de Antin em grande toilette, pregou-a na parede como lembrança desta apparição. Nas noites de estio escondia-se atraz das rochas de Houmet-Paradis para ver as camponezas banharem-se no mar. Um dia, atravez de uma cerca, vio a feiticeira de Torteval atar a liga que lhe tinha cabido. Provavelmente, Gilliatt era virgem.

Naquella manhã de Natal em que Deruchette escrevera rindo o nome delle, Gilliatt voltou para casa não sabendo já porque motivo tinha sabido. Não dormio de noite. Pensou em mil cousas;—que faria bem se cultivasse rabanetes no jardim;—que não tinha visto passar o navio de Serk e talvez lhe houvesse acontecido alguma cousa;—que tinha visto erva pinheiro em flôr, cousa rara naquella estação.

Gilliatt nunca soubera com certeza que parentesco havia entre elle e a velha que morrera em casa; disse comsigo que devia ser sua mãe e pensou nella com redobrada ternura. Lembrou-se do enxoval de mulher que estava na mala de couro. Pensou que o Rev. Jaquemin Herodes seria provavelmente nomeado decano de Saint-Pierre Port, e que a parochia de Saint-Sampson ficaria vaga. Pensou que o dia seguinte ao de Natal, seria vigesimo setimo dia da lua, e que por consequencia a maré enchente seria ás 3 horas e 21 minutos, a média ás 7 horas e 15 minutos, a vasante ás 9 horas e 36 minutos. Recordou, até nas menores particularidades, o vestuario de highlander que lhe vendera o bug-pipe (especie de sanfona), bonet enfeitado com um cardo a claymore, a casaca de ábas curtas e quadradas, o saiote, o scilt or philaberg, adornado com uma bolsa e uma boceta de chifre, o alfinete feito de uma pedra escosseza, os dous cintos, as sashwises, o belts, a espada, o swond, o sabre, o dirk e o skene dhu, faca preta de cabo preto ornada de dous cairgorums, e os joelhos nús do soldado, as meias, as polainas riscadas e os sapatos de borlas. Tudo aquillo tornou-se espectro, perseguio-o, deu-lhe febre até que elle adormeceu.

Gilliatt acordou quando o sol já ia alto, e o seu primeiro pensamento foi Deruchette.

Adormeceu no dia seguinte e sonhou toda a noite com o soldado escossez. Sonhou tambem com o velho cura Jaquemin Herodes. Quando acordou pensou outra vez em Deruchette e teve contra ella uma violenta colera; lamentou não ser criança para ir atirar pedras nas vidraças da moça.

Depois lembrou-se de que, se fosse criança, teria ainda sua mãe e entrou a chorar.

Projectou ir passar uns tres mezes em Chausey ou em Minquirs, mas não partio.

Não tornou a pôr os pés na estrada de Saint-Pierre Port au Valle.

Imaginava que o seu nome ficara gravado na terra, e que todos os viandantes deviam olhar para elle.